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Em 30/01, o presidente Lula e o chanceler alemão Olaf Scholz reuniram-se no Palácio do Planalto, em Brasília. Em 03/02, durante apresentação de cartas credenciais do embaixador da China no Brasil, Zhu Qingqiao. Em 10/02, durante reunião com o presidente dos EUA, Joe Biden, na Casa Branca, Washington (EUA). Fotos: Ricardo Stuckert/PR

Ao contrário do que dizem os mal-informados, a posição do Brasil relativamente à guerra na Ucrânia tem sido basicamente uma só: condenar a intervenção, mas recusar-se a apoiar as sanções e quaisquer esforços bélicos.

Na primeira votação sobre o tema, realizada em 25/02/2022, no Conselho de Segurança da ONU, o Brasil votou também contra a intervenção.

Esse voto se repetiu em pelo menos duas grandes votações na Assembleia-Geral, realizadas em 2 de março de 2022 e 12 de outubro do mesmo ano.

Houve ocasiões, no entanto, em que o Brasil se absteve. Por exemplo, na Resolução da Assembleia-Geral que pediu a suspensão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos da ONU e na Resolução que demandava que somente a Rússia fosse responsabilizada por violações de direitos humanos.

A principal diferença entre o governo Lula e o governo Bolsonaro, nesse tema, é que, desde o terceiro mandato de Lula, o Brasil tem falado e agido eficientemente em prol da paz, coisa que o governo Bolsonaro nem tinha condições de fazer.

É por isso que a Resolução recém aprovada na Assembleia-Geral, e que tanta polêmica desinformada causou, começa com os seguintes três parágrafos:

1.Salienta a necessidade de alcançar uma paz abrangente, justa e duradoura na Ucrânia o mais rapidamente possível, em conformidade com os princípios da Carta das Nações Unidas;

2. Saúda e apoia fortemente os esforços do Secretário-Geral e dos Estados Membros para promover uma paz abrangente, justa e duradoura na Ucrânia, em conformidade com a Carta, incluindo os princípios de igualdade soberana e integridade territorial dos Estados;

3. Exorta os Estados-membros e as organizações internacionais a redobrar o seu apoio aos esforços diplomáticos destinados a alcançar uma paz abrangente, justa e duradoura na Ucrânia, em conformidade com a Carta;

Trata-se de firme exortação à paz, até agora, inédita.

E esses parágrafos, além de outros que dizem respeito ao direito humanitário, foram ali colocados e aprovados em boa parte devido a um esforço diplomático do Brasil.

No entanto, alguns desinformados, em vez de reconhecer a vitória da diplomacia brasileira em prol da paz, acham que isso é um “retrocesso”, um “abandono da neutralidade” e uma “concessão aos EUA e aliados”.

Ora, o Brasil, desde o início, repito, adotou uma postura legalista sobre o tema

Essa postura legalista faz parte da tradição diplomática brasileira. O Brasil tradicionalmente condena violações da Carta das Nações Unidas.

E a intervenção russa é, sob o prisma estritamente legalista, violação do sistema de segurança coletiva.

Nenhum país do BRICs se “surpreendeu” com tal voto brasileiro. O importante é o Brasil se recusar a participar da guerra e das sanções, como continua a fazer. É isso que lhe dá condições de ser mediador.

Pode-se argumentar, é óbvio, que EUA e aliados europeus violam sistematicamente os princípios e as regras da ONU. Sem dúvida, essa é uma verdade mais que evidente. EUA e aliados são cínicos e hipócritas.

Desrespeitaram a Carta das Nações Unidas em suas agressões contra a ex-Iugoslávia, o Iraque, a Líbia, o Afeganistão, a Síria etc. Agressões cujas vítimas ascendem a mais de 1 milhão de pessoas.

Eles fazem o que bem entendem e não têm qualquer compromisso efetivo com sistema de segurança coletiva.

Assim, eles podem ser acusados de serem cínicos e hipócritas. O Brasil não.

Nosso país tem sido coerente em suas posições. Só apoia intervenções e sanções, quando elas são aprovadas pelo Conselho.

Também se pode argumentar, como tenho feito exaustivamente, que a responsabilidade última sobre o conflito é dos EUA e aliados; não da Rússia.

Não há como negar. A guerra não teria ocorrido se os EUA e aliados não tivessem expandido injustificadamente a OTAN em direção às fronteiras da Rússia, não tivessem apoiado um regime ucraniano francamente hostil a Moscou e, sobretudo, se não tivessem recusado, reiteradamente, a estabelecer um pacto de não agressão com a Rússia e assegurado a neutralidade do território ucraniano.

Angela Merkel chegou a confessar publicamente que a Alemanha e outros países europeus assinaram os Acordos de Minsk, que intentavam resolver pacificamente o imbróglio do Donbass, apenas com o intuito de ganhar tempo para armar a Ucrânia. Negociaram de má-fé. Mais uma vez, cínicos e hipócritas.

Tenho lido também o argumento de que essa postura legalista do Brasil é ingênua e prejudica os interesses do país. Discordo.

O Brasil é um país pacifista, de soft power, que não tem forças armadas poderosas e armas nucleares, ao contrário de todos os outros BRICS, à exceção da África do Sul.

Portanto, para um país com o nosso perfil, é conveniente que o sistema de segurança coletiva funcione e seja respeitado, pois podemos ser vítimas de agressões. O fato de que esse sistema não funcione adequadamente não muda essa realidade.

Como bem destacou a China em seu Concept Paper sobre The Global Security Initiative:

Os diversos enfrentamentos e injustiças no mundo atual não ocorrem porque os propósitos e princípios da Carta da ONU estão ultrapassados, mas porque não são efetivamente mantidos e implementados.

Apelamos a todos os países para que pratiquem o verdadeiro multilateralismo; defendam firmemente o núcleo do sistema internacional com a ONU, a ordem internacional sustentada pelo direito internacional e as normas básicas das relações internacionais sustentadas pela Carta da ONU; e defendam a autoridade da ONU e seu status como a principal plataforma para a governança de segurança global. A mentalidade da Guerra Fria, o unilateralismo, o confronto em bloco e o hegemonismo contradizem o espírito da Carta da ONU e devem ser combatidos e rejeitados.

Para o Brasil, país que não tem poderio militar expressivo, defender a Carta da ONU, o multilateralismo e o sistema de segurança coletiva, bem como rejeitar a Guerra Fria e o unilateralismo, não é ser ingênuo. É ser realista e agir conforme seus interesses.

Defender o multilateralismo nada mais é do que defender a democracia no cenário global.

Num mundo tão assimétrico, trata-se de realidade ainda muito distante. Mas é um objetivo fundamental, que precisa ser constantemente perseguido.

É por isso também que o Brasil se empenha na reforma do Conselho de Segurança da ONU, órgão que reflete o profundamente anacrônico cenário mundial do pós-guerra. Se esse órgão for reformado, a probabilidade de que o sistema passe a funcionar adequadamente aumentará de modo expressivo.

Certamente, o Brasil, ao defender a paz na Ucrânia, está sendo realista.

Nosso país não está falando sozinho. A imensa maioria dos países do mundo quer que essa guerra acabe logo.

Na realidade, o Brasil está amplificando a voz dessas nações. Nosso país está agindo de forma inteiramente coerente com os interesses do chamado Sul Global.

O conflito e as sanções a ele associadas estão ocasionando, como se sabe, um custo econômico altíssimo, que se reflete na alta desmesurada dos preços de energia e de alimentos, por exemplo. E são os pobres do mundo que estão pagando o custo mais alto, na forma de fome e carestia.

Como bem observou Krishen Mehta, em seu artigo recente na Monthly Review, intitulado Guerra na Ucrânia: o Sul Global rejeita a Otan:

A história da Guerra Fria ensinou aos países em desenvolvimento que envolver-se em conflitos de grandes potências acarreta enormes riscos, mas traz pouca ou nenhuma recompensa. Como consequência, eles veem a guerra por procuração na Ucrânia como uma guerra que tem a ver mais com o futuro da segurança europeia do que com o futuro do mundo inteiro.

Da perspectiva do Sul Global, a guerra na Ucrânia parece ser um dispendioso desvio de seus próprios problemas, bem mais urgentes. Nessa conta estão incluídos o aumento nos preços dos combustíveis, a alta nos preços dos alimentos, o aumento no custo do serviço da dívida e a inflação crescente, todos problemas agravados pelas sanções ocidentais contra a Rússia.

Uma pesquisa recente publicada pela Nature Energy afirma que até 140 milhões de pessoas podem ser empurradas para a pobreza extrema pelo aumento dos preços da energia que ocorreu no ano passado.

Os altos preços de energia não apenas impactam diretamente as contas de luz, mas também pressionam para cima os preços ao longo de todas as cadeias de abastecimento e, consequentemente, em itens de consumo, incluindo alimentos. Essa inflação generalizada inevitavelmente prejudica os países em desenvolvimento muito mais do que o Ocidente.

Mesmo em Washington, há grande preocupação com a duração e o possível alargamento geográfico do conflito, o qual poderá evoluir para um confronto direto entre a Otan e a Rússia, com consequências extremamente perigosas para todos.

Apesar disso, a probabilidade atual da assinatura de tratado de paz é muito pequena, uma vez que as posições negociadoras das Partes são muito distantes.

O mesmo, porém, não pode ser dito de um armistício. Trata-se de objetivo que pode ser alcançado com mais facilidade e que poderia pavimentar, a posteriori, uma negociação de paz.

Além do Brasil, a China já está se mexendo para alcançá-lo.

Muitos países da Europa, embora não o reconheçam publicamente, também gostariam que as hostilidades cessassem logo.

O próprio presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, declarou que aceita discutir um acordo de paz com Moscou, envolvendo a China, o Brasil e países da América Latina e da África, além da Índia. O Kremlin também vê com simpatia a proposta.

A dificuldade maior seria a retirada das tropas russas da Ucrânia, inclusive da Criméia, exigência do governo de Kiev para negociar. Essa exigência não é realista, mas poderia ser abrandada nas negociações de um armistício. Num armistício, as Partes podem manter suas posições. Apenas concordariam com o fim das hostilidades.

A outra grande dificuldade está nos EUA, que deseja enfraquecer a Rússia e derrotá-la.

Nada está garantido. Mas, graças, em boa medida, ao Brasil e à indiscutível liderança internacional de Lula, o mundo está um tantinho mais próximo da paz. Isso não é pouca coisa.

Orgulhem-se.

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

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