“É válido aprendermos algo com os erros cometidos para não repeti-los, e ter um 2020 de acumulação política e social”
Escrevo minha última artigo do ano (voltarei no sábado 4 de janeiro de 2020) a partir de Caracas, onde participarei de um seminário organizado pela Rede em Defesa da Humanidade, Telesur e o Ministério da cultura da Republica Bolivariana da Venezuela.
Começávamos, há 12 meses, um 2019 cheio de altos e baixos políticos, quase tantos como os da minha vida emocional. Chegávamos a Caracas eufóricos depois de um mês de governo de López Obrador no México, onde já se vislumbrava um reimpulso do ciclo progressista latino-americano.
Mas a autoproclamação do fantoche do Departamento de Estado [Juán Guaidó], seguida do respaldo cultural aos golpistas, junto com a sabotagem elétrica, semeavam nuvens negras no horizonte emancipador de Nossa América.
No entanto, terminamos este 2019 com uma Venezuela estável e onde, apesar das constantes agressões e a guerra econômica, foi possível ir superando todas as dificuldades impostas pelo inimigo. Mas ao mesmo tempo, e para além da Venezuela, terminamos o ano com Bolívia , o país latino-americano com a maior estabilidade política, econômica e social quebrado por um golpe de Estado, e com Evo Morales refugiado na Argentina.
Tudo isso enquanto acontecem as insurreições populares no Haiti, Honduras, Equador, Chile e Colômbia, e a onda feminista vai se convertendo em um tsunami imparável que interpela segmentos da população onde não chegam os partidos políticos tradicionais.
Pensando nestes países, Bolívia, de onde tenho nacionalidade, e México, país onde moro, uma pergunta martela minha cabeça durante todo o seminário: Por que a esquerda de um país com tanta tradição revolucionária como o México tardou 12 anos para chegar ao governo (30 se contamos desde 1988), e como um processo tão sólido como o boliviano desmoronou em questão de dias?
Ambos processos, Bolívia e México, salvo as distâncias culturais e geográficas, têm algumas características em comum:
A importância do líder
O caudilho que fala como seu povo, que come onde come o povo e cristaliza seus sonhos e aspirações, gerando uma onda de esperança com sua chegada, junto com uma tremenda politização da sociedade.
O simbólico
Se pudéssemos definir a ruptura cultural com o neoliberalismo na Bolívia, esta seria sintetizada pela palavra inclusão. No México provavelmente o simbólico, que é o ponto de partida de qualquer construção de hegemonia, seja o fim do Estado Maior Presidencial, a Comissão da Verdade no caso Ayotzinapa, ou a Lei de Anistia para os camponeses mais pobres.
O material
Como o povo não come ideologia, em ambos os processos há uma aposta na redistribuição. Em cada caso segundo a correlação de forças existente. No México não dá mais que para ampliar uma rede de programas sociais e na Bolívia foi possível ir mais além e nacionalizar os recursos naturais ao mesmo tempo em que se dava à luz uma nova Constituição. A esquerda e os projetos possíveis em cada tempo e lugar.
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Três características comuns e 5 desafios ou ensinamentos que podemos ter do processo de mudanças boliviano para pensar a quarta transformação mexicana:
1 – O governo sempre está em disputa. Apesar do líder, os projetos que se contrapõem no interior do governo nem sempre vão na mesma direção, sobretudo em processos nacional-populares com apoio tão amplo nas urnas.
2 – O Estado é um monstro que nunca pode ser desmontado por completo. A polícia e o Exército, junto com outras expressões das elites econômicas ou midiáticas no interior do Estado, nem sempre respondem à conduta do líder.
3 – A importância do partido. Nem todo mundo cabe dentro de um partido que sempre tem que estar à esquerda do governo, e inclusive em disputa com outros poderes do Estado em defesa do processo de transformação. O partido deve sempre ser uma ferramenta para a luta institucional, sim, mas também uma ferramenta para a luta de massas e a luta ideológica. Se não se complementam essas três lutas, começam os problemas, como já foi comprovado não só na Bolívia, mas também no Brasil e no Equador.
4 – O problema das classes médias pós-neoliberais. O povo não come ideologia, mas só com o material não é suficiente. A disputa cultural é construir alternativas para essas milhões de pessoas de origem popular que saem da pobreza, é o fio condutor entre a estrutura e a superestrutura, espaço onde além do mais deve se dar a batalha no âmbito midiático.
5 – Estados Unidos. Ao imperialismo nem um tantinho assim, porque os Estados Unidos não têm amigos, mas sim interesses, e seu objetivo sempre será impor sua voracidade pelos recurso naturais por cima de qualquer interesse nacional latino-americano. E para isso vai utilizar qualquer dos tentáculos disponíveis, Departamento de Estado, serviços de inteligência, embaixadas… ou OEA.
No fim, mesmo que nenhum processo possa ser cópia de outro, é válido aprendermos algo com os erros cometidos para não repeti-los, e ter um 2020 de acumulação política e social a partir da base, dos povos, mas também a partir de cima, dos governos progressistas.
* Katu Arkonada é cientista político especialista em América Latina
Tradução: Mariana Serafini
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