Historiador e pesquisador popular, conta como Ceilândia foi construída e explica sua origem ao dizer que a cidade é a única região administrativa do DF ser formada integralmente pelos candangos que vieram construir a capital da República
“A terra dos candangos excluídos e incansáveis.” É desta forma que o professor de história e pesquisador popular, Manoel Jevan Gomes de Olinda, o Professor Jevan, classifica a cidade de Ceilândia. Pesquisador da história local, Jevan tem um conhecimento profundo sobre aquela que, conforme demonstra sua pesquisa, é a única cidade dentro do Distrito Federal que foi totalmente formada pelos trabalhadores que vieram para o Planalto Central para construir a capital da República.
“Ceilândia surgiu de uma grande exclusão social. Foi uma higienização da população pobre que morava no entorno da capital [Plano Piloto]. Isso ocorreu no regime militar e não foi feito só aqui no DF, mas também em São Paulo, com o surgimento de Osasco, e no Rio de Janeiro, com a Cidade de Deus”, explica o professor. “Vários centros urbanos no país, naquela época, que tinham populações pobres próximos de áreas valorizadas e sofreram essa higienização do governo militar”, afirma.
Para chegar na conclusão de que Ceilândia, entre todas as regiões administrativa, foi a única que recebeu, em sua formação, a maioria dos trabalhadores que vieram construir Brasília – os candangos –, Professor Jevan desde 1993, quando começou a trabalhar no Centro de Ensino Fundamental (CEF) 25, na região do P Sul, em Ceilândia, criou em sala de aula um projeto de pesquisa social que é feita pelos próprios alunos através da Sociedade dos Pesquisadores e Pioneiros de Ceilândia (SPPC).
O trabalho de coleta de material feito por esses alunos, que entrevistam pessoas que viveram a época do surgimento da cidade, serviu de base para o professor conhecer um outro lado da história oficial, pois sua pesquisa busca revelar onde estão os verdadeiros construtores da capital do país.
“Ceilândia começou mesmo em 1969 com a formação da CEI, que era a sigla para Campanha de Erradicação das Invasões. Já a palavra ‘lândia’ foi em razão do mesmo contexto que surgiu a Disneylândia, nos anos 60”, conta Jevan. Segundo ele, antes do período da Guerra Fria, ou seja, antes da Segunda Guerra Mundial, toda cidade terminava em “pólis”, daí surgiram Petrópolis, Anápolis e outras. Já Ceilândia, foi criada em outro contexto geopolítico, onde os Estados Unidos se apresentavam como potência a ser seguida naquele momento.
Conforme o professor faz questão de ressaltar, sua pesquisa não está baseada em documentos ou registros oficiais, mas na história oral dos antigos moradores que são em sua grande maioria, pais, tios, avós e avôs dos próprios alunos. Com base nesses relatos e documentos, como um recorte de jornal, uma fotografia, um móvel da época, Professor Jevan conseguiu formular uma história paralela à contada pelos livros oficiais. Para ele, Ceilândia é cidade que mais recebeu candangos após a inauguração da capital em 21 de abril de 1960.
Sua pesquisa busca mostrar que, de forma equivocada e discriminatória, os ceilandenses seriam os primeiros “invasores” dentro de seu próprio território em razão da sigla CEI. “Brasília é a única cidade do mundo cujo os seus construtores, seus fundadores foram chamados de invasores. Os primeiros brasileiros a serem chamados de invasores no próprio país foram os candangos. Por isso, eu digo que Ceilândia é a terra dos candangos excluídos incansáveis”, ressalta Jevan.
A construção
As pesquisas feitas pelos alunos, além de suas próprias averiguações, mostram que a maioria das chamadas invasões à época da construção de Brasília e que foram desmontadas após a inauguração da capital, vieram, em sua grande parte, para a recém-criada cidade de Ceilândia. Ou seja, com isso Ceilândia acaba sendo criada especialmente para receber os candangos construtores da capital da República.
“No governo do Hélio da Silveira Prates (1969-1974) foram recrutados assistentes sociais da UnB e outras instituições para poder ir lá na maior invasão da época, que era a IAPI (Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários), onde hoje é o Park Way, para fazer um levantamento para remover as famílias daquela área. Em 1969, tinham 16 mil famílias no IAPI, eram 80 mil pessoas”, conta Jevan.
Toda essa população, segundo o professor, foi trazida para Ceilândia. “O governo alegava que essas pessoas não podiam ficar lá por causas do anel sanitário cujo os córregos abasteciam o Lago Paranoá, e se eles fossem fazer habitação lá, iria poluir o Lago”, explica.
As pesquisas do professor mostram que a sigla CEI era para ser CEF – Campanha de Erradicação das Favelas, mas que a letra F foi trocada pelo I de invasões para não confundir com a sigla da Caixa Econômica Federal (CEF), que era a menina dos olhos do governo militar.
“A primeira cidade de Brasília feita por aqueles que construíram Brasília, os candangos, foi a Ceilândia. Por quê? Porque a Ceilândia recebeu 16 mil famílias de pessoas que construíram a capital e nada mais receberam do que a exclusão social”, afirma o professor.
De acordo com ele, toda história da formação de Ceilândia se deu sobre o prisma da exclusão social. A começar pela forma como os moradores foram removidos das invasões para a cidade. A primeira moradora a chegar em Ceilândia, segundo Jevan, foi Editi Martins, que teve marcado em seu barraco, que ficava na Vila IAPI, a sigla S 27, “que queria dizer que, no sábado, do dia 27 de março, o caminhão iria passar lá, se ela não estivesse em casa, o barraco era desmontado e depois era colocado na carroceria do caminhão e vinha para Ceilândia”. Segundo o professor, Editi Martins foi a primeira a ser removida “num dia de sábado, chuvoso; às 10h ela chegou, onde hoje é a Caixa D’água, em Ceilândia Sul”.
Assim aconteceu com todos que vieram para Ceilândia. Diferente das outras regiões administrativas que já tinham alguma infraestrutura urbana para receber os candangos que tiveram que sair da região do Plano Piloto após a inauguração da capital, Ceilândia, conforme explica o professor, começou do zero, ou seja, sem nenhuma construção de alvenaria – salvo raras exceções –, apenas com os lotes demarcados e as ruas e avenidas abertas. Não havia água encanada e nem luz elétrica.
Para poder administrar a população que chegava, o governo da época nomeou a senhora Maria de Lourdes Abadia para ser a primeira mulher administradora regional de Ceilândia. “A função dela era de organizar os moradores por quadra para poder fazer essa urbanização. Ela tinha uma equipe de remontagem dos barracos que o pessoal da administração montava com marceneiros, serralheiros, para poder construir, em mutirão com a comunidade, esses barracos que tinham sidos removidos da IAPI”, diz Jevan.
Desenvolvimento
Ceilândia nasceu como extensão de Taguatinga, que na época já era uma região administrativa, a RA 3. “Só que a população de Taguatinga sempre quis ser ligada à história do Plano Piloto. Eles sempre achavam que o governo militar estava transferindo para Taguatinga a higienização social. Eles achavam que isso estava manchando a RA 3”, conta Jevan.
De acordo com o professor, culturalmente falando, a população de Taguatinga, no início, não concordava com a proposta do governo de transferir as invasões do Plano Piloto para sua região. “Aí o que eles mandaram fazer? Mandaram fazer um ‘Muro de Berlim’ com eucaliptos. Um muro de plantas. Eles falavam que era por conta da poeira de Ceilândia, que era uma poeira vermelha, diziam que era para não poluir a cidade [Taguatinga]”, afirma. O corredor com eucaliptos, que foi feito pelo governo local, conforme detalha Jevan, foi feito de Ceilândia Sul a Ceilândia Norte, e passava por onde é hoje o Hospital Regional de Ceilândia (HRC).
Outra medida tomada entre as cidades de Taguatinga e Ceilândia, segundo Jevan, foi a construção do bairro M Norte, que de acordo com ele, foi a primeira “expansão” que houve fora do mapa original de Ceilândia, que aliás, assim como o Plano Piloto, também foi idealizado, no caso, pelo arquiteto Ney Gabriel, a quem Jevan chama de “Lúcio Costa de Ceilândia”. Ainda segundo o professor, o mapa de Ceilândia, que é em forma de barril, só foi concretizado em 1972.
A região da M Norte, de acordo com o professor, foi criada inicialmente para abrigar policiais militares que passariam a morar na região como uma espécie de bairro militar. “Era um bairro só de policiais militares. Depois, em 1989, M Norte passa a pertencer à Taguatinga. A M Norte foi uma quadra de policiais militares para vigiar o pessoal de Ceilândia. As pessoas na época chamavam Ceilândia de uma ‘cidade suja e violenta’. Então, a M Norte era chamada de população de ‘Planeta dos Macacos’ – porque macaco é a nome que se dava aos policiais no Nordeste, e como lá era um bairro de PM, faziam essa brincadeira”, explica o professor.
Esse contraste entre Ceilândia e Taguatinga vai perdurar até o momento em que Ceilândia começa a caminhar com suas próprias pernas e depois se torna região administrativa IX. Fundada em 27 de março de 1971, Ceilândia vai ter o seu desenvolvimento urbano já logo nos primeiros anos de sua fundação, quando surgem, por exemplo, as primeiras escolas, a sede do Centro de Desenvolvimento Social (CDS), e outras instituições que irão ocupar os espaços, conforme a destinação do mapa original da cidade. “O mesmo tratamento que os candangos tiveram nas vilas operárias com relação à Cidade Livre, o pessoal de Taguatinga, a polícia, teve depois com o pessoal de Ceilândia. Ceilândia sofreu demais entre 1971 e 1979, até quando ocorre a inauguração da Caixa D’água, aí as coisas começaram a melhorar”, diz.
As primeiras obras patrocinadas na região pelo poder público, como escolas, centros de saúde, delegacias, por exemplo, Jevan diz que só começaram a ocorrer após a instalação das primeiras famílias. “Os pioneiros falam que a primeira escola feita em Ceilândia, por incrível que pareça, ela surgiu depois da 15ª Delegacia. A 15ª foi a primeira instituição feita aqui, porque eles [governo] queriam uma delegacia. Depois veio o Centro de Ensino de 1º e 2º grau, chamado nº 1, que hoje é o CEM 3, da Ceilândia Sul”, diz o professor. Em seguida, lembra ele, foram feitos o CEM 2, de Ceilândia Norte, o CEM 3, em Ceilândia Oeste, que hoje é chamado de CED 7 e, por fim, já, em 1977, foi construído o CEM 4, onde é atualmente a escola chamada de Centrão da Guariroba. “Ceilândia Sul foi ocupada primeiro. Depois ocuparam Ceilândia Norte, em seguida a Ceilândia Oeste e, por fim, a Guariroba”, explica Jevan.
52 anos
Hoje Ceilândia é a maior cidade do DF em números populacionais. Com uma densidade demográfica que está acima dos 400 mil habitantes, a cidade tem papel importante no desenvolvimento econômico e social de toda capital federal. Para o professor Jevan, que dedica sua vida a pesquisar a vida dos homens e mulheres que construíram a capital da República, e que em sua grande maioria teriam sido trazidos para Ceilândia, a cidade que completa 52 anos, neste 27 de março, é a verdadeira força motriz do DF.
“O Distrito Federal, que é o quadrilátero, que abriga a capital, ele não pode ter essa divisão de região administrativa, de cidade satélite, de Entorno. Tudo isso é preconceito contra a classe trabalhadora. Isso é feito para expulsar a classe trabalhadora de seus direitos”, ressalta o professor. “E Ceilândia é o exemplo vivo dessa exclusão que sempre houve e ainda há. Porque a mesma exclusão que Ceilândia sofreu no passado, as pessoas do Sol Nascente, do Entorno, sofrem hoje”, completa.
Casa da Memória Viva
Todo material coletado durante anos de pesquisa deu ao Professor Jevan material suficiente para iniciar a Casa da Memória Viva dos Candangos Incansáveis de Ceilândia. O espaço, que busca ser uma espécie de museu para contar a saga dos construtores da capital do país, há anos vem sendo idealizado pelo professor que agora busca colocar em prática através da construção de um ambiente que sirva para guardar a memória dos verdadeiros construtores da capital.
“Ceilândia merece um museu. Por isso, esse museu não é só de peças, esse Lote 14 [uma referência à música da Legião Urbana, Faroeste de Caboclo], vai ser construído só com utensílios de 1956, ano em que se iniciou a construção. A luta é para nós fazermos um museu que conte a história dos trabalhadores que foram excluídos da história oficial, que são os candangos”, diz.
Atualmente a área em que o museu deve vir a funcionar está em reforma, segundo o Professor. “Nós temos uma casa que fica localizada no Setor P Sul, que é uma casa que queremos transformá-la nos moldes das casas da época da construção da capital. Por isso, precisamos do apoio dos pesquisadores para reunir essas pessoas e criar uma ONG chamada Sociedade dos Pesquisadores Sociedade dos Pesquisadores e Pioneiros de Ceilândia (SPPC) para podermos captar recursos a fim de construirmos o museu”, explica Professor Jevan.
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