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A aparição de Bolsonaro diante dos brasileiros na terça-feira (24), instando a população a voltar à sua rotina, de fato provocou uma inflexão nos apoios ao presidente.

Por Jornal GGN

Quando desembarcou no Brasil, ameaçando fazer as suas primeiras vítimas, o covid-19 criou a expectativa, no campo progressista, de que colocaríamos em pauta a discussão sobre o papel do Estado. Ensaiamos.

Ao exigir o isolamento como medida para contenção da doença causada pelo novo coronavírus, a preocupação mais urgente passou a ser quanto à assistência àqueles que seriam impedidos de trabalhar. Para a grande maioria da população, não há opção entre ficar ou não em casa, por isso se revelou urgente a adoção de medidas de compensação financeira. Neste contexto, a aprovação na Câmara dos Deputados, na quinta-feira (26), da criação de uma renda mínima emergencial de R$ 600,00 para trabalhadores informais, autônomos, desempregados e microempreendedores afetados pela nova doença foi comemorado como vitória pela oposição. Engano.

Ao tempo em que se iniciava a discussão sobre o papel do Estado como garantidor de uma política de proteção aos vulneráveis, Bolsonaro, de forma hábil, invertia o foco da discussão. Enquanto o campo progressista insistia na adoção de políticas de isolamento, Bolsonaro alcançava os vulneráveis, com seu slogan “a economia não pode parar”.

A aparição de Bolsonaro diante dos brasileiros na terça-feira (24), instando a população a voltar à sua rotina, de fato provocou uma inflexão nos apoios ao presidente. A classe média, que ainda não havia desembarcado, teve seu insight. Diante da pandemia, não adianta o plano de saúde. Tampouco um presidente que flerta com a barbárie.  Não foi o momento em que se descobriu a completa ausência de empatia do presidente. Afinal, não há humanidade e civilidade em apoiar ou fazer apologia à tortura, sua marca registrada. Mas, diante da pandemia, a classe média, pela primeira vez, se viu exposta ao risco de perder a vida e seus bens. Voltou às janelas. Já agora, na companhia, em princípio desconcertada, do campo progressista.

Armínio Frgga, ex-presidente do Banco Central no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, chamou, com acerto, de falsidade a dicotomia apresentada entre salvar vidas e salvar a economia. Tarde. O campo progressista já havia embarcado numa disputa que envolve menos o papel do Estado e mais a moral. “Difícil decidir se o aspecto humano da doença é mais importante do que as suas implicações na economia e noutras áreas importantes. Muito fácil deixar a emoção guiar a política e já vimos várias vezes que isso é uma má ideia”, escreveu, em sua última postagem no Facebook, antes de morrer vitimado pelo coronavírus, o economista paquistanês Rehman Shukr, que atuava como especialista em sistemas financeiros no Fundo Monetário Nacional. Respondem os opositores “após se opor à quarentena, morre de covid-19 o economista especialista em sistemas financeiros do Fundo Monetário Internacional, de 26 anos”.

Não é apenas falsa a dicotomia entre salvar vidas e salvar economia. Falsa também é a disputa moral, embora útil para desviar o foco do principal. O que realmente está em jogo é o papel do Estado. A disputa não se dá no campo moral, mas político e gira em torno da distribuição dos recursos estatais durante a crise. Bolsonaro já fez sua escolha, escancarada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Há pressão da Bolsa de Valores para adoção de medidas menos rigorosas de enfrentamento ao coronavírus.

Não podemos esquecer o papel relevante do empresariado nesse contexto, inclusive de respaldo a Bolsonaro. Ainda nas últimas semanas assistimos atônitos a diversos vídeos de empresários convocando os trabalhadores ao trabalho sob pena de perderem o emprego. Quem convive com a alta taxa de desemprego brasileiro não quer perder o mínimo que tem. E Bolsonaro, na sequência aos vídeos – articulados? -, ao ressaltar a necessidade de se voltar ao trabalho, como se não existisse outra opção, fala para o povo temente.

“Importa garantir o trabalho, pois se não se morre de coronavírus, se morre de fome”. Esse é o som reproduzido pela massa,  a partir do discurso do presidente. Está fora da discussão a obrigação do Estado de atuar para garantir assistência ou mesmo adotar políticas para garantir o emprego. É o bem contra o mal.

O precariado aposta nas boas intenções do presidente. Aquele mesmo que aprovou a reforma da previdência, editou a MP do Emprego Verde e Amarelo e, semana passada, a MP que autorizava o corte de salários por quatro meses. Mas Bolsonaro agora aponta e seu povo se lança em direção os leões, como cordeiros.

Como se o Estado-Providência não existisse, Bolsonaro é apresentado como o grande defensor dos trabalhadores. Cola a imagem de previdente.

Surge aqui um rearranjo na luta de classes. Se o discurso do Lula era apontado como incendiário porque reforçava a polarização da sociedade, as ações de Bolsonaro, sutilmente, maximizam essa polarização numa nova fórmula. A elite econômica, para quem Bolsonaro ainda serve, não conta mais com a classe média.

Assim, a  disputa pelo Estado fica restrita aos grupos de direita. O campo progressista não entrou na arena.

Alguns assistem resignados. Outros, iludidos na crença de que a pandemia fará surgir uma norma ordem social, sem luta. Como milagre.

A “fé” está ao lado de Bolsonaro.

Simone Castro – Advogada pública, mestre em direito

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