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“É exatamente a condição de mulher e indígena que submeteu a vítima a uma situação de extrema vulnerabilidade”

O ano de 2023 foi marcado por uma série de violências contra as mulheres indígenas, como o brutal abuso e assassinato da jovem Karipuna Maria Clara Batista, de apenas 15 anos de idade, internada em hospital de Caiena, capital da Guiana Francesa, em estado grave, no mês de setembro.

Após ser violentada, seu algoz tentou afogá-la na lama da região pantanosa. A jovem indígena sobreviveu, cambaleante e agonizante, tendo perdido sua vida em 17 de setembro de 2023, segundo confirmação do óbito pelo Conselho de Caciques dos Povos Indígenas de Oiapoque (CCPIO).

É sabido que a taxa de estupros vem crescendo no Brasil, um país forjado na opressão, no patriarcado, no racismo e na violência e que, após quatro anos de um governo misógino, paga caro por suas opções e consequências. Conforme já noticiou o Estadão, os estupros vêm batendo recorde no Brasil com 8 ocorrências por hora; sendo que oito em cada dez vítimas de violência sexual têm menos de 18 anos.

O aumento dos feminicídios é também uma realidade, com crescimento de 6,1% em 2022, destacando-se em Rondônia e Mato Grosso do Sul (https://www.estadao.com.br/brasil/estupros-batem-recorde-e-brasil-registra-8-ocorrencias-por-hora-por-que-casos-crescem/).

A situação é ainda mais grave e alarmante quando o recorte utilizado diz respeito às mulheres indígenas.

Este terrível crime contra a mulher, que ceifou a vida da jovem Karipuna Maria Clara Batista, poderia ser equivocadamente visto como um caso isolado, ainda que trágico, distante de um contexto estrutural, intersubjetivo e institucional. Erro comum no seio da sociedade brasileira, incapaz de reconhecer os verdadeiros motores de suas bases discriminatórias, patriarcais e racistas.

A violação e morte de Maria Clara resulta diretamente da ação do criminoso, já preso, segunda noticia a mídia, e que possui raízes e causas mais profundas e interseccionais.

É exatamente a condição de mulher e indígena que submeteu a vítima a uma situação de extrema vulnerabilidade. Significa afirmar que, se a mulher brasileira, em geral, compõe uma maioria vulnerabilizada e terrivelmente submetida a toda a sorte de violência (física, moral, espiritual, econômica etc.), as mulheres pretas, pardas e indígenas sofrem ainda mais sob as dinâmicas de uma violência de gênero que as considera como “corpos violáveis”, sem qualquer importância para uma sociedade capitalista e utilitarista, seja em razão da cor da pele ou por conta de suas culturas e cosmologias.

Poderíamos analisar quaisquer das espécies de violência referidas acima, porém os fatos recentes pedem um olhar sobre a violência sexual e sobre o feminicídio contra as mulheres de culturas originárias.

No Brasil, sequer existe uma política pública a ser promovida a partir do levantamento de dados e estatísticas sobre a extensão e dimensão das violências cometidas contra as mulheres indígenas.

A constante e incessante violência contra tais mulheres é naturalizada, invisibilizada e crescente, sendo produto de mais de cinco séculos de colonização e opressão, na medida em que as invasões das terras tradicionais indígenas e que rompe com as bases fundamentais para a existência destes mencionados povos originários, atinge principalmente suas mulheres.

A escravização, o estupro e o genocídio ainda marcam o comportamento neocolonizador da sociedade brasileira. Dentre tais dinâmicas, também a invasão das terras indígenas e as proposições políticas e legislativas que visam espoliar referidas bases existenciais (como o marco temporal), são fatores que inserem tais mulheres sob uma situação de extrema desproteção, o que pode ser percebido por dados já coletados.

As mulheres indígenas constituem apenas em torno de 0,5% de estudantes nas universidades, apesar de algumas políticas de cotas, já implantadas, como a mais recente alteração promovida pela Lei nº 5.384/2020, que prevê a promoção de políticas públicas de indígenas também nos programas de pós-graduação stricto sensu, que abrangem os cursos de mestrado e doutorado. Referidas estudantes, não raro, sentem-se obrigadas a abandonar a universidade diante dos obstáculos enfrentados (mobilidade; barreiras linguísticas e culturais, impostas pela sociedade ocidental – https://www.generonumero.media/reportagens/ingresso-de-mulheres-indigenas-nas-universidades-cresce-620-desde-2009/).

Com menor possibilidade de concluir o ensino básico, as meninas indígenas tendem a viver mais sob condições de extrema-pobreza.Nos termos de pesquisas já apresentadas pelo Instituto Igarapé, constata-se um aumento de 167% no número de feminicídios cometidos contra mulheres indígenas entre os anos de 2000 e 2020 (https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2022/11/mulheres-negras-sao-vitimas-de-quase-7-em-cada-10-feminicidios-no-brasil.ghtml), com um aumento da violência contra tais vítimas no patamar de 425% apenas no Estado do Mato Grosso do Sul, num período de seis anos(https://fundacaoverde.org.br/as-mulheres-sao-as-principais-vitimas-da-violencia-praticada-contra-as-comunidades-indigenas-no-mundo/).

Não há como não mencionar as falhas no desenvolvimento de políticas públicas e proposições legislativas protetivas dos direitos das mulheres, quando o recorte são as mulheres indígenas, que sequer participaram das discussões e do processo legislativo que deu origem à Lei Maria da Penha (dentre outras) e que, portanto, não tangencia as cosmologias e as singularidades das culturas originárias.

Assim, não surpreendem, no âmbito global, os dados das Nações Unidas e que demonstram que a cada três mulheres indígenas, uma já sofreu violência sexual ao longo da vida (https://www.onumulheres.org.br/noticias/relatora-especial-da-onu-sobre-os-direitos-dos-povos-indigenas-recomenda-maior-documentacao-dos-problemas-enfrentados-pelas-mulheres-indigenas-do-brasil/). A Organização dos Estados Americanos (OEA) propõe princípios para orientação dos Estados visando a proteção das mulheres indígenas, como por exemplo, o enfoque holístico na efetivação de políticas; empoderamento de tais mulheres, que devem ser vistas como agentes de mudança (não apenas como vítimas); a promoção de um olhar interseccional no enfrentamento das violências contra as mulheres indígenas, uma vez que a superposição de distintas ordens de discriminação agrava e potencializa tais violências; o fortalecimento da autodeterminação destas mulheres, concretizada pelo respeito aos seus territórios e recursos naturais; a indivisibilidade entre os seus direitos individuais, econômicos, sociais e culturais; e, ainda, a compreensão sobre os direitos das mulheres indígenas em suas dimensões individual e coletiva, cuja interconexão é inegável e inseparável. (http://cidh.org/MulheresIndigenas/Brochure-MujeresIndigenas-pt.pdf).

A violência contra as mulheres oriundas das culturas ancestrais e tradicionais decorre das discriminações estruturais e interseccionais.

O trágico feminicídio que vitimou a jovem Karipuna Maria Clara Batista, com apenas 15 anos, ceifando seu futuro e seus sonhos, é mais um caso – dentre tantos – que resulta de uma visão ainda predominante no Brasil, de aspecto colonizadora e que considera tais mulheres indígenas inferiores, sexualmente disponíveis e/ou vítimas fácies, conforme afirma a OEA (http://cidh.org/MulheresIndigenas/Brochure-MujeresIndigenas-pt.pdf).

As mulheres indígenas representam centros espirituais e que reproduzem a cada nova geração as culturas ancestrais, condição particular em cada uma das mais de quatrocentas culturas indígenas existentes no Brasil, se considerados os povos em isolamento voluntário.

A violência sexual e o feminicídio cometidos incessantemente no Brasil contra tais mulheres geram consequências de ordem existencial, com a grave capacidade de ruptura sobre o desenvolvimento relacional de cada uma destas mencionadas culturas.

O Brasil precisa agir com rapidez para proteger suas mulheres, incluídas as indígenas, que vêm promovendo mudanças civilizacionais reais no país.

Flávio de Leão Bastos Pereira – Professor de Direitos Humanos. Doutor em Direito Político e Econômico. Coordenador do Núcleo de Direitos Indígenas e Quilombolas da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP. Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor convidado pela Universidade Tecnológica de Nuremberg. Especialista em genocídios e direitos humanos (Universidade de Toronto e Zoryan Inst.) Advogado atuante em Direitos Humanos. Autor da obra “Genocídio Indígena no Brasil: Desenvolvimentismo Entre 1964 e 1985” (Juruá, 2018).

Lígia de Souza Cerqueira – Advogada criminalista. Pós-graduada em direitos humanos pela Universidade Católica Portuguesa (2022). Especialista em execução penal pelo Instituto Iberoamericano de Estudos Jurídicos – IBEROJUR (2021). Graduada em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2020). Associada à Frente Ampla Democrática pelos Direitos Humanos.

Com informações do Brasil 247

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