No tempo veloz das redes sociais e da ignorância planejada da mídia sobre o que não interessa ser exposto, a seletividade é a norma. O mundo dos jornais, revistas e, sobretudo, da TV, permite-se descolado da realidade social de tal modo que, no Brasil, é permitido aos grandes meios de comunicação ignorar que há 23 dias 7 pessoas, militantes de movimentos populares, estão em greve de fome, pedindo que o Supremo Tribunal Federal paute uma ação que julga o princípio constitucional da presunção de inocência.
23 dias de fome de justiça.
A iminência de uma tragédia de vidas perdidas por uma causa que não lhes pertence individualmente – senão como cidadãos de um país que perdeu seus referenciais jurídicos e de democracia – possui algo de muito dramático que não diz respeito a eles, mas às autoridades a quem se dirigem, e que se recusam a recebê-los, bem assim aos donos dos meios de comunicação que lhes negam a publicização de seu sacrifício: torna-os cúmplices do desfecho qualquer que seja ele. Mostra a faceta de homens e mulheres de um país órfão de solidariedade, onde a vida está completamente banalizada.
23 dias de fome de liberdade.
Pedindo que a Suprema Corte cumpra com sua obrigação de fazer a prestação jurisdicional e julgue uma matéria. Um pedido obsceno não em si mesmo, mas pela necessidade de ser feito, exigido, miseravelmente solicitado, colocando a morte na contrapartida, com a mansa passividade de um martírio.
Como instrumento de luta, as greves de fome são historicamente consideradas como significativas formas de resistência e protesto político e social, desde Gandhi. Mulheres e homens fazem da ausência de uma necessidade vital à sobrevivência a marca de sua luta. No caso presente, no outro extremo, os destinatários da exigência firmam um silencioso e cúmplice pacto com os donos da comunicação: fingem não ver, não saber, não compreender, evidenciando um distanciamento inaceitável do outro, que coloca em questão a própria ideia de humanidade.
A Ministra Carmem Lúcia recebeu militantes, juristas e artistas em audiência no dia 14 de agosto de 2018, entre eles Frei Sérgio Gorgen, um dos grevistas. Disse-se sensibilizada pela pauta, comprometeu-se a visitar os demais. Não o fez e recusou-se a recebê-los ao ser solicitada. Apareceu na redes no dia 20 de agosto, em um evento, cantando e dançando samba, com um grupo de mulheres que exercem altos cargos públicos e a cantora Alcione. Na aparente leveza de sua vida de eventos, não deixa transparecer o grande paradoxo entre o discurso e sua prática, que efetiva a legitimação do esquecimento. Esquecimento não apenas de uma pauta, uma promessa, mas do conteúdo humano que porta. Fora do foco, ela administra o mundo de um poder sombrio, sem pandeiro ou tamborim. As rimas são pobres e o ritmo se afina com o descaso com as reivindicações de uma sociedade, exposta à esquizofrenia de um sistema de justiça que nem mais se reconhece no nome. Falta colocar amor na cadência, como pedia Vinicius.
Lembrando o ator Osmar Prado em sua emocionante intervenção na reunião no STF: quantos mortos ainda serão necessários para que se tome uma atitude republicana e correta? Quantos suportaremos? Respondo eu: depende de quantos morram sem causar alarde. Depende do quanto de silêncio possa ser produzido pelo pacto mortal de vilania e ignorância, com a certeza da impunidade.
* Tânia Maria de Oliveira é membro da ABJD – Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, assessora no Senado Federal da República