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“O Código Penal brasileiro, que criminaliza a interrupção da gravidez, é da década de 1940 do século passado, quando as mulheres tinham uma ‘cidadania de segunda classe'”, lembrou a presidente do STF

 Com o placar de 9 a 2, o Supremo Tribunal Federal derrubou o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. STF decidiu que Constituição deve resguardar direitos dos povos originários. Na foto, a ministra Rosa Weber. -  (crédito:  Ed Alves/CB/DA.Press)

Com o placar de 9 a 2, o Supremo Tribunal Federal derrubou o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. STF decidiu que Constituição deve resguardar direitos dos povos originários. Na foto, a ministra Rosa Weber. – (crédito: Ed Alves/CB/DA.Press)

O conceito de “lugar de fala” ficou famoso após a publicação do livro da filósofa paulista Djamila Ribeiro, O que é lugar de fala, principalmente no movimento negro, sendo adotado como uma espécie de atestado de legitimidade para qualquer tese identitária. Muitas vezes, é desvirtuado e usado como um meio para desqualificar o interlocutor que não vive o mesmo problema ou situação, com o argumento categórico do tipo “você não pode falar sobre isso porque não tem lugar de fala”.

Djamila ampliou a questão do feminismo negro (Quem tem medo do feminismo negro?) na perspectiva de criticar e superar as cisões da sociedade causadas pelas desigualdades e pensar novos marcos civilizatórios. A partir do conceito de “lugar de fala”, a filósofa destaca as denúncias sobre a esterilização forçada de mulheres negras, na década de 1980, que resultaram numa comissão parlamentar de inquérito na Câmara dos Deputados, como uma espécie de gênese do feminismo negro no Brasil.

A esterilização forçada de mulheres nos estertores do regime militar era uma forma de controle da natalidade, com objetivo de limitar a taxa de crescimento da população aos níveis de expansão da economia, ou seja, abaixo do Produto Interno Bruto (PIB), com o óbvio propósito de mitigar as desigualdades sociais pela redução compulsória do tamanho das famílias pobres, principalmente negras. Era uma violência contra uma parcela da população que já era vítima, como continua sendo, do nosso secular racismo estrutural.

A esterilização forçada era uma alternativa autoritária ao direito ao aborto, questão que agora está sendo julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Às vésperas de se aposentar, a presidente do Corte, Rosa Weber, na sexta-feira, votou para que o aborto realizado até 12 semanas de gestação não seja mais considerado crime no país.

A ministra argumenta que a criminalização fere direitos fundamentais das mulheres, como os direitos à autodeterminação pessoal, à liberdade e à intimidade, porém reconhece que a discussão do aborto “é uma das questões jurídicas mais sensíveis, porquanto envolve uma teia de razões de segunda ordem de natureza ética, moral, científica, médica e religiosa”.

No seu voto histórico, Rosa exerceu um duplo lugar de fala: o de mãe e de guardiã da Constituição. Nessa condição, argumentou que a proibição não é eficiente para evitar abortos, sendo mais adequado políticas públicas de prevenção à gravidez indesejada, como educação sexual. “A maternidade é escolha, não obrigação coercitiva. Impor a continuidade da gravidez, a despeito das particularidades que identificam a realidade experimentada pela gestante, representa forma de violência institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher, colocando-a como instrumento a serviço das decisões do Estado e da sociedade, mas não suas.”

Prerrogativas

O Código Penal brasileiro, que criminaliza a interrupção da gravidez, é da década de 1940 do século passado, quando as mulheres tinham uma “cidadania de segunda classe”, na expressão de Rosa. Nessa época, o movimento feminista sequer havia entrado na sua “segunda onda” — o Brasil estava em pleno Estado Novo. “Não tivemos como participar ativamente da deliberação sobre questão que nos é particular, que diz respeito ao fato comum da vida reprodutiva da mulher, mais que isso, que fala sobre o aspecto nuclear da conformação da sua autodeterminação, que é o projeto da maternidade e sua conciliação com todas as outras dimensões do projeto de vida digna”, sustentou a presidente do Supremo. Hoje, o aborto é permitido em caso de gravidez por estupro, risco para a vida da gestante e feto anencéfalo (sem cérebro).

A votação será retomada quando o novo presidente da Corte, Luis Roberto Barroso, decidir dar continuidade ao julgamento, cujo desfecho ainda é imprevisível. Além de Rosa, Barroso, Cármem Lúcia e Édson Fachin são ministros a favor da descriminalização. Os ministros Nunes Marques e André Mendonça, indicados por Bolsonaro, votarão contra. A decisão final dependerá dos ministros Gilmar Mendes, Luiz Fux, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin.

Há uma polêmica sobre a competência de rever o dispositivo que proíbe o aborto no Código Penal de 1940: caberia ao Congresso ou ao Supremo? Os que são contra o aborto argumentam que a atribuição é do Legislativo, hoje majoritariamente conservador e sob forte influência dos evangélicos, que podem, inclusive, vir a eleger um bispo licenciado da Igreja Universal para a presidência da Câmara, o deputado Marcos Pereira (SP), presidente nacional dos Republicanos.

Rosa contestou esse argumento: “Assim como em praticamente todas as democracias liberais (com raras exceções das democracias puramente majoritárias), também na democracia brasileira a função de controlar as leis e atos do poder público para garantir que elas estejam em conformidade com a Constituição é exercida por órgão independente daqueles responsáveis por aprovar as leis. Este órgão é tipicamente uma Suprema Corte ou Tribunal Constitucional. Isso é importante porque a democracia não se resume à regra da maioria. Na democracia, os direitos das minorias são resguardados, pela Constituição, contra prejuízos que a elas (minorais) possam ser causados pela vontade da maioria.”

Com informações do Correio Braziliense

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