A primeira brasiliense a ocupar uma cadeira no Superior Tribunal de Justiça pretende se engajar nas causas reformistas do CNJ, como paridade de gênero e desencarceramento. Ela critica o machismo que enfrentou na sabatina com senadores
Brasiliense assumirá a vaga deixada por Félix Fischer. Escolhida por Lula, foi a única mulher a compor a lista sêxtupla da OAB para a cadeira – (crédito: Carlos Vieira/CB/D.A.Press)
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) vai receber em 22 de novembro a primeira ministra brasiliense. Nascida e com formação na capital do país, Daniela Teixeira, 51 anos, chega para ocupar a vaga aberta com a aposentadoria do ministro Félix Fischer, depois de ter o nome aprovado pelo Congresso Nacional na última quarta-feira (25/10).
Não foi fácil, evidentemente, conquistar um cargo tão cobiçado. O momento mais difícil, segundo Daniela, foi a sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. O nível de exigência para que Daniela demonstrasse notório saber jurídico foi bem diferente do cobrado dos desembargadores também indicados para outras vagas no STJ. “Foi uma realidade muito cruel, de machismo”, diz.
Daniela é a sexta integrante mulher de uma corte de 33 ministros. A última nomeação havia ocorrido há 10 anos, quando Regina Helena Costa foi indicada pela então presidente Dilma Rousseff. Com personalidade e opiniões definidas, Daniela, que sempre foi feminista, agora pretende vestir a toga em todos os sentidos. Só participará de campanhas abraçadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e não fará manifestações fora dos autos.
Mas quem a conhece sabe como a nova ministra deve se posicionar nos processos. Advogada criminalista, ela é garantista, defende os direitos individuais e é contrária ao encarceramento. Integrante do grupo Prerrogativas, terá um olhar severo sobre operações policiais escandalosas e focadas nos holofotes.
Na corte, a magistrada herdará 13 mil processos. Vai integrar a 5ª Turma, da área criminal. E pretende seguir suas convicções, dentro dos limites da magistratura. “Todos sabem quem é Daniela Teixeira”, diz. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Correio.
Qual será o olhar de uma ex-advogada na magistratura?
Acho isso muito importante. Nosso constituinte poderia ter dito que os ministros dos tribunais superiores seriam todos concursados, juízes de carreira. Vários países fazem essa opção. A nossa Constituição, não. Ela quis que um pedaço do tribunal viesse da advocacia. Eu fui advogada há 27 anos, não fiz concurso, não estudei para ser juíza e eu vou começar como ministra do tribunal. Algumas pessoas estranham, mas é exatamente o que quis o nosso constituinte: que houvesse, no tribunal, ministros com esse olhar de advocacia. Isso quer dizer que eu vou ter lado na demanda? Claro que não. Até porque normalmente a demanda tem dois advogados, um de cada lado. O que o constituinte quis é que eu levasse um olhar da parte.
Por que isso é importante?
Durante os últimos 27 anos, eu ouvi o que o cidadão pensa da justiça brasileira, como autor ou como réu. As suas dores, suas angústias. O tempo, para quem está preso injustamente, é muito diferente do tempo do juiz. Uma coisa é um juiz falar em periculum in mora (perigo na demora, em latim). Outra coisa é um advogado explicar para uma mãe qual é o perigo da demora daquela decisão que, se levar uma semana, pode ser a vida do filho dela. Pode ser a empresa que vai fechar. Pode ser o emprego daquela pessoa. Então, o constituinte quis que a advocacia estivesse lá, não para defender um lado ou outro, mas para defender o cidadão.
Do ponto de vista do cidadão, quais são as demandas mais urgentes no STJ?
A maior reclamação é o tempo. Quando o processo chega ao STJ, ele tem uma média de 10 anos. Imagine você procurar um advogado e ele fala: o seu processo vai durar entre 10 e 14 anos. Isso precisa diminuir urgentemente. Justiça tardia não é justiça. Isso já é dito há 100 anos, e a cada ano tem ficado mais urgente tomar uma decisão, que é diminuir a carga de processos, o número de recursos.
Há medidas concretas para mudar isso?
Foi aprovada uma PEC que criou um novo tipo de solução. É a cláusula de relevância, segundo a qual o STJ vai ter um filtro e dizer: essas causas, não julgo mais. Já julguei uma vez e não vou julgar. O Tribunal de Justiça vai ter que obedecer a orientação que veio do Tribunal Superior. É bom para os dois lados. Não é bom para ninguém uma demanda que leva 14 anos.
É uma medida para que a justiça chegue a tempo.
Sim. Uma justiça que chega com 15 anos de atraso é uma injustiça. Ela não é justiça.
A senhora também leva para o STJ o olhar feminino. Como será isso?
Há uma frase da qual gosto muito: nada sobre as mulheres sem as mulheres. Se não tem mulher falando, não tem que se falar sobre mulher. É muito importante que a gente esteja no tribunal. Metade do Brasil é de mulher, não é razoável ter tribunais inteiros de Justiça, como acontece em alguns estados, sem nenhuma mulher. É preciso que a mulher esteja no Poder Judiciário, porque o Judiciário dita normas de conduta, normas de moral. O Legislativo tem uma lei muito seca: melhor interesse da criança, diz a lei. Quem vai dizer o que é o melhor interesse da criança é o juiz. E se não temos juízas julgando processos de família, vai ser sempre um olhar do homem, do pai, de quem não é mulher.
Essa é uma bandeira conhecida da senhora.
Eu fiz esse compromisso. Não estou enganando ninguém. Participei de uma campanha longa e penosa. Tive os 27 votos da OAB no Brasil todo. No STJ, eram 30 ministros que votavam secretamente. Tive 20 votos. No Senado da República, voto secreto, 81 senadores. Todos sabem quem é Daniela Teixeira. Então eu chego no tribunal levando, sim, uma bandeira de mais mulheres no Poder Judiciário, como fiz na OAB. Em todas as listas que eu votar — e é o STJ que vota as listas tríplices —, vou votar sempre em uma mulher.
Por quê?
Ninguém há de me convencer que, numa próxima lista de Ministério Público, não exista uma só promotora no Brasil inteiro que esteja habilitada para ser ministra do STJ. Ninguém vai me convencer que não existe uma juíza federal no Brasil habilitada a entrar na lista. É um esforço que tem que ser feito para a gente alcançar não digo a paridade — porque essa vai levar décadas — mas para melhorar minimamente alguns tribunais onde não tem nenhuma mulher.
Em relação ao Supremo Tribunal Federal, qual sua expectativa?
A vaga está aberta, então não posso lamentar nem celebrar. Eu entendo que o Supremo Tribunal Federal é diferente. A Constituição quis assim, da mesma forma que quis que a minha vaga passasse antes pela OAB, passasse pelo STJ, para só então chegar ao presidente. Acho que tem de haver um esforço do Tribunal e do CNJ para obrigar que o presidente tenha a opção, para ele não ter que dizer: “Mas eu não tinha mulher na lista para escolher”.
Por que o STF é diferente?
O que acontece no Supremo é algo muito específico, constitucional. O seu Tribunal de Justiça, não. Ele decide o prazo para você ser despejado; se uma loja pode ficar perto da outra ou não. Ele decide a guarda do filho, a sua vida do dia a dia. O que me move é a presença das mulheres nos Tribunais de Justiça, nos TRFs, no STJ, no TSE e no TST. O Supremo Tribunal Federal é um tribunal político. É uma escolha do presidente da República. Foi assim que a Constituição quis.
Na sua jornada até o STJ, como essa questão de gênero foi colocada?
Eu senti muito isso no Senado. O Senado, para mim, foi um choque de realidade brutal. Conversei com todos os senadores individualmente, e foi um choque. O Senado representa o Brasil. É o que a média dos brasileiros pensa, votando secretamente naquilo que talvez não confesse no almoço de domingo. Foi uma realidade muito cruel, de machismo.
Pode dar um exemplo?
Houve caso de eu ir para audiência, com dois colegas que não competiam comigo — nós três indicados tínhamos que ser apenas referendados pelo Senado. E para mim, a pessoa pergunta: qual a sua opinião sobre o marco legal do saneamento? Eu tinha uma opinião perfeita, jurídica e dava. E para a pessoa do meu lado, o parlamentar perguntava: o senhor se formou onde? Eu sou absolutamente capaz de responder que me formei na UnB. Um senador me perguntou quem foi o senador autor da ideia de trazer a capital para o Centro-Oeste. E eu disse, como toda brasiliense, conheço a Missão Cruls, conheço o sonho de Dom Bosco, o famoso comício de JK.
A resposta não foi a contento?
Ele disse: “Não, doutora. Eu perguntei o nome do senador que, em 1892, trouxe a ideia da capital aqui”. Senador, desculpe, eu não sei. Para quem tiver curiosidade: foi Lauro Muller. E na mesma audiência, o senador perguntou ao meu colega: o senhor é devoto de Padre Cícero? Se me perguntassem, eu saberia dizer que sou devota de Nossa Senhora de Fátima. As perguntas eram sempre num nível muito mais elevado de conhecimento técnico para mim do que para os dois. Era como se perguntassem: a senhora tem certeza de que tem condição de ser ministra do STJ?
Foi desproporcional, então.
Foram dois meses muito difíceis no Senado. Eu me preparei muito para o STJ e para a sabatina do Senado. Soube responder a todas as perguntas. A única que eu não soube foi a do Lauro Muller, 1892! As outras respostas eu sabia, mas não fizeram essas perguntas para os outros. E a sabatina durou cinco horas. Isso é sabatina de ministro do Supremo. Sabatinas de ministros do STJ, normalmente, são simples, rápidas, curtas. A sabatina durou cinco horas, e praticamente todas as perguntas eram para mim.
Houve um viés machista, claramente.
Foi realmente uma sabatina dura. Mas passei bem. Foram só cinco votos contra 68 a favor. Foi o placar mais alto do STJ até hoje.
A senhora falou das suas convicções e do seu ativismo. Isso terá lugar no STJ, no seu trabalho enquanto ministra?
Não. Quando eu era advogada, me portava como advogada. Era importante que eu falasse, era questão de ser advogada, a voz de quem não tem voz. Agora, como magistrada, sei que isso acabou. E por que você pode ter a garantia de que isso acabou? Porque fiquei 27 anos na OAB e não tenho nenhum processo ético. Sempre guardei a ética de onde eu estava. Então, como magistrada, sei que vou ter que agir rigorosamente, como diz a Lei Orgânica da Magistratura. Vou ser uma magistrada discreta, que fala nos autos e que não faz mais campanhas que não sejam do CNJ. A campanha do CNJ pela paridade das mulheres no Judiciário, por exemplo, nessa eu posso me empenhar.
E essa é apenas uma das campanhas do CNJ.
Minhas bandeiras vão ser as bandeiras do Judiciário. Se o Judiciário fizer uma campanha de desencarceramento, certamente eu vou atuar, porque eu tenho um pensamento de desencarceramento. A mesma coisa é a questão da violência contra a mulher, que para mim sempre foi uma bandeira. Posso participar de outra forma. Vai ser difícil, afinal foram 27 anos dando palpites do lado de cá. Mas eu vou honrar a magistratura, esse voto de confiança que a advocacia me deu. Vou continuar sendo Daniela Teixeira, mas terei que dar uma enquadrada para caber nessa caixinha de magistrada (risos).
O que a instiga a trocar a paixão pela advocacia pela magistratura?
Ontem (26/10) eu entreguei a minha carteira na OAB DF. Estive lá por 15 anos. E fizeram uma cerimônia-surpresa, emocionante para mim. E eu disse isso lá: os meus sonhos, eu cumpri todos. Quando entrei na
OAB, nós éramos cinco mulheres em 81 vagas de conselheiros federais. Saí da OAB deixando 41 homens e 41 mulheres. A paridade é obrigatória na OAB. Quando entrei na OAB, nós só tínhamos homens brancos, ricos e velhos. Não é um desrespeito quando eu digo isso, é uma realidade. A OAB era assim. Eu saí e deixei uma OAB muito diferente. Então fiquei com essa sensação de missão cumprida. O que eu fui fazer na OAB, eu fiz.
E no Poder Judiciário?
O Poder Judiciário me dá essa sensação de que estamos cem anos atrasados. Então eu vou para lá. Se eu vou conseguir isso, se eu não vou, daqui a 15 anos, vocês me entrevistam e eu digo se consegui alguma coisa. O que me move é tentar fazer alguma coisa de diferente. O Judiciário é a minha vida. Foi lá que eu atuei como advogada. Então é lá que eu quero ver as mudanças.
Recentemente uma advogada grávida pediu para suspender o julgamento, e o magistrado disse que gravidez não é doença. Trata-se de um confronto à Lei Júlia Matos, que surgiu de um episódio do qual a senhora foi protagonista. Esse problema ainda vai persistir?
Agora, usando a Loman (Lei Orgânica da Magistratura Nacional), não posso me reportar a esse caso que ocorreu no Pará. Posso apenas dizer que o CNJ tomou providências enérgicas, porque era uma decisão hoje absolutamente contra a lei. A lei permite, apoia e dá toda a condição para a advogada grávida pedir o adiamento do seu julgamento em razão do dia do parto. Mais do que o dia do parto, a lei permite a suspensão do processo por 30 dias. E essa lei leva o nome da minha filha. Foi uma situação idêntica. Eu pedi preferência e o magistrado não me deu. Eu fiquei aguardando durante seis horas e tive um parto prematuro. E então eu vi que isso era muito mais comum do que eu imaginava. Quando saiu na imprensa o que havia acontecido comigo, as pessoas começaram a entrar em contato comigo dizendo: doutora, aconteceu comigo igual. Fizemos então esse projeto de lei.
E qual foi a reação?
Sabe o que tem de mais interessante? Foi quando fizemos o projeto de lei com o deputado Rogério Rosso. Levamos ao presidente nacional da OAB e ele disse: claro, Dani! Por que não pensamos nisso antes? Respondo: ora, não pensamos nisso antes porque, em 80 anos, a OAB nunca foi presidida por uma mulher. Não pensamos nisso antes porque tínhamos só cinco conselheiras federais em 81 cargos. Não pensamos nisso antes porque o homem não engravida.
A senhora vai integrar uma turma criminal?
Na última quinta-feira, foi definido. Eu vou para a 5ª Turma, que é de direito criminal. Mas é importante fazer essa ressalva. Eu assumo a vaga da aposentadoria do ministro Fischer (Felix Fischer), mas não o acervo do ministro. O acervo já havia sido repassado para outro ministro.
São muitos processos?
Me disseram que são 13 mil. Dá um certo desespero (risos). Mas vai dar.
A senhora é a primeira ministra brasiliense no STJ. Como isso bate no emocional?
Estamos envelhecendo, os habitantes e a cidade. Nós temos agora o primeiro governador brasiliense, Ibaneis Rocha, e eu, a primeira ministra brasiliense. A cada dia que passa vai ter mais brasilienses em
cargos de comando. É uma emoção, sem dúvida. Fico muito feliz de representar nosso quadradinho. Sou apaixonada por ipê, como todo brasiliense. Não vou reclamar da seca em agosto (risos). Estou literalmente em casa.
O ministro Rogério Schietti, que também é uma pessoa de Brasília embora não tenha nascido aqui, disse que se sente muito honrado de ajudar a formar a jurisprudência do Brasil. Até porque esse é o papel do STJ. Isso também, na sua visão, vai ser algo motivador?
Com certeza. Fico feliz que você tenha trazido o ministro Schietti. Ele é o meu modelo de ministro. Quando olho para a corte e penso quem eu quero ser daqui a dez anos, eu digo: quero ser “Schiettia”. Para mim é um modelo de magistrado, de pessoa. E ele veio do Ministério Público. Quando perguntam se eu vou ser garantista porque sou advogada, eu respondo que o ministro mais garantista do tribunal, mais preocupado com os direitos individuais, com respeito à lei, é o ministro Schietti. O garantismo nada mais é do que o juiz não ter vontade própria; não julgar pela capa do processo, pelo nome do réu. É o juiz se fixar no que diz a lei, independentemente do que quer ou não quer a opinião pública. Então, eu realmente queria muito ser lembrada no futuro como alguém que fez para o tribunal tudo o que o ministro Schietti fez.
Sobre a abordagem de suspeitos, ele tem uma visão de que ela precisa de ser muito bem justificada.
Isso já está julgado, então posso falar. É a questão do perfilamento racial. O suspeito, no nosso país, infelizmente, é o jovem negro da periferia. Uma pessoa branca correndo no Lago Sul está fazendo jogging. Ele não é abordado pela polícia. O Schietti teve a coragem de dizer isso, de falar que a invasão de domicílio em busca de provas tem que ser motivada. Não pode ser porque a pessoa mora na periferia, no morro. A pessoa, para ser abordada pela polícia, tem que realmente estar em atitude suspeita. Você não pode considerar suspeita uma parcela da população. É um excelente exemplo a ser seguido nesses casos.
Como a senhora vê o feminicídio? É uma questão da legislação, ou é preciso mudar a sociedade? Onde está a saída?
Isso eu também posso falar, porque é uma campanha do CNJ. Os níveis de feminicídio estão envergonhando o Brasil. É algo que precisa de uma solução de todos: Executivo, Legislativo, Judiciário, escola, imprensa. O Correio Braziliense faz um papel fantástico na questão do feminicídio, de ouvir especialistas, de divulgar o que deve ser divulgado, que é especialmente o que acontece com aquela família. Depois, para que aquele homem que está pensando em fazer isso, ele tem um momento de lucidez, de saber a desgraça que vem em seguida.
O que fazer?
No Poder Judiciário, creio ser importante levar a ideia do aumento da pena, não do feminicídio. Porque, em grande parte das situações, esse homem mata a mulher e se suicida. O direito penal não alcança esse
homem. Ele está morto. Não adianta eu aumentar essa pena. A pena que nós temos que levar a sério é a do primeiro tapa, que é a lesão corporal simples. Se José dá um tapa na sua esposa, Maria, na frente dos filhos no jantar, esse tapa vai virar um murro, vai gerar um chute, uma esganadura, um soco, um tiro. Em quase todos os casos. É só uma questão de tempo. Não tem segunda chance.
Forma-se uma espiral de violência.
Estatisticamente, o homem não vai melhorar. Estatisticamente, essa relação não vai ser saudável. Então, qual é a pena que a gente precisa aumentar e cumprir? É a do tapa na violência doméstica, porque ela vai
evoluir. É preciso que, desde o início, a polícia aja com seriedade. É preciso que o juiz aplique o rigor da lei. É preciso que esse homem use a sua tornozeleira. É preciso que essa mulher tenha um botão do pânico para quando ele se aproximar. Ora, mas vai prender porque o homem gritou? Não, não vou prender. Mas o delegado pode ser um pouco mais incisivo. A audiência de custódia pode ser um pouco
mais dura, e o juiz pode aplicar uma penalidade diversa e exigir que ele use a tornozeleira. Nós temos que olhar, com o Judiciário, com maior rigor para o começo da escalada de violência contra a mulher, e não o fim. Tratar o fim não vai resolver nada.
Qual a sua opinião sobre a população carcerária do Brasil?
O Brasil só perde para a Indonésia em ritmo de aprisionamento. Nós vamos virar a década prendendo cada dia mais, e não resolve. Eu tenho essa firme convicção de que cadeia não reabilita ninguém. Fiz muita inspeção em presídios — na OAB, a gente chama de institutos. A gente prova comida, vê onde dorme, vê qual é o sistema de saúde que atende esse interno — a gente não chama de preso, a gente
respeita a pessoa que está lá. A nossa Constituição não tem pena perpétua nem de morte. Cedo ou tarde a pessoa vai sair. E que pessoa a gente está colocando no sistema, na nossa sociedade?
O que precisa ser feito então?
Eu acredito muito nos mutirões do sistema carcerário. O ministro Gilmar (Mendes) fez, o ministro Lewandowski fez. Existem pessoas que estão presas lá, que já cumpriram a pena delas. Eu não estou nem falando: ah, vai soltar bandido. Não. Para o sistema penal, essa pessoa já cumpriu o que ela tinha para cumprir. Sou muito favorável a que a gente consiga tirar de lá de dentro quem já cumpriu sua pena e os presos provisórios. É um absurdo você saber que metade dos presos brasileiros nem sequer foram julgados. Em grande medida porque não têm advogado, não têm defensor público.
É preciso enxergar o problema de outra forma, então.
É preciso enfrentar essa questão no Brasil verdadeiramente, de aceitar que as pessoas que estão ali não são todas iguais. Não são todas que merecem estar ali. Muitas estão ali por falta de oportunidade de julgamento. Isso é muito vivo em quem frequenta estabelecimento prisional. Se você for realmente visitar um estabelecimento prisional, seus conceitos vão mudar. Quem acha que lá dentro só tem bandido e que
todos deveriam eventualmente morrer, precisa ir a um estabelecimento prisional. Passar um dia lá. Vá com a sua igreja, vá com a universidade. Todas as universidades fazem serviços de assistência judiciária. Vá com a OAB, com a Vara de Execução Penal.
Desencarcerar é a solução?
Daria para mudar o sistema, como fizemos na época da pandemia. Veio essa determinação do CNJ de evitar ao máximo o encarceramento. Só quem realmente precisava ir preso podia ir preso, e quem não precisava estar lá podia pedir habeas corpus que ia sair, como de fato muita gente saiu. E a criminalidade no Brasil não aumentou, não aumentou nenhum crime, nem contra o patrimônio, nem contra a vida, com
a libertação, ou a falta de prisão dessas pessoas. Ficou cientificamente comprovado: encarcerar pessoas não é a solução.
Por quê?
Você está criando um problema. Nós temos presídios que chegam a custar 7 mil reais/mês por interno. É um custo imenso para a sociedade, para gerar uma faculdade do crime. Quem entra ruim sai péssimo, quem entra péssimo sai pior ainda e quem entra, às vezes, é inocente. Nós tivemos há 15 dias a libertação de um jardineiro que ficou 15 anos preso e ele era inocente. Nós temos pessoas ali que, se tivessem tido acesso a um sistema de justiça justo, não estariam ali. É a questão, especialmente do tráfico de drogas, que o juiz determina qual é a quantidade que é considerada tráfico. E a gente vai parar novamente no perfilamento racial.
Qual é a relação entre prisão e racismo?
Um jovem branco numa festa no Lago Sul, portando 50 gramas de alguma substância entorpecente, não tem no Judiciário o tratamento que um jovem negro da periferia tem portando 50 gramas de maconha, que é a mais leve das drogas. Cientificamente, os dois encontram caminhos muito diferentes no Judiciário. Um como porte, outro como tráfico. Um vai preso, o outro não é nem admoestado na delegacia. Isso realmente precisa ser encarado pelo conjunto da sociedade. Eu recomendo a todos, antes de me xingarem nos comentários, que visitem um estabelecimento prisional.
Com informações do Correio Braziliense
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