“Novo para Joaquim Falcão deve ser “o velho decido conforme minha consciência”; novo para Joaquim Falcão deve ser a velha aplicação da inversão do ônus da prova; novo para ele deve ser a transformação da prova em uma questão de crença”.
O mestre e professor Arnaldo Vasconcelos, da Universidade Federal do Ceará e da Unifor, relatava uma boa história. Com a queda de Getúlio, acirraram-se as discussões de que a Faculdade de Direito seria estadualizada, como quando de sua fundação em 1903. Em tom acalorado, alguém insistia que sim, a estadualização da Faculdade já estava decidida. Sabia-se até quem seria o novo Diretor. Ao ouvir o nome deste novo Diretor, o interlocutor respondeu: “que coisa, estadualizaram demais!”
Toda crítica deve ser respeitosa, o que não impede os necessários bom humor e conteúdo. Lemos as palavras do professor Joaquim de Arruda Falcão sobre o surgimento de um novo Poder Judiciário a pedir passagem (sic), — ler aqui corporificado nos membros da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região enquanto julgavam o recurso do ex-presidente Lula. Com todo respeito, tanto aos membros da 8ª Turma do TRF-4 quanto ao professor Joaquim Falcão, “estadualizaram demais”.
Sobre o aspecto geral do comentário do professor Falcão chamou nossa atenção como ele vê com naturalidade, sem qualquer problema, a ruptura de garantias constitucionais processuais, caracterizadoras da diferença entre processo civilizado e barbárie. A primeira é que no julgamento de 24.1.2018 foi rompido o paradigma de que o ônus da acusação recai sobre o acusador e o réu defende-se. A segunda é que foi negado ao réu o direito de produzir provas, como rastreamento de recursos financeiros, ouvida de testemunhas. Para não se mencionar as suspeições do juiz, do presidente do TRF-4 e até mesmo do relator, ou ainda o tempo recorde em que o recurso foi julgado; seguindo-se o caminho contrário do que o diabo Mefistófeles diz: “É curto o tempo, é longa a arte”[1].
Novo para Joaquim Falcão deve ser “o velho decido conforme minha consciência”; novo para Joaquim Falcão deve ser a velha aplicação da inversão do ônus da prova; novo para ele deve ser a transformação da prova em uma questão de crença. Lá vem o novo! Brecht é insuperável, no poema Parada do Velho Novo, que começa assim:
Eu estava sobre uma colina e vi o Velho se aproximando, mas ele vinha como se fosse o Novo. (…) O grito: Aí vem o Novo, tudo é novo, saúdem o Novo, sejam novos como nós! seria ainda audível, não tivesse o trovão das armas sobrepujado tudo.
O novo que “pede passagem” para o professor Falcão é entender como perfeitamente legítimo dizer que “a prova da propriedade está no comportamento registrado. E não no papel, na escritura A ou B. Simples assim”. Será esse o “novo” que pede passagem? Não, caro mestre, não: a lei não entende assim. E a Constituição diz exatamente o contrário do que professor Falcão celebra nos novos magistrados: esta Constituição não permite ao magistrado — nem a ninguém — ir além do que o Poder Constituinte disse. Portanto, a propriedade terá que ser provada; eis o que é simples. Não há como se transformar a formalidade exigida pela lei em informalidade transmitida por juízes. Novamente por uma singela razão: a Constituição não nos permite esta informalidade, ainda mais para privar alguém de sua liberdade de ir e vir.
Se se transforma a complexidade de casos como este em informalidade, a primeira vítima será a democracia. Se foi informalizado o direito de alguém se defender, e lançada a defesa à subjetividade do julgador, não há como subsistirem constituição e leis, e consequente não subsiste qualquer estatalidade garantidora do Estado de Direito. Se este é um novo comportamento que se deseja, pensamos que o abismo está logo adiante, “cavados com nossos pés”. A reflexão teórica do Direito amadurecida por milênios de observação e riqueza de concretas experiências é relegada a um plano secundário pelo professor Falcão. Nada mais seriam que “abstrações estrangeiras. Em geral ultrapassadas”. É esse o “novo que pede passagem”? Que parece abrir mão do discurso científico como garantia da segurança jurídica em favor de um pretenso “senso comum que emana dos fatos”? Em meio as tais abstrações inservíveis, deve ser registrada a contribuição intelectual brasileira, resultante de um dos raríssimos momentos de defesa da democracia e ampliação de direitos fundamentais do Poder Judiciário: a doutrina brasileira do Habeas Corpus, do começo do século XX, e que caminhou na direção oposta do que hoje se assiste, com o fim da presunção da inocência, da limitação dos recursos e inversão do ônus da prova.
Outra coisa que Falcão considera o novo que pede passagem é que “A transmissão ao vivo permitiu a cada um de nós formar a própria opinião. Escolher um lado. Quase pegar a justiça com as próprias mãos, com as mãos do seu próprio entendimento. Restou provado que o Tribunal Federal da 4ª Região pretendeu ir muito além de simplesmente julgar o ex-presidente.”
Ora, uma afirmação dessa pode levar a que o Direito se confunda com linchamento. Quer dizer que transmitir pela TV é algo que faz com que cada pessoa escolha um lado? Mas, professor, não é o Direito um remédio contra as paixões populares? Quer dizer que “o novo” para o professor é fazer uma espécie de quiz show jurídico? E desde quando decisão jurídica tem algo a ver com escolhas, mormente por intermédio da mídia? Faltou só dizer que o resultado poderia vir via facebook.
Claro que os desembargadores da 8ª Turma do TRF-4 inovaram. Afinal, criaram as bases de uma nova compreensão do Direito, e de uma nova “metódica” do que seja decidir, que é seguida, concretamente, no mundo inteiro, adotada pelos tribunais mais modernos e garantidoras do “encantamento” universal com suas novas teorias do direito, já devidamente consolidadas (permitimo-nos esta ironia). Depois de tudo isso, novamente Goethe tem razão: “não me conformo com jurisprudência”[2].
Por último, se o professor Joaquim Falcão e o TRF-4 — e quem no Direito assim pensa — estiverem certos, não há mais Constituição. Se vencem, todos perdem. Se fôssemos colocar em uma frase o que fez o TRF-4 e a elegia que lhe fez Joaquim Falcão, diríamos: com a conivência dos próprios juristas, o Direito foi substituído por uma péssima teoria política do poder. Esqueceram que quem vinha impedindo isso era o que agora abominam: o próprio Direito.
De nossa parte, afirmamos: se o novo é esse, preferimos coisas velhas como a doutrina do Habeas Corpus forjada com muito esforço por brasileiros; gostamos de coisas velhas como “prova para condenar tem de ser robusta”; “em processo penal não se inverte o ônus da prova” e quejandos. Aliás, coisas velhas ainda adotadas na Alemanha e outros países civilizados. Na verdade, preferimos a coisa mais velha e salvadora do Direito: a Constituição. Entre ela e a pretensa opinião pública, entre ela a “escolha de lado” midiática, entre ela e os discursos morais ou moralizantes, preferimos ela, a Constituição.
Só mais uma coisa: homenageando o grande Arnaldo Vasconcelos e a história por ele contada, não dá para “estadualizar tanto assim”!
1Goethe, Johann Wolfgang. Fausto – Uma Tragédia. Primeira parte; Ed. 34: SP, 2004, p. 177.
2Id. Ib., p. 191.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é jurista e professor titular da Universidade de Fortaleza (Unifor).
Marcelo Cattoni é jurista, professor titular de Direito Constitucional da UFMG, doutor e mestre em Direito (UFMG).
Fonte: Conjur