Conteúdos patrocinados espalharam desinformação e campanhas de arrecadação para entidades religiosas
Políticos bolsonaristas pagaram para impulsionar postagens com denúncias falsas sobre um suposto esquema de exploração infantil no Arquipélago do Marajó (PA). O tema viralizou nas redes depois da apresentação da cantora Aymeê Rocha, que denunciou abusos contra crianças na região em um reality show gospel, no dia 15 de fevereiro.
Famosos e influenciadores passaram a compartilhar o vídeo da apresentação e conteúdos falsos ou descontextualizados, que trazem desinformação sobre a região. A “Ilha de Marajó” se tornou o assunto mais pesquisado no Google no Brasil em 21 de fevereiro.
Segundo a Agência Pública apurou, a partir do dia 24 de fevereiro, políticos bolsonaristas – entre pré-candidatos às eleições deste ano e parlamentares eleitos – patrocinaram postagens repercutindo as denúncias no Instagram e no Facebook.
Ao menos seis políticos investiram até R$ 100 para alavancar esses conteúdos: os deputados federais Luciano Galego (PL), do Maranhão, e Maurício Neves (PP), de São Paulo, o deputado estadual do Pará e ex-superintendente regional do Incra Coronel Neil (PL), a vereadora de Navegantes (SC) Lú Bittencourt (PL), os vereadores de São Paulo Reinaldo Digilio (PRB) e Lucas Ferreira (sem partido).
Por que isso importa?
Conteúdos desinformativos na internet muitas vezes são impulsionados por redes com interesses políticos. A comoção nas redes sobre supostos abusos de crianças no Marajó não partiu apenas de um engajamento espontâneo, mas foi alavancada com conteúdos pagos por políticos bolsonaristas.
Ao todo, as publicações renderam quase 80 mil impressões, que é a quantidade de vezes que o anúncio apareceu para usuários do Facebook e Instagram. A postagem que mais teve impressões foi a do deputado estadual Coronel Neil (PL). A propaganda circulou de 24 a 26 de fevereiro, rendendo aproximadamente 10 mil impressões. De acordo com uma pesquisa do NetLab/UFRJ, o deputado estadual também impulsionou anúncios para convocar caravanas para ato pró-Bolsonaro na avenida Paulista, no último domingo (25).
Na publicação sobre o Marajó, o Coronel Neil aproveita a apresentação da cantora gospel para falar da sua atuação na região. O vídeo usa várias fotos dele ao lado da senadora e ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves.
A vereadora Lú Bittencourt conseguiu aproximadamente 8 mil impressões no post patrocinado, em que reproduz o vídeo da apresentação de Aymeê Rocha. O conteúdo começou a circular no dia 26 de fevereiro e foi direcionado a moradores de Santa Catarina.
A vereadora também fez outras postagens sobre as supostas denúncias de exploração infantil no Marajó. No dia 27 de fevereiro, ela postou novamente o vídeo da apresentação.
As duas postagens semelhantes patrocinadas pelo vereador Lucas Ferreira mobilizam apoio para o Instituto Akachi, que ganhou fama ao mobilizar uma campanha de arrecadação de doações para combater a exploração infantil no Marajó. Os conteúdos circularam a partir de 23 de fevereiro, conquistando cerca de 10 mil impressões.
O Akachi informa, em sua página na internet, que trabalha com crianças vítimas de violência. O instituto tem sido indicado por influenciadores e políticos – como o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) – para receber doações para o Marajó via Pix. Em nenhuma das divulgações, porém, fica claro que a organização pertence a uma corrente evangélica e tem como um dos donos um pastor e ex-candidato bolsonarista.
Henrique Krigner é um dos sócios do Akachi e diretor da ONG, que tem sede em Pariquera-Açu, em São Paulo. Ele é uma das principais lideranças da igreja evangélica Zion Church e do Dunamis Movement, que promove cursos, eventos e ações voltadas a disseminar a fé principalmente entre jovens. Krigner é um dos organizadores do The Send Brasil, um dos principais eventos de música gospel do país, que recebeu críticas por fazer doutrinação política de jovens evangélicos e teve a presença do ex-presidente Jair Bolsonaro em 2020.
Krigner foi candidato a vereador de São Paulo em 2020 pelo Partido Progressista (PP), da base do ex-presidente. Recebeu mais de 16 mil votos, mas não se elegeu. Bolsonarista convicto, ele não diz em suas redes sociais se concorrerá novamente nas eleições deste ano, mas comentários em suas postagens parecem já estar em clima de torcida. “Nosso vereador em SP”, diz um deles, da semana passada.
Em 2020, apesar de ser um estreante na política, ele foi um dos candidatos que mais receberam doações – mais de R$ 920 mil, sendo R$ 650 mil de seu partido. O restante do dinheiro para a candidatura do político veio, em boa parte, de grandes empresários, como o ex-secretário de Desestatização do governo Bolsonaro e dono da Localiza, Salim Mattar, e o bilionário Hélio Seibel, um dos donos da gigante de insumos para marcenaria Leo Madeiras e um dos maiores acionistas da Dexco (Deca e Duratex). Outro doador é o fundador da Zion e Dunamis, o pastor Teo Hayashi, que doou R$ 15 mil ao colega de igreja.
Krigner gastou quase tudo o que recebeu na campanha. A quinta maior despesa que teve, no entanto, foi com a Big Wave Media, uma produtora de vídeos da qual também é sócio. Em 2018, ele foi um dos representantes da Zion Church em uma sessão solene na Assembleia Legislativa de São Paulo que homenageou Sarah Hayashi, fundadora da igreja. O evento foi presidido pelo então deputado e hoje prefeito de Americana Chico Sardelli, também aliado de Bolsonaro.
Em 2022, Sarah Hayashi recebeu a Medalha da Ordem do Mérito Princesa Isabel, uma honraria criada pelo governo Bolsonaro, das mãos de Damares Alves, ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos. Em 2022, o líder da Zion Teo Hayashi estava ao lado de Silas Malafaia e outros pastores pop em um vídeo para declarar apoio a Bolsonaro no início da sua campanha à reeleição.
A Pública entrou em contato com os políticos que impulsionam conteúdos relacionados às denúncias sobre o Marajó, mas não recebeu resposta até a publicação. Krigner e Akachi não responderam até a publicação.
A igreja Zion, o Marajó e Damares
Um dos representantes da Zion, o pastor Lucas Hayashi, já publicou um vídeo, em 2019, sobrevoando o Marajó supostamente a convite de Damares. “Representando a sociedade civil por meio da Zion Church e do Dunamis Movement, fomos até a Ilha do Marajó, lá no Pará, com o objetivo de analisar as demandas da saúde, educação e assim contribuir com o Governo Federal, juntamente com o Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos e a ministra Damares Alves, e com o programa Abrace Marajó”, disse.
Damares Alves já foi investigada pelo Ministério Público Federal (MPF) por fake news contra a população do Marajó. Ela disse que havia um alto índice de exploração sexual na região porque as meninas “não usavam calcinha” e defendeu a construção de uma fábrica de lingerie dentro das ações do programa Abrace o Marajó, lançado durante sua gestão.
Em 2022, Damares fez novas denúncias, sem provas, sobre abusos sexuais e tortura de crianças no arquipélago. Ela responde a uma ação ajuizada pelo MPF em 2022 que pede o pagamento R$ 5 milhões por relatos sem provas de abuso infantil. A ação diz também que as declarações foram feitas durante a campanha eleitoral, de modo a associar Bolsonaro, que concorria à reeleição, ao combate à pedofilia.
Essa fala de Damares voltou a circular na internet este mês junto com outros conteúdos falsos, como um vídeo em que supostas vítimas de tráfico de crianças no Marajó aparecem em um carro. Esse vídeo foi gravado no Uzbequistão. Outro conteúdo que mostra um homem beijando uma criança em um barco foi gravado no Mato Grosso do Sul.
“Esses conteúdos chegam de uma forma muito violenta para a população daqui do Marajó. Não quero descartar o que acontece na região, mas a violência sexual não é uma questão somente daqui. É preciso tratar dessas questões com muita delicadeza, compromisso. As pessoas não aprofundam a situação e acabam caindo no sensacionalismo, na estigmatização”, diz a presidente do Instituto de Direitos Humanos Dom José Luis Azcona, irmã Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante, que é uma referência no combate à violência sexual contra crianças e adolescentes no Marajó.
Irmã Marie Henriqueta avalia que, no governo Bolsonaro, houve um “desmonte de políticas para crianças e adolescentes”. “Nós não vimos efeito nenhum do programa Abrace o Marajó. Cesta básica não é combate ou enfrentamento a violência sexual.” No ano passado, a Controladoria-Geral da União (CGU) identificou danos de mais de R$ 2,5 milhões aos cofres públicos por irregularidades em ações do Abrace o Marajó.
O atual governo encerrou o Abrace o Marajó em 2023 e lançou um novo programa chamado Cidadania Marajó. “A gente espera que no governo atual a gente tenha políticas essenciais para desfazer esse contexto de miséria, produzida e reproduzida, da pobreza e da impunidade. Se as nossas crianças e adolescentes ainda sofrem violência é porque existe uma lacuna enorme feita por um processo de punição daqueles e daquelas que violam os direitos”, acrescentou irmã Marie Henriqueta.
Influenciadora presa em investigação sobre jogos de azar mobilizou vaquinha virtual
Além do Akachi, outras organizações e até influenciadores mobilizaram campanhas de arrecadação virtuais para o território do Marajó a partir das denúncias que viralizaram este mês. Na plataforma Vaquinhas, há pelo menos seis campanhas de financiamento coletivo para o Marajó abertas em fevereiro. A de maior arrecadação foi mobilizada pela influenciadora Noelle Maria de Araújo Alves, que conseguiu angariar mais de R$ 41 mil. A meta era R$ 30 mil.
Em dezembro passado, Noelle foi presa na Operação Truque de Mestre, que investiga envolvimento de influenciadores digitais com jogos de azar conhecidos como “jogo do tigrinho”. Ela foi liberada em 23 de dezembro por alvará de soltura expedido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA). De acordo com as investigações, a influenciadora administrava uma casa de swing usada para lavagem do dinheiro das apostas.
No Instagram, onde Noelle tem 180 mil seguidores, ela compartilhou fotos de cestas básicas que teriam sido compradas com as doações e postou stories mostrando o transporte de barco das cestas para o Marajó, mas as publicações não informaram os locais de entrega ou quantas cestas foram compradas. A reportagem procurou a influenciadora, mas não teve retorno do contato.
A AGU abriu investigação sobre a rede de desinformação que ajudou a espalhar notícias falsas sobre exploração sexual no Marajó. De acordo com a AGU, a investigação ainda está em fase inicial. O ministro de Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, disse em vídeo que não vai admitir que “oportunistas utilizem as mazelas e os problemas que existem em Marajó para criar pânico moral”.
Com informações do Diário do centro do Mundo
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