Em reunião do Conselho de Segurança da ONU, discurso do embaixador queniano Martin Kimani acertou em cheio o coração da crise desencadeada pela agressão russa.
COM A EUROPA À BEIRA de uma sombria batalha por terras em uma escala não vista desde a Segunda Guerra, foi Martin Kimani, embaixador do Quênia que entregou a mensagem mais próxima do verdadeiro motivo da crise durante uma reunião nas Nações Unidas: uma nostalgia persistente por impérios.
Em uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU, convocada para discutir o ataque russo contra a Ucrânia, Kimani não só condenou a ameaça à soberania ucraniana criada pelo governo de Vladimir Putin. Ele foi além: destacou como a obsessão incessante por territórios e fronteiras continua gerando cenários de violência pelo mundo, muitas décadas após o desaparecimento das linhas desenhadas pelos impérios europeus. Kimani propôs uma visão alternativa de paz por meio da aceitação das fronteiras criadas após o colapso dos impérios no século 20 e pediu uma integração econômica e cultural.
“O Quênia e quase todos os outros países africanos nasceram após o fim dos impérios”, disse Kimani. “Nossas fronteiras não foram desenhadas por nós. Elas foram desenhadas nas distantes metrópoles coloniais, em Londres, Paris e Lisboa, sem considerar as nações antigas que eles mesmo racharam ao meio. Hoje, do outro lado da fronteira de cada país africano, vivem nossos compatriotas com quem compartilhamos profundos laços históricos, culturais e linguísticos. Na independência, se tivéssemos escolhido perseguir estados com base na homogeneidade étnica, racial ou religiosa, ainda estaríamos travando guerras sangrentas. Em vez disso, concordamos em nos contentar com as fronteiras que herdamos”.
O representante permanente das Nações Unidas do Quênia, Martin Kimani, fala na sede da ONU em outubro de 2021.
Foto: Lev Radin/Pacific Press/LightRocket via Getty Images
As declarações de Kimani, que viralizaram nas redes sociais e na mídia africana, também criticaram o que ele chamou de “nostalgia perigosa” por impérios que leva os países a redesenhar as fronteiras à força para se reunirem com cidadãos de outras nações com quem compartilham afinidade cultural – o exato argumento que o governo russo usou para justificar sua invasão à Ucrânia, em apoio aos “russos” que lá vivem. Em vez disso, Kimani pediu à Europa que siga as regras da carta da ONU, como os países da União Africana têm procurado fazer, respeitando a soberania dos vizinhos “não porque nossas fronteiras nos satisfazem, mas porque queremos algo maior, forjado na paz”.
O discurso de Kimani é perfeitamente calibrado para responder aos comentários de Putin nos últimos dias. Em falas públicas, Putin desdenhou da própria existência da Ucrânia como nação, descrevendo-a como um vassalo imperial que foi separado pela política moderna de seu lugar de direito sob o controle russo. Apesar de ter uma longa história independente, bem como uma língua e cultura distintas, a Ucrânia foi governada em parte por impérios concorrentes ao longo dos séculos, incluindo mais recentemente a Rússia czarista e a União Soviética.
O país conquistou sua independência total em 1991, após a dissolução da União Soviética, um evento que Putin descreve como “a maior tragédia geopolítica do século 20”. Em um discurso televisionado na segunda-feira, dia 21, em que reconheceu a independência de duas regiões separatistas da Ucrânia, Putin chamou o país de “terra historicamente russa” no decorrer de uma extensa lição de pseudo-história para justificar o envio de tropas russas à nação vizin
Putin não está sozinho no discurso que mantém sonhos de impérios perdidos ou na tentativa de reconstruí-los redesenhando fronteiras. Muita violência ao redor do mundo resulta de sentimentos semelhantes em outros países: as políticas externas agressivas da China, da Turquia, do Irã e da Sérvia, bem como de outros estados modernos construídos a partir das ruínas de impérios passados, costumam estar igualmente focadas em restaurar territórios históricos nos dias de hoje. Embora menos explicitamente irredentistas, alguns países da Europa Ocidental também parecem ter um sentimento de propriedade sobre os territórios que anteriormente controlavam, principalmente a França na região do Sahel na África e no Líbano.
Apesar do anúncio de sanções contra a Rússia por parte dos países da União Europeia, Putin ainda dá sinais de estar pronto para “restaurar” o controle sobre partes da Ucrânia, além das regiões separatistas de Donetsk e Luhansk. Relatos de acúmulo de tropas perto das fronteiras da Ucrânia continuam nos últimos dias, enquanto os líderes da Otan dizem que ainda estão se preparando para uma invasão em larga escala do território ucraniano. Estimativas apontam que essa guerra poderia matar dezenas de milhares de cidadãos ucranianos e desencadear uma crise de refugiados em toda a Europa.
Os Estados Unidos criticaram a Rússia por violar a soberania de outra nação. Mas dado seu próprio histórico de invasões, assassinatos e tortura de cidadãos estrangeiros, o país pode não ser o melhor mensageiro. Em vez disso, no que certamente é um momento terrível para a Europa, são as palavras do embaixador queniano que melhor incorporam os princípios do internacionalismo liberal e da cooperação multilateral que agora parecem mortalmente ameaçados.
“Acreditamos que todos os estados formados a partir de impérios que ruíram ou recuaram têm muitos povos que anseiam por integração com povos de estados vizinhos. Isso é normal e compreensível. Afinal, quem não quer unir-se a seus irmãos e estabelecer propósitos comuns? No entanto, o Quênia rejeita tal desejo de perseguição baseada em força”, disse Kimani. “Devemos completar nossa recuperação das cinzas dos impérios mortos de uma forma que não nos leve de volta a novas formas de dominação e opressão”.
Pedindo uma resolução pacífica para a crise e reiterando os direitos dos ucranianos, ele finalizou: “O multilateralismo está em seu leito de morte esta noite. Ele foi agredido como foi por outros estados poderosos no passado recente”.
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