Por que o militar não gosta de Lula?
O militar não gosta de Lula e o chama de ladrão. Em suas especulações sobre a crise brasileira, salienta a falta de padrão moral consentâneo com a presidência da República.
O militar enxerga o mundo da janela do quartel: a sociedade seria demasiado anárquica, indisciplinada, desprovida de formação moral e incapaz de escolher boas lideranças.
Por “militar”, estou designando o tipo preponderante nas Forças Armadas brasileiras.
Nas corporações, há diferenças entre seus integrantes, mas predomina a unidade de valores e convicções indispensável à adoção de doutrinas norteadoras da organização e do emprego das fileiras.
O militar não gosta de Lula porque esse líder, mesmo não sendo um reformista radical, acena com mudanças sociais. Instila, de algum modo, esperança em um tempo novo, enquanto o militar cultua o legado colonial.
O militar preza a estabilidade. Mudanças sociais roubam-lhe o azimute.
Pretendendo-se criador da nação, constrangeu o constituinte a designar-lhe o papel de mantenedor da lei e da ordem. Admite, no máximo, uma modernização contemporizadora, que preserve o domínio oligárquico característico da sociedade brasileira.
Lula não bate de frente com os poderosos, mas condena iniquidades e promete “incluir o pobre no orçamento”.
Em que pese seu gosto pela conciliação de classes, sua carreira política não deixa de desafiar a hierarquia social em que se ampara a organização militar. Seu jeito de ser e de falar incomodam porque animam parcelas socialmente rebaixadas.
Apegado à estabilidade e sem argumentos válidos para se contrapor à mudança social, o militar vê em Lula um demagogo, um espertalhão em busca de proveito próprio. Um político prejudicial à boa ordem.
Lula é perigoso: na condição de chefe de Estado, pede desculpas aos africanos pela escravidão. Prega a tolerância e fere a cultura homofóbica do quartel.
Quando o militar condena Lula moralmente, evita o desgaste de rebater seu discurso antiescravagista e de repúdio ao patriarcalismo.
O militar não gosta de Lula por conta de amizades perigosas: abraça João Pedro Stedile, percebido no quartel como encarnação do inimigo interno, negador da lei e da ordem.
Lula sempre atendeu às demandas do quartel. Na cadeia, em Curitiba, disse não entender a animosidade do militar consigo, posto não o contrariara. Retornando à presidência, persiste satisfazendo a caserna.
Garante recursos para uma gigantesca escola de sargentos concebida para reforçar a ordem interna no Nordeste, região supostamente propensa à insurreição.
Abona projetos que reforçam a capacidade de combater brasileiros em detrimento da capacidade aeronaval, mais adequada à guerra contra o estrangeiro.
Usa, inclusive a expressão “Exército de Caxias”, que significa Exército repressor de insubordinações populares.
Rejeita discussão sobre Defesa Nacional para não ferir cânones estabelecidos desde sempre.
A razão principal para o militar se contrapor a Lula está na insegurança quanto ao futuro das corporações. O militar brasileiro integra o esquema de forças liderado por Washington.
Raciocina como defensor da “civilização ocidental”. Depende estruturalmente do Pentágono e absorve a pregação ideológica imperial.
Nestes tempos em que se redefine uma nova ordem internacional, o contraditório entre a veleidade de soberania nacional e os laços de dependência das corporações armadas em relação a Washington será crescentemente exposto.
O ambiente guerreiro que toma conta do planeta não permite neutralidade. O militar não gosta da aproximação de Lula com nações que considera dominadas por “ditaduras comunistas”.
A indisposição militar com Lula se agravará, não obstante seu empenho em livrar as corporações de responsabilidades quanto à tentativa de quebra da ordem institucional.
Na democracias modernas, militar não teria que gostar ou desgostar do político, mas obedecê-lo.
A vida real, entretanto, mostra que as predileções políticas do militar contam decisivamente.
O militar considera a polarização política o principal problema brasileiro, mas gostou da demonstração de força da extrema direita na avenida paulista no último final de semana.
A docilidade do militar para com Lula é uma quimera que cobrará seu preço.
* Manuel Domingos Neto é doutor em História pela Universidade de Paris, escreveu O que fazer com o militar – Anotações para uma nova Defesa Nacional
Com informações do VioMundo
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