Moro achava fraca delação de Palocci que divulgou às vésperas de eleição, sugerem mensagens
Então juiz, ministro de Bolsonaro tinha dúvidas sobre provas apresentadas pelo delator petista
Considerações políticas influenciaram a decisão do então juiz Sergio Moro de divulgar parte da delação do ex-ministro Antonio Palocci a seis dias do primeiro turno da eleição presidencial do ano passado, sugerem mensagens trocadas na época por procuradores da Operação Lava Jato.
Os diálogos, obtidos pelo The Intercept Brasil e analisados pela Folha junto com o site, indicam que Moro tinha dúvidas sobre as provas apresentadas por Palocci, mas achava sua colaboração relevante mesmo assim por representar uma quebra dos vínculos que uniam os petistas desde o início das investigações.
“Russo comentou que embora seja difícil provar ele é o único que quebrou a omerta petista”, disse o procurador Paulo Roberto Galvão a seus colegas num grupo de mensagens do aplicativo Telegram em 25 de setembro, tratando Moro pelo apelido que eles usavam e associando os petistas à Omertà, o código de honra dos mafiosos italianos.
Outros membros do grupo também expressaram ceticismo.
“Não só é difícil provar, como é impossível extrair algo da delação dele”, afirmou a procuradora Laura Tessler.
“O melhor é que [Palocci] fala até daquilo que ele acha que pode ser que talvez seja”, acrescentou Antônio Carlos Welter.
Nesse dia, Moro acabara de receber as provas entregues pelo delator e se preparava para divulgar um dos depoimentos que o ex-ministro prestara sobre a corrupção nos governos do PT.
O comentário reproduzido por Galvão sugere que o juiz deixou de lado sua insegurança sobre as provas ao tornar a delação pública.
Palocci fechou acordo de colaboração premiada com a Polícia Federal em março do ano passado.
Ele recorreu à PF após ver frustrados seus esforços para conseguir um acordo com a Procuradoria-Geral da República e a força-tarefa à frente da Lava Jato em Curitiba, que negociaram com o ex-ministro durante quase oito meses.
As mensagens examinadas pela Folha e pelo Intercept mostram que os procuradores encerraram as negociações ao concluir que a delação de Palocci acrescentava pouco ao que os investigadores já sabiam e não incluía provas capazes de sustentar os depoimentos que traziam novidades.
Os diálogos revelam que os procuradores cogitaram pedir a anulação do acordo de Palocci com a PF e continuaram manifestando dúvidas sobre o valor de sua colaboração após a divulgação de seus termos por Moro, embora tenham evitado críticas em público depois do movimento do juiz.
Moro divulgou a delação de Palocci no dia 1º de outubro, uma semana após o comentário reproduzido por Paulo Roberto Galvão no Telegram e uma semana antes do primeiro turno das eleições presidenciais.
O então juiz anexou os documentos aos autos de um processo que trata do apoio da Odebrecht ao Instituto Lula, em que o ex-presidente e seu ex-ministro são réus.
Em seu despacho, Moro justificou a medida argumentando que, como seria responsável por avaliar os benefícios oferecidos a Palocci mais tarde, na sentença do processo, era necessário anexar aos autos os termos da colaboração de Palocci, a decisão judicial que homologou o acordo e o depoimento que fosse “pertinente a estes autos”.
Moro afirmou também que isso era necessário para garantir ampla defesa aos demais acusados na ação, embora tenha feito a ressalva de que só iria considerar em sua sentença o depoimento prestado por Palocci à Justiça em 2017, quando o juiz, o Ministério Público e os advogados dos outros réus puderam questioná-lo.
O acordo de Palocci com a PF foi homologado em junho de 2018 pelo juiz João Pedro Gebran Neto, relator da Lava Jato no Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
O Ministério Público se manifestou contra, por não reconhecer a legitimidade da polícia para negociar benefícios penais com colaboradores.
O depoimento divulgado por Moro com os termos da delação de Palocci foi tomado pela polícia em abril de 2018.
Nele, o ex-ministro disse que Lula autorizou o loteamento da Petrobras pelos partidos que apoiavam seu governo e sabia que eles recolhiam propina das empreiteiras que faziam negócios na estatal, como a Odebrecht.
Além disso, Palocci disse à PF que as campanhas da ex-presidente Dilma Rousseff em 2010 e 2014 receberam dinheiro de caixa dois e custaram muito mais caro do que os registros oficiais indicam.
Somadas as duas campanhas, ele estimou que elas haviam custado R$ 1,4 bilhão, o triplo do que foi declarado.
Embora Palocci não tivesse apresentado provas das alegações sobre Dilma e sua narrativa fosse essencialmente uma repetição do que dissera antes ao depor à Justiça, o depoimento divulgado por Moro alcançou grande repercussão na reta final da campanha presidencial.
No dia 1º, o assunto ocupou quase nove minutos do Jornal Nacional, da TV Globo.
A reportagem citou duas vezes a ligação do ex-presidente da Petrobras José Sérgio Gabrielli com a campanha do então candidato presidencial do PT, Fernando Haddad, que aparecia em segundo lugar na corrida eleitoral, bem atrás do favorito, Jair Bolsonaro (PSL).
Nos dias seguintes, a delação de Palocci foi noticiada com destaque pela Folha e por outros jornais e ganhou visibilidade na propaganda eleitoral no rádio e na televisão.
Os dois últimos programas da campanha de Geraldo Alckmin (PSDB) mencionaram as acusações do ex-ministro, dizendo que ele havia mostrado por que era preciso impedir a volta do PT ao poder.
Duas semanas depois, ao se defender contra uma reclamação apresentada contra ele no Conselho Nacional de Justiça, Moro apresentou novos argumentos para justificar o despacho que tornou pública a delação de Palocci e negou que sua intenção tivesse sido influenciar as eleições presidenciais.
“Não deve o juiz atuar como guardião de segredos sombrios de agentes políticos suspeitos de corrupção”, escreveu Moro.
“Retardar a publicidade do depoimento para depois das eleições poderia ser considerado tão inapropriado como a sua divulgação.”
O juiz afirmou que a delação de Palocci incluía “outros depoimentos, alguns mais contundentes” e acrescentou que aguardara a apresentação das provas de Palocci à polícia para evitar que a “divulgação prematura” da delação prejudicasse as investigações.
Um mês depois de apresentar essas explicações, Moro abandonou a magistratura para ser ministro da Justiça e Segurança Pública no governo Bolsonaro.
Duas semanas depois, o TRF-4 soltou Palocci, que estava preso em Curitiba havia dois anos, e determinou seu recolhimento em prisão domiciliar, monitorado por tornozeleira eletrônica.
Embora fosse visto com desconfiança pelos procuradores, Palocci despertava interesse por causa da proximidade que manteve com Lula até ser preso pela Lava Jato e romper com os petistas. Mas as mensagens sugerem que nunca houve entusiasmo com sua proposta.
Em setembro de 2017, Antônio Carlos Welter, que era o principal interlocutor da força-tarefa de Curitiba com os advogados do ex-ministro, informou à Procuradoria-Geral da República que havia interesse em sua cooperação, mas indicou que estava insatisfeito com os documentos apresentados por Palocci.
“Os anexos ainda precisam ser melhorados, seja no que diz respeito a conteúdo, seja aos elementos de corroboração, que em alguns casos são poucos”, disse o procurador a seu colega José Alfredo de Paula e Silva, do gabinete da recém-empossada procuradora-geral, Raquel Dodge.
Quatro meses depois dessa conversa, eles pareciam estar no mesmo lugar e José Alfredo cobrou uma definição de Curitiba.
“Como os anexos estão sem elementos de corroboração suficientes, decidimos romper as negociações”, comunicou Welter. “Ótimo”, respondeu Alfredo. “Página virada.”
O material obtido pelo Intercept inclui cinco versões dos anexos apresentados por Palocci ao Ministério Público durante as negociações, com resumos dos relatos que ele pretendia fazer aos investigadores e indicações de evidências que poderiam corroborá-los.
Em 18 dos 53 anexos, não há nenhuma referência a provas.
Em pelo menos outros 9 casos, Palocci apontou processos em andamento na Justiça e depoimentos de outros delatores, como Marcelo Odebrecht e o empresário Joesley Batista, dono da JBS, como garantias de que estava falando a verdade.
Em vários casos, as provas pareciam insuficientes para comprovar os relatos de Palocci.
O ex-ministro diz que foi até o banco Safra recolher dinheiro em espécie para Lula em cinco ocasiões, mas só apresentou como prova registros de seus deslocamentos pela cidade nos dias em que afirmou ter feito as entregas.
A PF fechou o acordo com Palocci em três meses. Um dia antes de sua homologação por Gebran, o STF (Supremo Tribunal Federal) reconheceu a legitimidade da polícia para celebrar acordos de colaboração, esvaziando o principal argumento usado pelo Ministério Público contra a PF.
O chefe da força-tarefa de Curitiba, Deltan Dallagnol, chegou a sugerir que os procuradores que atuavam no TRF-4 tomassem medidas para tentar anular o acordo.
Mesmo que não houvesse chance de sucesso, ele achava que a ação poderia criar insegurança e frear outras negociações em curso com a PF.
“Ainda que as decisões sejam desfavoráveis, a simples incerteza criada pelos nossos recursos, nesta e nas próximas oportunidades, é um instrumento a favor de consolidar a posição do MPF como a mais vantajosa com que se negociar mesmo depois da decisão do STF”, escreveu Deltan aos colegas num grupo do Telegram.
A iniciativa não prosperou, porque os procuradores da segunda instância achavam que ela só serviria para criar animosidade com o Supremo e os juízes do TRF-4. Mesmo assim, a força-tarefa foi a público criticar o acordo de Palocci, que o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima chamou de “acordo do fim da picada” numa entrevista à Folha.
Depois que Moro divulgou a delação, Deltan defendeu o juiz e sugeriu aos colegas que esperassem antes de descartar o material.
“Feito o acordo, creio que temos que tentar extrair o melhor dele”, escreveu.
“Não me parece em uma primeira reflexão boa a estratégia de negar valor sem diligências.”
Os críticos silenciaram em público, mas continuaram a tratar com desprezo a colaboração do ex-ministro no Telegram.
O próprio Deltan parecia concordar com os colegas ao final da discussão sobre as provas apresentadas por Palocci.
“Deve ter mta notícia do goolge lá rs”, teclou numa mensagem.
O Ministério da Justiça e a força-tarefa à frente da Operação Lava Jato em Curitiba defenderam a validade da delação do ex-ministro Antonio Palocci, mas não quiseram comentar críticas feitas por procuradores e atribuídas ao então juiz Sergio Moro quando seus termos se tornaram públicos.
Informados sobre o conteúdo das mensagens examinadas pela Folha e pelo The Intercept Brasil, o ministério e a força-tarefa enviaram notas semelhantes, em que põem em dúvida a autenticidade do material e observam que o acordo de Palocci com a Polícia Federal foi homologado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
O ministério afirmou apenas que a aceitação do acordo pelo tribunal ocorreu “antes das supostas mensagens”.
A força-tarefa acrescentou: “Muito antes das supostas mensagens, o acordo já era reconhecido como válido por instância superior do Poder Judiciário, perante a qual não atua a força-tarefa”.
Os diálogos analisados pela Folha e pelo Intercept não põem em questão a legalidade do acordo de Palocci, mas a qualidade das provas que ele apresentou à PF para corroborar seus depoimentos, e sugerem que elas pareciam frágeis para Moro e os integrantes da força-tarefa.
“O Ministério da Justiça e Segurança Pública não comenta supostas mensagens de terceiros, obtidas por meios criminosos, nas quais, em tese, haveria referência à suposta afirmação efetuada pelo então juiz”, afirmou a assessoria de Moro.
A força-tarefa disse que “não reconhece as mensagens que têm sido atribuídas a seus integrantes nas últimas semanas” e que “o material é oriundo de crime cibernético e não pode ter seu contexto e veracidade confirmados”.
Segundo a nota, os procuradores “pautam sua conduta pela lei e pela ética”.
O advogado Tracy Reinaldet, que representa Palocci, afirmou que a efetividade de sua colaboração foi reconhecida em diferentes instâncias do Judiciário e evitou fazer comentários sobre o conteúdo da delação porque ele é sigiloso, e para não prejudicar investigações em andamento.
“O conteúdo das supostas mensagens não invalida ou modifica a colaboração de Antonio Palocci, o qual continuará cooperando com a Justiça e apresentando suas provas de corroboração”, afirmou.
“É de se dizer que, atualmente, a efetividade da colaboração de Antonio Palocci já foi reconhecida tanto por diferentes órgãos da PF e do Ministério Público Federal, quanto por diferentes instâncias do Poder Judiciário”, acrescentou.
Questionada sobre o acordo fechado com o ex-ministro e os inquéritos abertos para investigar as informações que ele forneceu, a Polícia Federal afirmou que “não se manifesta sobre supostas investigações em andamento”.
A Procuradoria-Geral da República não quis se pronunciar sobre as negociações conduzidas com Palocci, das quais participou ao lado da força-tarefa de Curitiba.
O banco Safra, citado pelo ex-ministro em seus depoimentos, não quis se manifestar.
PS do Viomundo: Só para relembrar que, depois do vazamento, entre o primeiro e o segundo turnos, Moro foi formalmente sondado para ser ministro da Justiça de Bolsonaro.
Ricardo Balthazar, da Folha
Rafael Moro Martins, do The Intercept Brasil
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