Há vários modos de contar uma história. Ou um fenômeno. Poste mijando nos cachorros é uma boa imagem para mostrar quando um néscio quer dizer para um cientista que a terra é plana. O resto vocês imaginam. A propósito: chamar de burro ou imbecil quem defende o terraplanismo é crime? Ou é um ilícito civil? É proibido xingar terraplanistas?
Antigamente os analfabetos e ignorantes tinham vergonha de si. Hoje viram influencers e vendem ora-pro-nóbis [1] (agora é moda) e quejandices. Ou simplesmente, via autoajuda, ganham dinheiro com a miséria dos incautos.
Quando vem alguém com conhecimento e fulmina a estultice, corre o risco de ser processado. E condenado. Quem duvida é louco, como se diz em Agudo.
Foi o que aconteceu com a bióloga Ana Bonassa e a farmacêutica Laura Marise, criadoras do canal Nunca Vi 1 Cientista, que foram condenadas a indenizar, por danos morais (sic), o nutricionista André Luis Lanca, após contestarem publicamente uma postagem dele que associava diabetes à presença de vermes no corpo.
“Estamos cansadas, porque apesar de o público estar a nosso favor, um processo é exaustivo”, afirma Bonassa em entrevista à Folha de S.Paulo. “Não fomos as primeiras e nem seremos as últimas a serem processadas, mas é nossa responsabilidade mostrar que esse tipo de decisão está sendo tomada no Judiciário.” Bingo, Ana e Laura. Estamos juntos. Enfrento esse tipo de coisa no Direito também.
A indenização de R$ 1 mil faz parte da decisão da juíza Larissa Boni Valieris, da 1ª Vara do Juizado Especial Cível (JEC) de São Paulo. As divulgadoras científicas vão recorrer da decisão.
Sendo bem simples: as biólogas simplesmente postaram vídeo alertando as pessoas de que o que o nutricionista dizia era falso. Isto é, um negacionismo. Afinal, vermes atacam o pâncreas e isso causa o diabetes? Que coisa, não?
As biólogas, que deveriam ser premiadas pela denúncia (fiquei fã delas), foram castigadas pelo sistema Judiciário. Provavelmente algum estagiário dos juizados estava treinando como fazer sentenças. Só assim podemos acreditar que o Judiciário tenha dado guarida para a anticiência.
Vergonha pode salvar
Ora, quantas vítimas tivemos com o negacionismo de vacinas? E agora temos de aguentar alguém que diz que o diabetes se origina de vermes no pâncreas? Como se diz no Rio Grande do Sul, vão se afumentar.
O “crime” das biólogas foi dizer que diabetes não tem relação com vermes. “Se você vir alguém propagando isso, denuncie e bloqueie. Porque isso é desinformação e está chegando forte para vender curso“. Elas estavam prestando um serviço público. A favor da saúde. Mas o juizado que as condenou não pensa assim.
Para que o famoso (sic) nutricionista não me processe também – não duvidemos; hoje em dia tudo é possível, porque o Judiciário é o lugar em que o sujeito corre sozinho e corre o risco de chegar em segundo –, trago a meu favor a Sociedade Brasileira de Diabetes, a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, a Associação Brasileira de Estudo da Obesidade e o Conselho Federal de Nutrição, que divulgaram uma nota de esclarecimentos e orientações sobre o diabetes.
Trata-se de uma condição clínica, crônica e sem cura, que pode ser acompanhada de complicações impactantes”, dizem as entidades. “Portanto, é de suma importância que essas pessoas estejam totalmente engajadas no tratamento adequado.” Ou seja, estou bem calçado.
Veja-se o problema do conceito de vergonha (a juíza que sentenciou deveria ler o best seller de Kwame Appiah, O Código de Honra, em que mostra como algumas práticas envergonhantes foram abandonadas a partir do constrangimento que causavam. O constrangimento é uma arma poderosa. Foi isso que as biólogas fizeram, senhora juíza.
Explicando o Código de Honra de Appiah: durante mais de mil anos os pés das meninas chinesas eram atados, para que não crescessem e ficassem pequenos e delicados, em torno de 7,5 centímetros. A prática durou mais de mil anos e acabou em rápidos 20.
Appiah pesquisou e descobriu que outros países estavam se inteirando desse hábito chinês e o repudiavam. Isso constrangeu enormemente os chineses. E foi decisivo. Assim também ocorreu com os duelos na Inglaterra. As práticas causavam vergonha. E isso feria um código de honra da humanidade.
No caso, a exposição de quem espalha fake news medicinais faz bem. O que as biólogas fizeram foi parecido com o que se fez expondo as práticas de mutilar os pezinhos das crianças chinesas. Ou a vergonha dos duelos.
Appiah, com seu Código de Honra, mostra como a vergonha pode salvar. Ora, no caso a juíza entendeu o contrário. Para ela, o nutricionista foi submetido a “vergonha e tristeza” e teve seus dados divulgados “sem autorização” em “rede social de amplo alcance” — o perfil Nunca Vi 1 Cientista tem 455 mil seguidores.
Incrível (no sentido de “inacreditável). O profissional tem um blog ou site. Anuncia cursos e produtos. Coloca sua vida na tela. Diz uma flagrante mentira sobre uma doença que não tem cura (diabetes). É desmentido por duas profissionais com excelente currículo.
E o Judiciário diz que as denunciantes é que o expuseram e lhe causaram vergonha e tristeza? Seria como processar e condenar quem criticasse a tortura nos pezinhos das chinesas, para lembrar o best seller de Appiah.
Atenção: o TSE e o próprio Judiciário têm incentivado o combate à desinformação. Fake news são uma praga. Fake news matam. Ora, escrever contra vacina na pandemia não foi desinformação? Se foi (e é), qual é a diferença com a venda de curso ou qualquer coisa do tipo espalhando que o que causa o diabetes são vermes? Perdemos nossa capacidade de crítica? Perdemos nossa capacidade de indignação?
Cachorro urina no poste? A ciência não vale nada? Não, não respondam. A pergunta tem um quê de retórica. Desse jeito, logo vai ter passeata contra antibióticos e alguém vai dizer que chá de carqueja é que cura tuberculose. “Fora com a ciência.” “Fora com tratamentos científicos.”
O repto antinegacionista é: diabéticos de todo o mundo, uni-vos contra os vermes.
Como muitíssimo bem disseram os pesquisadores Pedro Arantes , Soraya Smaili , Maria Angélica Minhoto e Letícia Sarturi, em artigo na Folha em que passam a régua no assunto:
“O verme do negacionismo se alastra como fogo em mato seco: mas sem deixar um rastro visível de fumaça, serão mortes de difícil contabilização” (ler aqui).
E mais não precisa ser dito.
[1] A venda de ora-pro-nóbis tem a função, aqui, de alegoria, que representa um certo Zeitgeist, o espírito de uma certa época. Portanto, não “peguem” ora-pro-nóbis ao pé da letra. Até porque letra não tem pé.
Com informações do Diário do Centro do Mundo
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