youtube facebook instagram twitter

Conheça nossas redes sociais

Por Dalva Aparecida Garcia*

Dizia minha avó que todo cuidado com o mês de agosto era necessário: “Mês de cachorro louco!”.

Se referia à campanha de vacinação de cães contra a raiva e às centenas de cuidadores de animais que resolviam soltar seus animais nas ruas numa espécie de protesto contra a medida sanitária.

É no fim desse mês de “cachorro louco” que assistimos pela rede Bandeirantes o primeiro debate entre candidatos à presidência da República.

Martin Buber, filósofo e escritor de origem judaica, já havia traçado suas considerações acerca do debate em dois belos textos: “Do diálogo e do dialógico”, publicado pela Editora Perspectiva, e “Eu e tu”, pela Cortez Editores.

Dalva Garcia: O cale a boca já morreu.  Quem manda na minha vida sou eu!

Cada uma no seu tempo e do seu jeito, estas mulheres disseram não aos padrões determinados pela sociedade patriarcal; todas senhoras delas mesmas: Chiquinha Gonzaga, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Anitta, Maysa, Aracy de Almeida, Leila Diniz e Mafalda, a menina contestadora, revolucionária, inquieta, criada pelo genial e inesquecível cartunista argentino Quino (1932-2020)

Nos dois textos, Martin Buber nos presenteia com sua crítica ao formato de conversação que compõe o debate.

Na gênese do debate está um movimento de ouvir e falar que tem a marca da competição.

Um formato de racionalidade instrumental que não busca considerar o argumento do outro a não ser para atacá-lo e desconsiderá-lo.

O debatedor busca na conversação a arma para desmoralizar o interlocutor, fechando a possibilidade do encontro entre o “eu” e “outro”, pois só se concentra naquilo que Graciliano Ramos denominou “um pronomezinho irritante”: o “eu” .

Um “eu” que não pensa em nenhum significado da palavra a não ser aquele que constitui sua verdade dogmática inquestionável.

Em suma, a razão (logos) ou palavra está guardada no bolso para ser atirada no adversário como pedra de estilingue de criança atormentada que vibra com o ferimento do outro.

Sendo assim, não podemos esperar desses debates nenhum significado dialógico que implica analisar a palavra e rever o movimento do pensamento para autocorreção.

Não é à toa que nos perguntamos: quem ganhou o debate?

No debatedor está cunhada a insígnia de quem entrou para vencer, custe o que custar.

Desfile de opiniões sem fundamento, ordenadas numa lógica aparentemente racional, apesar do esforço inútil do coordenador de fazer os ânimos acirrados se controlarem. Briga de galo ou coisas afins não são metáforas exageradas.

Todavia, a analogia com a briga de galos ganhou uma denotação forte demais até para expectadores e correlegionários no primeiro debate, do fim de agosto de 22.

A pergunta da jornalista Vera Magalhães ao presidenciável Ciro Gomes com direito ao comentário de Jair Bolsonaro acerca das campanhas de saúde que envolvem vacinação (desta vez, não a de cachorro com ameaça de hidrofobia), mas de crianças com risco de imobilidade graças à poliomielite antes erradicada no país.

O comentário do presidenciável (ainda chefe do executivo):

— Vera, você deve dormir e acordar pensando em mim. Creio que está apaixonada por mim. Você é uma vergonha para o jornalismo.

Diante de protestos e do riso de escárnio de outro presidenciável, o debatedor comenta em tom autoritário: “Cale a boca, não pedi sua opinião” e mais “nada de ser vitimizada, somos todos iguais.”

Não é novidade para ninguém que o atual chefe do executivo federal e, candidato a próximo mandato, veio para nos lembrar que a expressão “Cale a boca já morreu” não deve morrer.

As perseguições anticonstitucionais de seu governo e a truculência de palavras e ações escancaram a ânsia de poder totalitário que, vez ou outra, se escondem através da amnésia como tática.

É o caso de um nazista julgado em 1945  pelo Tribunal de Nuremberg, que faz com que psiquiatras renomados atestem sua insanidade e seu esquecimento. Depois, o próprio acusado declara em alto e bom no mesmo tribunal que foi estratégia de guerra e assume as atrocidades dos seus atos com uma espécie de heroísmo assustador.

O presidenciável faz o mesmo. Quando indagado acerca de atrocidades inverte o argumento. Troca de assunto como no espetáculo com a jornalista Vera Magalhães. Seria redundância afirmar que sua interlocutora era uma mulher naquele exato momento, se a naturalização…

Hoje as mulheres podem participar do debate público, desde que arrumadas, aprumadas, exercendo e reforçando o papel de cuidadoras da grande família nacional (o Estado), inclusive como slogan de campanha, como se viu ontem.

São mulheres respeitáveis, administradoras do lar e promotoras da paz.

Quantas vezes já vimos o constrangimento que se estabelece entre homens frente ao argumento razoável de uma mulher no meio de uma plateia?

Logo, aparecem sorrisinhos de escárnio, sussurros, enquanto uns dizem ”além de bonita quer ser inteligente” ou “alguém pediu a opinião dela?”

Para Adorno e Horkheimer, pensadores que os cultuadores de ” filósofos” (como Olavo de Carvalho) denominam  “marxistas culturais”, a maledicência tem sua origem que precisa ser examinada e jamais esquecida.

É a mesma que em nome da racionalidade colocou o homem branco europeu como dominador da natureza e do universo e, claro, dominador do outro, como já supunha tanto o liberal Adam Smith quanto os pesquisadores da economia capitalista como Marx.

As críticas dos pensadores do Instituto de Pesquisa Social – a chamada Escola de Frankfurt — aos adeptos do marxismo de cunho cientificista (sim, os marxistas culturais teciam críticas aos marxistas de plantão – seu Olavo e o ex-ministro da educação Abraham Weintraub pularam essa parte da leitura) se referem à necessidade de introduzir a dialética negativa aos sustentáculos da educação, da pesquisa social, da arte e da cultura que não são apenas o espelho da dominação capitalista do homem pelo homem, mas também a sustentam.

O projeto desses pesquisadores é incômodo para gregos e troianos. Se trata de um acerto de contas com um modelo de racionalidade que promete a liberdade e age na destruição da natureza e da integridade humana.

Ora, se esse modelo de racionalidade entende como “herói” aquele que subjuga o diferente de si, não é de se estranhar o apelo da modernidade ao proclamar a figura da mulher como mãe terra acalantando seus rebentos e promovendo o cuidado que os homens atrozes tanto necessitam.

Maltratar a terra, a natureza, as etnias indígenas e africanas é parte integrante do mesmo pacote (o pacote do homem dominador que não pode reconhecer em sua própria imagem fracassada e oscilante de empenhado dominador).

Desta maneira também não é de se estranhar que um professor – homem da rede educacional do Estado de São Paulo —  acorde às 4 horas da manhã para propor uma eleição da professora mais bonita de uma escola. E defende sua posição: “Afinal, opinar não é crime”.

Vejam bem: a proposta do professor insone acerca do “concurso de beleza” se dirige às professoras. Mulheres.

Devem os “heróis” dominadores em sua complacência quase divina reconhecer e aplaudir a beleza feminina. Sinal de reconhecimento de sua função análoga à beleza da terra destruída em queimadas por madeireiros na vasta terra amazônica.

Há beleza para todos os homens, basta atribuir às mulheres o reconhecimento do que podem fazer segundo sua natureza. Ironias à parte, escrevem Adorno e Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento:

“A burguesia embolsou junto à mulher a virtude e o recato: como formações reativas da rebelião matriarcal. Ela própria obteve para toda essa natureza explorada a admissão no mundo da dominação, mas como natureza vencida. Subjugada ela reflete para o vencedor sua vitória através da submissão espontânea: a derrota como devotamento; o desespero, como beleza da alma; o coração violentado, como o seio amante (…)

A arte, a moral e o amor sublime são máscaras da natureza. Através de suas máscaras ela conquista a linguagem; em sua distorção, manifesta-se sua essência: a beleza é a serpente que mostra a ferida em que penetrava outrora o espinho.

Por trás da admiração do homem pela beleza está emboscada a gargalhada sonora, o escárnio desmedido, a bárbara obscenidade que o potente dirige à impotência, à morte e à natureza (…) as mulheres foram encarregadas do cultivo planejado do belo.

A puritana moderna aceitou o encargo cheia de zelo. Ela se identificava totalmente com tudo o que aconteceu, não com a natureza selvagem, mas com a natureza domesticada (…)

Sob pressão da publicidade universal, o pó de arroz e o batom transformaram-se em produto de proteção da pele, o maiô uma exigência de higiene. Impossível escapar. A simples circunstância de que tudo isso se passa no sistema organizado de dominação é suficiente para imprimir no amor próprio a marca da dominação”. 

Supondo que talvez a citação de Adorno e Horkheimer seja suficiente para esclarecer o entretenimento de ontem e fazer pensar em três afirmações de presidenciáveis que poupo de reproduzir aqui como citação:

— O senhor não pode se comprometer com metade do ministério de mulheres, mas eu já o fiz, porque todas as mulheres são ótimas administradoras do lar.

— Senhor presidente, não me refiro a uma gracinha que fiz com a mulher com quem estive casado por 18 anos, mas ao seu desrespeito…

— Sou tão a favor da mulher que defendo armas para que as mulheres possam se defender.

Deixemos a explicação do que constitui falácias (argumentos inválidos com a aparência de validade) para o próximo artigo.

Para finalizar, três propostas.

Ao contrário do que se espera de mulheres lindas, recatadas e do lar, com batom carmim, da cor do pecado, escrevamos em letras garrafais: NÃO MATARÁS.

Não dê importância a opiniões de ideólogos reprodutores de sua suposta potência que escamoteia a evidente impotência.

O cale a boca já morreu. Quem manda na minha vida sou eu.

*Dalva Garcia é professora de filosofia da rede pública de São Paulo.

Siga nossas redes

https://linktr.ee/jornaltaguacei
https://linktr.ee/ceilandiaemalerta