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Como tem sido ressaltado por eminentes teóricos do Direito, o conceito de Estado de Direito, como complemento necessário do Estado Democrático, foi uma conquista da humanidade. Com efeito, é de fundamental importância que o comando do poder político seja democrático, expressando a vontade e dando prioridade aos interesses reais da maioria dos governados. Mas para que isso tenha clareza e eficácia é absolutamente necessária a ordem jurídica, que estabelece direitos e obrigações e define os meios para garantia e efetivação dos direitos de todos, sem exclusões e discriminações. A formalização dessas exigências caracteriza o mais avançado constitucionalismo, sendo oportuno lembrar que a Constituição brasileira de 1988 tem sido reconhecida e exaltada em eventos jurídicos e políticos como das mais democráticas do mundo.

Essa característica fundamental do novo constitucionalismo tem o seu reconhecimento no dispositivo da Constituição basileira que estabelece como primeira competência do Supremo Tribunal Federal a « guarda da Constituição ». Esse dispositivo deixa mais do que evidente a correlação do político com o jurídico, ou seja, o relacionamento necessário do direito com a política. As decisões políticas são, necessariamente, também jurídicas, mas, por outro lado, as decisões jurídicas têm, também, implicitamente, um conteúdo político. Na literatura jurídica mais recente aparece um questionamento entre as expressões « politização do Judiciário » e « judicialização da política ». Na realidade, existe uma conjugação necessária da política com o direito ou vice-versa, pois assim como o político não pode ignorar o direito ou opor-se a ele, o jurista, seja qual for seu campo especifico de atuação, estará sempre atuando no campo político, influindo sobre ele. Por esse motivo, não pode ser aceita a atitude do julgador que se afasta dos padrões fundamentais do Direito visando a consecução de objetivos políticos. Isso se aplica tanto aos Juízes de primeira instância e das instâncias superiores quanto aos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

Por todas essas razões, é inaceitável a atitude do julgador que ao participar de uma decisão judicial coloca em primeiro lugar, como diretriz para a decisão, suas convicções e preferências políticas, ignorando, ou mesmo contrariando frontalmente, os preceitos jurídicos consagrados na Constituição e na legislação vigente. Pois foi isso, precisamente, o que fez o Tribunal Regional Federal da 4a. Região, o TRF-4, no julgamento de Lula, como tem sido claramente demonstrado por eminentes juristas, em análises objetivas e muito claras, confrontando os argumentos invocados pelos julgadores com os princípios e as normas fundamentais de Direito, expressamente consagrados na Constituição e na legislação penal brasileiras.

Uma análise merecedora de destaque, por seu conteúdo e também pela experiência e grande autoridade de seu autor, foi feita pelo eminente Magistrado Sílvio Luís Ferreira da Rocha, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica de São Paulo e com rica experiência como Juiz Titular da 10a. Vara Criminal Especializada em Sistema Financeiro e Lavagem de Dinheiro. Em magnífico artigo publicado no portal « Justificando » no dia 25 de Janeiro, o preclaro Professor e Magistrado ressalta, de início, aspectos de extrema relevância a respeito das normas e teorias jurídicas da área Criminal, fazendo em seguida a crítica, serena e objetiva, de aspectos fundamentais do julgamento do ex-Presidente Lula pelo TRF-4.

O ponto de partida de sua análise é a lembrança de um requisito básico para a correção e a legitimidade das decisões, assim exposta: « Dentre a exigência de assegurar-se, no contexto de um sistema democrático, um julgamento justo a todos os acusados, está a de condenar-se alguém, em especial no âmbito penal, apenas quando estiver certa a ocorrência de um crime e comprovada por provas, isenta de qualquer dúvida razoável, a sua autoria, coautoria ou participação. » Em seguida, tecendo considerações sobre os meios de convencimento do julgador, faz uma ressalva de extrema relevância : « É certo que existe o sistema de persuasão racional, no qual o Juiz tem o dever de fundamentar sua decisão, indicando os motivos e as circunstâncias que o levaram a admitir a veracidade dos fatos em que se baseou a decisão ». Entretanto, observa em seguida, « esse sistema de persuasão racional não se contenta somente com a produção de uma motivação clara e coerente, mas exige mais, como a existência efetiva de fatos confirmada pela análise crítica de todas as provas disponíveis ».

Quanto a esta exigência, pode-se dizer que, na decisão do TRF-4, foi feita uma distorsão da teoria alemã geralmente identificada como de « dominio do fato », que, numa aplicação errônea, dispensaria a exigência de provas objetivas. Na realidade, essa teoria não serve de base para fundamentar a responsabilidade penal simplesmente pela posição hierárquica de quem poderia ter dado determinada ordem. Pela teoria do domínio do fato esse pode ser um dos elementos a serem considerados, mas complementado pela prova de que o superior hierárquico praticou, efetivamente, o ato que está sendo questionado. O que se exige é a comprovação efetiva de fatos, confirmada por elementos constantes do conjunto acusatório. Ora, a denúncia de que haveria, por parte dos empresários, a oferta ou promessa de vantagens indevidas a funcionários públicos para determiná-los a praticar, omitir ou retardar ato de ofício seguido da aceitação de promessa ou do recebimento de vantagens indevidas pelos funcionários, abrangendo diferentes Diretorias e órgãos públicos federais, teriam um comando superior e comum, que seria precisamente o Presidente Lula, que além de Chefe do Governo era também líder de uma das principais legendas políticas envolvidas, não foi comprovada. A única base para essas afirmações são os depoimentos de acusados, por meio de delações premiadas, o que, obviamente, está longe de configurar a existência de elementos concretos de prova.

Com base no exame dos elementos reunidos pela acusação e analisando a atitude dos julgadores, o professor e magistrado Sílvio Luís Ferreira da Rocha destaca que nenhum dos empresários ou agentes públicos que fizeram delações ou declarações mencionou o Presidente Lula e conclui pela inexistência de comprovação para fundamentar uma condenação, que foi decidida sem que houvesse provas, voltando a lembrar que « o sistema pautado pela persuasão racional ou livre convencimento motivado do juiz exige a existência de fatos, confirmada pela análise crítica de todas as provas disponíveis ».

Além dessa valiosa análise do julgamento que resultou na confirmação da condenação do ex-Presidente Lula, outros juristas eminentes também publicaram depoimentos, fazendo a análise dos aspectos fundamentais do julgamento e externando sua opinião sobre o desempenho dos julgadores e sobre questões jurídicas fundamentais ligadas a esse julgamento e merecedoras de especial consideração. Uma particularidade que deve ser ressaltada é que nenhum jurista fez declarações ou publicou qualquer depoimento manifestando concordância com a decisão condenatória ou sustentando a regularidade do julgamento. Ao contrário disso, deixaram clara sua convicção de que a decisão foi antijurídica e injusta, pois houve uma condenação sem prova.

Nas manifestações contrárias à forma de julgamento e às conclusões, alguns dos analistas observaram que a prática de indicar nomes para o preenchimento de determinados cargos é de conhecimento público, sendo que em muitos casos, as nomeações são feitas envolvendo acordos com partidos ou com aprovação prévia de outras instâncias, como o Congresso Nacional. Cabe lembrar aqui que essas consultas e buscas de influência ocorrem, inclusive, na designação de magistrados para órgãos superiores do Judiciário, como é de conhecimento geral, sendo muito anteriores ao período do governo Lula. Além disso, alguns delatores falaram na existência de uma « conta-corrente », para sustentar que isso, que é uma prática corrente, também ocorreu quando Lula era Presidente, mas nenhum deles indicou bancos, valores e outros meios de movimentação de tais recursos, ou seja, não foi sequer indicado um elemento concreto de prova. Quanto a esse aspecto, pode-se dizer que os julgadores ignoraram ou fingiram ignorar que o Supremo Tribunal Federal já afirmou claramente, em mais de uma ocasião, que « a mera palavra dos delatores não serve isoladamente como prova para condenar ninguém ».

É oportuno assinalar que essa prática, que o TRF-4 está criminalizando ao condenar Lula não com provas, mas com um ataque direto a atividades de caráter político-administrativo, são prerrogativas inerentes ao cargo de Presidente da República. Sarney, Collor e Fernando Henrique nomearam para cargos de diretoria muitas vezes ouvindo reivindicações de várias origens, assim como se beneficiando de financiamento privado para suas campanhas e as de seus partidos. A par disso, pode-se ainda acrescentar que nenhum elemento concreto de prova foi obtido ou juntado aos autos, resultando disso uma condenação sem prova , por isso mesmo ilegal e injusta. E deve-se assinalar ainda que o aumento da pena imposta ao ex-Presidente Lula para mais de oito anos pelo crime de corrupção passiva só ocorreu para evitar a prescrição retroativa. Com esse aumento da pena o processo continuará em aberto até o momento da inscrição de candidatos para a próxima eleição presidencial, fazendo supor que o objetivo final imediato tenha sido criar obstáculos para a candidatura de Lula à Presidëncia da República.

Aí está, em síntese, o que foi o julgamento da TFR-4 que culminou com a condenação de Lula. Outros aspectos negativos poderiam ser apontados, mas o que aqui foi exposto é suficiente para deixar evidente que houve uma decisão manifestamente contrária ao Direito e à Justiça e, por essa razão, degradante para o Judiciario.

Por Dalmo Dallari* *Jurista. Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, pela qual se formou e da qual foi diretor. Entre suas principais obras, destaca-se Elementos de Teoria Geral do Estado.