Financiamento federal do SUS em 2024 e a partir de 2025: certezas e incertezas
O objetivo deste texto é avaliar sinteticamente o grau de certeza e incerteza do financiamento federal do Sistema Único de Saúde (SUS) neste momento e no futuro próximo.
Inicialmente, cumpre destacar que a atual gestão do governo federal adotou medidas positivas que fortaleceram o financiamento federal do SUS a partir do início de 2023, entre elas:
a) a primeira foi antes da posse, ainda em dezembro de 2022, quando articulou politicamente com o Congresso Nacional o aumento de mais de R$ 20 bilhões à proposta orçamentária de 2023 que fora enviada pelo governo passado.
Com essa medida, o novo governo sinalizou concretamente seu compromisso com a saúde da população, estancando o processo de retirada de recursos federais do SUS, cujas perdas atingiram mais de R$ 70 bilhões no período 2018-2022 (como decorrência dos efeitos negativos da Emenda Constitucional – EC – nº 95/2016); e
b) a segunda foi antes e depois da posse em janeiro de 2023, quando articulou junto ao Congresso Nacional a tramitação de projetos com mudanças na Constituição Federal e na legislação para estabelecer um novo arcabouço fiscal, em substituição à regra do “teto de gastos”, o que ocorreu com a aprovação pela Lei Complementar nº 200/2023 em agosto de 2023.
Entretanto, na época, foi noticiado pela imprensa que houve resistência de parte do Congresso Nacional em aprovar a flexibilização das regras fiscais conforme proposta originalmente encaminhada pelo governo federal.
Além disso, durante todo o primeiro semestre de 2023, a imprensa noticiou desconfiança do mercado em relação à proposta do novo arcabouço fiscal, cuja posição resistente do Banco Central para redução da taxa básica de juros contribuiu para essa desconfiança, além de retardar bastante a possibilidade de retomada do crescimento econômico.
No contexto político dessa difícil correlação de forças, houve uma flexibilização muito limitada das regras fiscais na Lei Complementar nº 200/2023, especialmente para “banda” de variação das despesas primárias entre 0,6% e 2,5% ao ano, sem excepcionalizar as despesas com Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS), dentre outras da área social.
Essa flexibilização limitada das regras fiscais, por sua vez, veio acompanhada de manifestações de alguns representantes da área econômica do governo (Fazenda e Planejamento) na imprensa (1), com a introdução de um tema para debate durante o ano de 2023 que não fazia parte da agenda política até aquele momento: a necessidade de revisão das regras dos pisos constitucionais de aplicação federal mínima em saúde e em educação, diante dos riscos que tais pisos poderiam trazer para o cumprimento das metas fiscais em 2023 e, nos termos da Lei Complementar nº 200/2023, a partir de 2024.
Sobre isso, dois acontecimentos causaram muita preocupação em meados de 2023.
Um foi a decisão da área econômica do governo federal em consultar o Tribunal de Contas da União sobre a necessidade ou não de cumprir o piso federal da saúde em 2023, diante do contexto de transição das regras fiscais e da revogação da regra da EC 95 somente no segundo semestre de 2024 (efetivamente com a Lei Complementar nº 200/23).
Outro foi a tramitação e a aprovação da Lei Complementar nº 201/2023, com a incorporação do artigo 15 por meio de emenda parlamentar, que estabeleceu como regra do piso federal do SUS (somente para 2023) 15% da receita corrente líquida da União estimada originalmente na Lei Orçamentária de 2023 aprovada pelo Congresso Nacional, diferentemente do que estabelecia a Constituição Federal após a revogação da EC 95 (15% da Receita Corrente Líquida apurada em cada exercício, conforme redação da EC 86 que voltava a vigorar).
A polêmica em torno desses dois acontecimentos não é objeto deste texto.
Porém, essa situação precisa ser mencionada porque faz parte do cenário para avaliar as certezas e incertezas sobre o financiamento federal do SUS em 2024 e a partir de 2025, a saber.
Quanto às certezas: o governo federal programou despesas ASPS na Lei Orçamentária de 2024 no valor de R$ 218,6 bilhões, portanto, cerca de R$ 400 milhões acima do que determina a EC 86 (15% da Receita Corrente Líquida corresponde a R$ 218,2 bilhões) que está vigorando após a revogação da EC 95.
Além disso, o Ministério da Saúde apresentou a Programação Anual de Saúde de 2024 com base no Plano Nacional de Saúde 2024-2027 aprovado pelo Conselho Nacional de Saúde.
Esse fato merece destaque após a situação inédita experienciada no período 2020-2022, em que o Ministério da Saúde realizou a execução orçamentária com base no Plano Nacional de Saúde 2020-2023 que foi reprovado pelo Conselho Nacional de Saúde no início de 2021, em flagrante desrespeito ao princípio constitucional da participação da comunidade no SUS e às deliberações da Conferência Nacional de Saúde e do Conselho Nacional de Saúde nos termos da Lei nº 8142/90 e da Lei Complementar nº 141/2012.
Quanto às incertezas: falta alocar ainda no Orçamento de 2024 do Ministério da Saúde cerca de R$ 2,5 bilhões de despesas ASPS, que corresponde à compensação de restos a pagar (valores empenhados em 2022 e anos anteriores) cancelados em 2023, cuja aplicação deve ser adicional ao valor do piso de 2024).
Não há também nenhuma sinalização para devolver ao SUS cerca de R$ 70 bilhões (2), que foram retirados no período de 2018 a 2022 pelas gestões passadas do governo federal (o que foi possível pela iniciativa que tiveram de propor, e o Congresso Nacional de aprovar, mudanças na Constituição Federal para esse fim).
Além disso, alguns cenários projetam a arrecadação da receita para 2024 menor que a estimada na Lei Orçamentária, o que significa dizer que parte da programação orçamentária não seria disponibilizada para uso do Ministério da Saúde até o final do ano (considerando que, historicamente, a área econômica do governo federal trata o piso, que é aplicação mínima, em teto, que é aplicação máxima, desde 2000).
Por fim, no campo das incertezas, há também aquela relacionada com o que foi mencionado anteriormente, a saber, a intenção da equipe econômica do governo federal em revisar o piso constitucional da saúde (e também da educação) com o objetivo de adequá-lo às limitações de crescimento da despesa estabelecido pela regra do arcabouço fiscal aprovada pela Lei Complementar nº 200/2023, ou seja, reduzir os valores desses pisos a partir de 2025.
Considerando a prática de respeito à participação social adotada pela atual gestão do governo federal, seria muito importante que a área econômica do governo dialogasse urgentemente sobre esse tema com o Conselho Nacional de Saúde, que é a instância legal de caráter deliberativo do SUS na esfera federal em obediência ao princípio constitucional de participação da comunidade no SUS, com representação paritária de usuários, trabalhadores e gestores do SUS, além de debater tecnicamente o tema com as entidades da Reforma Sanitária Brasileira e com os movimentos sociais vinculados à defesa do SUS e ao direito à vida.
Por fim, sempre é bom lembrar das manifestações do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva: “É uma inversão que a gente precisa fazer. Para a elite dominante desse país, tudo que é benefício é gasto. Saúde é gasto. Ora, a saúde é um baita de um investimento. Todo mundo sabe o quanto custa uma pessoa doente aos cofres do Estado. E o quanto pode produzir, trabalhar e aprender uma pessoa que está com plena saúde”(3).
*Francisco R. Funcia é Economista e Mestre em Economia Política (PUC-SP) e Doutor em Administração (USCS). Professor dos Cursos de Economia e Medicina da USCS e Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde/ABrES (gestão dez2022-nov2024).
Com informações do VioMundo
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