O Sistema Único de Saúde (SUS) foi sonhado por trabalhadores da saúde, militantes de movimentos sociais, juntamente com toda a população, tornando-se realidade na Constituição de 88 com os princípios da universalidade, equidade, integralidade e controle social para garantir qualidade de vida a todos os brasileiros e brasileiras. Saúde não pode se restringir ao tratamento da doença. Saúde é qualidade de vida e qualidade de vida é felicidade.
Ao propor o esquartejamento do sistema, enviando um projeto de lei em caráter de urgência à Câmara Legislativa que amplia o modelo de privatização do Instituto Hospital de Base (IHB) para outras unidades de saúde, o governador Ibaneis desconsidera o princípio da integralidade. Pois divide o sistema de saúde do DF em dois, apartando a atenção básica e a estratégia de saúde da família da média e alta complexidade, impondo a lógica hospitalocêntrica que interessa apenas ao mercado da doença.
Ibaneis também ignora o princípio do controle social porque desconsiderou a prerrogativa de deliberação do Conselho de Saúde do DF ao encaminhar a proposição diretamente para a Câmara Legislativa. O governador deveria saber que no SUS os conselhos funcionam como co-gestores e, portanto, devem ser consultados em todas as matérias, principalmente nesta que terá forte impacto na vida das servidoras e servidores públicos e dos usuários do SUS.
Enquanto candidato, Ibaneis Rocha não poupou críticas à privatização do Hospital de Base, a partir da criação do Instituto Hospital de Base pelo ex-governador Rodrigo Rollemberg. Ibaneis não citou em nenhuma linha do seu plano de governo a criação desta Organização Hospitalar e nunca disse que privatizaria parte do sistema de saúde do DF. Não tenho dúvidas de que estamos diante de um caso evidente de estelionato eleitoral.
“Nós temos que recuperar a nossa saúde, e ela é feita com servidores”, foi o que disse Ibaneis em entrevista ao G1 em setembro de 2018, mas agora que venceu as eleições ignora seu compromisso de respeito e diálogo com as servidoras e servidores públicos. A postura autoritária do governador é ainda mais grave quando encaminha sem qualquer diálogo com a sociedade e as categorias um projeto que aprofunda as inseguranças para trabalhadores e trabalhadoras da saúde por ao colocar carreiras em extinção.
O PL da extinção, nome dado pelo Sindsaúde, é um desrespeito imensurável com quem tem capacidade técnica comprovada em concurso público e imensa dedicação na prestação de serviços à população, apesar das péssimas condições de trabalho.
É fundamental lembrar as experiências anteriores ao próprio IHB. O Hospital de Santa Maria foi administrado por uma organização social, a Real Sociedade Espanhola denunciada por mim em 2009 quando fui deputada distrital. Os usuários e os trabalhadores e trabalhadoras com certeza se recordam das consequências desastrosas desta gestão.
Engana-se quem acha que isto acontecerá apenas com a saúde. Há experiências de privatização em outros estados e com outras áreas da esfera pública. Estado mínimo para o povo nunca foi a solução para os problemas que enfrentamos em nossa cidade.
Enquanto presidenta do PT-DF, protocolei uma ação de inconstitucionalidade contra a lei que privatizou o Hospital de Base por violar a Lei Orgânica do DF em diversos pontos, mas uma, em especial, vale rememorar aqui. Na época argumentamos que os artigos 26 e 214 da LODF foram lesados, pois a lei que criou o IHB prevê a não submissão à lei de licitações e possibilita a contratação de servidores sem concurso público.
Na época o PMDB, atual MDB, também entrou com uma ação que vai ao encontro da ajuizada pelo PT-DF. O pedido do partido de Ibaneis no caso do IHB sustenta, entre outros pontos, que “o § 13o do art. 19 da LODF não admite a privatização da gestão administrativa de órgão da administração pública.“ Poderia ser irônico, se não fosse tão incoerente. Por que mudaram de opinião agora?
O diretor Rodrigo Caselli Belém relata em memorando de abril de 2018 que a situação do Hospital de Base é “cenário bem semelhante ao de ambientes de guerra, com índices de morbimortalidade elevados, até as enfermarias, onde os pacientes deixam de receber cuidados básicos, como administração de medicação e sinais vitais”. O que leva ao questionamento do que teria acontecido nestes poucos meses para que o modelo privatista se tornasse exitoso aos olhos deste governo.
Quais elementos técnicos embasam a proposição? Qual a garantia o governador Ibaneis dará para nos convencer de que este projeto garantirá melhoria no atendimento à população do DF? Qual o diagnóstico do Hospital de Base, que tem suas especificidades, sustentam a decisão do seu governo de ampliar a privatização e esquartejar o sistema?
Em apenas vinte dias de governo, Ibaneis não só muda de opinião como solicita à CLDF que analise de imediato um projeto dessa relevância em sessão extraordinária, onde as comissões terão que apresentar seus pareceres diretamente em plenário. Se a lei aprovada na gestão Rollemberg já é autoritária, o que dizer de um governador que foi capaz de ameaçar parlamentares que se opõem à proposição e, explicitamente, reconhece que há uma relação de toma lá da cá quando disse que nenhuma nomeação será feita antes do projeto ser apreciado? Desrespeita a autonomia do poder legislativo, a democracia e a população.
A bravata de Ibaneis é semelhante ao que vemos no governo Bolsonaro. Em um dia o governador ameaça os deputados que discordam da sua proposta de privatização da saúde pública, no outro volta atrás e diz aceitar emendas. Não há emenda capaz de salvar um projeto irresponsável como este. Agora diz que vai diminuir as unidades privatizadas e retirar o polêmico ponto que coloca carreiras em extinção . Mas ainda permanece sem explicar os motivos para enviar de forma açodada um projeto mal redigido, sem diálogo algum com o Conselho de Saúde, a população e com as servidoras e servidores. Governador, autoritarismo faz mal à saúde.
Erika Kokay é Deputada federal e presidenta do PT no DF