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O governo brasileiro submeteu à Organização das Nações Unidas um relatório amplo que serve como uma espécie de raio-x da situação dos direitos humanos no Brasil. Mas o documento, datado de 4 de junho de 2020, não traz as medidas adotadas pelo governo de Jair Bolsonaro e se limita a listar as iniciativas até 2018. Para entidades de direitos humanos no país, trata-se de um “relatório fake”.

O estado brasileiro deveria ter submetido a informação em 2014. O atraso, agora, foi quitado pelo governo. Mas, sem os dados da atual administração, peritos alertam que o documento pode enfrentar resistências. De fato, será com base nesse informe que o Comitê da ONU sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais realizará uma sabatina e um exame sobre a situação no Brasil.

Para ongs e ativistas brasileiros, o documento não corresponde à atual situação no país. Enéias da Rosa, secretário-executivo da Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil, revelou que a sociedade civil já está em diálogo para contestar os dados submetidos pelo governo à ONU.

Segundo ele, embora com grande atraso, a entrega do informe é importante. “Contudo, a entrega não pode ser um ato de estratégia política e pública de mera atualização de documentos internacionais de direitos humanos que encontrem-se em atraso”, disse.

“O relatório precisa refletir efetivamente a realidade dos direitos e como o estado brasileiro vem implementando as recomendações feitas pelos comissionados. Do contrário, o relatório passa a ser um “relatório fake” pelo qual o governo brasileiro mente ao Comitê da ONU”, declarou.

“Esse relatório exagerou no que já tem sido praxe da diplomacia brasileira de apresentar na ONU uma versão de país descolada da realidade”, afirmou Camila Asano, diretora de programas da Conectas Direitos Humanos. “O governo Bolsonaro já enviou relatórios repletos de omissões sobre os retrocessos que têm promovido em direitos humanos. Mas esse documento de agora é ironicamente saudoso, já que contém informação só até julho de 2018, excluindo deliberadamente seu mandato presidencial”, disse.

Em sua introdução do raio-x nacional, o governo indica que os dados se referem ao período entre 2007 e julho de 2018.

O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos explicou que, “apesar de o relatório ter chegado à ONU oficialmente apenas em julho deste ano, ele foi finalizado no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) no primeiro semestre de 2019 e, por esta razão, o escopo da elaboração não comportava ações daqueles primeiros meses do ano”.

“Os trâmites entre os órgãos da Administração e a necessidade de tradução do relatório para os idiomas oficiais da ONU para a submissão formal do relatório acarretaram este lapso temporal entre a finalização do texto e sua chegada ao órgão de tratado”, explicou a pasta. “Não obstante, a elaboração dos relatórios atrasados deixados pelos governos anteriores já nos primeiros meses deste governo representa um grande avanço na prestação de contas aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro em matéria de direitos humanos”, destacou o governo.

O Ministério liderado por Damares Alves rejeita a crítica das entidades. “Não se trata de atualizar o documento, pois ele nunca foi entregue pelos governos anteriores. O que estamos fazendo com a entrega dos relatórios atrasados é quitar o débito de prestação de contas com os organismos internacionais deixado pelos governos anteriores”, diz.

Para a Justiça Global e a Plataforma DHESCA Brasil, a iniciativa do governo é “bastante preocupante”. Além dos seis anos de atraso, as entidades alertam que as informações se referem a um período que “não abrange justamente os 2 últimos anos, em que o desmonte das políticas públicas de Direitos Humanos foi avassalador”.

Educação

No que se refere à educação, o informe é duramente criticado pela sociedade civil. “O relatório traz um cenário de legislação da educação e da criança e do adolescente que não somente não é seguida pelo governo, como ele atua na contramão dessas previsões legais”, disse Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

“Há um desmonte sistemático da educação, que tem sido vitrine do governo em termos de fundamentalismos e de Estado mínimo diante do primeiro direito social listado pela Constituição Federal de 1988”, afirmou.

Segundo ela, o relatório cita a Lei de Cotas, de 2012, que de fato é um marco na história da educação no Brasil. “Acontece que o presidente é contra as cotas: diz que ajuda a “ensinar o socialismo” e que é “equivocada” e “coitadismo”. Ainda, seu ex-ministro da educação, Velez Rodrigues, defendeu que “universidade não é para todos”, disse Andressa.

Num dos trechos, o relatório aponta que “o Brasil tem investido anualmente 6% do seu PIB na área de educação, um aumento de 72,9% em relação a 2000, o que corresponde a 108,9% da média investida pelos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que foi de 5,6%”.

O documento também revela que o Programa Nacional de Educação 2014-2024 estabelece o investimento de 7% até 2019 e 10% do PIB até 2024. “Como proporção das receitas da União, a despesa federal em educação quase dobrou sua participação, passando de 4,7% para 8,3% no período de 2008 a 2017, correspondendo a uma expansão do PIB de 1,1% para 1,8%”, diz.

Mas os dados são contestados pela sociedade civil. “O relatório contudo omite que o investimento em educação no Brasil vem caindo nos últimos anos”, disse Enéias da Rosa, secretário-executivo da Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil. “Somente entre 2014 e 2018, por exemplo, o investimento caiu em torno de 56% e estes cortes continuaram acontecendo em 2019 e 2020 no atual governo”, explicou.

Homofobia

O relatório ainda destaca iniciativas como o Programa Brasil Sem Homofobia, criado em 2004, e o governo destaca que, em 2011, “o STF decidiu favoravelmente sobre a legalidade da parceria doméstica entre duas pessoas do mesmo sexo, reconhecendo-a como uma entidade familiar, com direitos e deveres equivalentes aos da parceria doméstica heterossexual”.

“Em outra decisão histórica e sem precedentes, em 2015, o STF concedeu aos casais do mesmo sexo o direito de adoção, estabelecendo um precedente que é levado em consideração em todos os procedimentos legais sobre o mesmo assunto”, indicou.

O conteúdo do informe, porém, foi alvo de críticas dos movimentos sociais. “O governo Bolsonaro mente mais uma vez”, declarou Gustavo Coutinho, da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos. “Ao omitir dados sobre a população LGBTI e apresentar informações errôneas à ONU, o governo escancara sua política genocida”, disse.

“Desde 2018, a política de participação social foi sucateada ao extremo, o governo brasileiro se posicionou contra a criminalização da LGBTIfobia no STF, dificultou a regulamentação da doação de sangue por LGBTs pela ANVISA. Além disso, não foram implementados, em seu governo, nenhum Centro de Referência ou Ambulatório Trans, e o discurso de ódio do Presidente continua incitando crimes contra nós”, completou.

Pobreza

O documento também traz medidas adoptadas no Brasil para lidar com alguns de seus principais problemas sociais. Uma vez mais, porém, não há referências às políticas do governo atual. “A principal estratégia adotada nos últimos anos a este respeito foi o “Plano Brasil Sem Miséria”, criado em junho de 2011″, diz.

“Resultados recentes mostram que o Brasil está se recuperando economicamente e, portanto, recuperando empregos e demanda de mão de obra. A regulamentação do emprego informal é um dos desafios enfrentados pelos formuladores de políticas”, garante o país.

O Bolsa Família é um dos destaques do informe. Segundo o país, a iniciativa proporciona “acesso efetivo aos direitos básicos, assim como às oportunidades de emprego e empreendedorismo”.

“Nos últimos anos, o Bolsa Família teve um impacto relevante com mais de 36 milhões de brasileiros deixando a condição de extrema pobreza”, diz.

“A proporção de pessoas pobres no país diminuiu de 23,4% em 2002 para 7% em 2014”, comemora. O governo ainda indica que o projeto “também foi responsável por retirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU em 2014”. De acordo com o informe, o país “alcançou as principais metas internacionais estabelecidas para vencer a fome no mundo, tornando-se uma referência internacional”, insistiu.

Saúde e Mais Médicos

Entre os diferentes programas citados com destaque está o Mais Médicos, iniciativa que o governo Bolsonaro colocou um fim. “Com relação à cobertura da saúde da população, em 2013, o Brasil tinha uma relação médico-paciente de cerca de 1,8 médicos para cada mil habitantes”, explica o documento. “A fim de expandir e fortalecer a prestação de serviços de atenção primária, a Lei 12.871/2013 criou o Programa Mais Médicos”, destaca.

“Até setembro de 2014, o Programa Mais Médicos destinou 7.786 médicos, incluindo brasileiros e estrangeiros, atingindo um total de 14.462 médicos ativos em 3.785 cidades”, diz. “Foi dada prioridade às localidades do interior do Brasil e às periferias das grandes cidades. O programa atendeu mais de 50 milhões de pessoas, das quais 61% viviam nas regiões Norte e Nordeste e apresentavam os mais altos índices de pobreza”.

“O Programa foi substituído em 2019 por Médicos Pelo Brasil”, explica o documento, sem qualquer referência aos ataques do presidente ao projeto.

Um dos trechos do informe aponta como, em 2010, o estado brasileiro criou a Secretaria Especial de Saúde Indígena e como “o Programa Mais Médicos priorizou a alocação de profissionais em aldeias indígenas localizadas nas regiões mais remotas do país para prestar atendimento direto à população indígena”. Até julho de 2015, 582 médicos ajudaram a oferecer serviços.

Enéias da Rosa mais uma vez contesta o informe e aponta como o Mais Médico foi “desmontado por birra ideológica”. “Também o relatório esquece de informar que por conta do desinvestimento nas políticas de saúde nos últimos períodos, houve uma importante diminuição de leitos no SUS, o que agora com a Pandemia da COVID no País torno ainda mais difícil a garantia desta direito para as populações mais vulnerabilizadas”, completou.

O governo nega que a informação seja uma chancela aos programas. “Os relatórios de tratados internacionais são documentos descritivos que relatam as realizações do Estado em determinada matéria adstrita ao texto do tratado ratificado pelo país no período que está sendo relatado”, indica.

“Cabe ao órgão de tratado fazer suas ponderações ao relatório apresentado, e, ao Brasil, seguir informando suas ações. Não há espaço para avaliações, pois são documentos de teor metodológico essencialmente descritivo”, diz. “De qualquer forma, rupturas institucionais abruptas não são condizentes com a postura democrática deste governo e com as políticas de direitos humanos adotadas pelo Ministério”, completou.

Desmonte

De acordo com as entidades Justiça Global e a Plataforma, o relatório não cita “o impacto da Emenda constitucional 95, que congela o gasto público por 20 anos e afetou fortemente a garantia de Direitos sociais como saúde e educação”.

“Bastante emblemático desse quadro geral de retrocessos nos direitos humanos foi a aprovação, pelo Congresso Nacional, da Proposta de Emenda Constitucional 95 (PEC 95), em dezembro de 2016”, disse Melisanda Trentin, membro da coordenação da Justiça Global e da Plataforma DHESCA Brasil.

“Para enquadrar-se nas novas limitações estabelecidas pela PEC 95, o Governo Federal publicou o Decreto de Contingenciamento, em 30 de março de 2017, que levou a uma redução de quase 50% no orçamento de alguns órgãos, alguns deles já com poucos recursos. O Ministério do
Desenvolvimento Social, por exemplo, teve suas despesas reduzidas em 44%, o da Cultura em 41% e o da Educação em 18%”, disse Melisanda.

Um dos impactos teria sido sentido nos direitos quilombolas. “Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra em 2012 foram 36 assassinatos por conflitos no campo, em 2013 foram 34 as ocorrências, em 2014 foram 36”, explicou.

“Em 2015 houve um salto para 50 assassinatos e em 2016 ocorreram 61 assassinatos por conflitos no campo. Em 2017, o Brasil teve o maior número de assassinatos em conflitos no campo dos últimos 14 anos. Foram 71 pessoas assassinadas, das quais, 31 das mortes ocorreram em 5 massacres, o que corresponde a 44% do total”, completou.

Deportação

Um dos aspectos citados é a política migratória. Mas, segundo Camila Asano, “o relatório exalta que a deportação imediata passou a ser inviável devido à Lei de Migração de 2017”. “Porém, em julho do ano passado o Ministério da Justiça autorizou, por portaria contrária à Lei, a deportação sumária”, destacou.

“Agora com a pandemia, o governo voltou a criar a figura de deportação imediata sem nenhuma garantia de devido processo legal. A justificativa foi a contenção da pandemia. Só que desde julho o governo federal autorizou a entrada de turistas e investidores, mas mantém a proibição de entrada de solicitantes de refúgio por fronteiras terrestres”, alertou.

“Na semana passada, famílias venezuelanas que buscaram acolhida e proteção no Brasil foram cruelmente deportadas de forma imediata em Assis Brasil, fronteira com o Peru”, explicou a diretora de programas da Conectas Direitos Humanos.

*Jamil Chade/Uol

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