“A denúncia confirma mais uma vez que Lula é vítima de lawfare pelos procuradores há mais de quatro anos. Também mostra que a Lava Jato obteve acesso a informações de maneira informal, sem autorização judicial, contrariando o que ela própria tem alegado.”
‘The Intercept Brasil’ revela que o MPF em Brasília vazou informações, fora dos canais oficiais, em 2016 para a força-tarefa de Curitiba com o objetivo de acuar o ex-presidente. Ao negar o compartilhamento de informações a Augusto Aras, sob alegação de violação de sigilo, os procuradores esqueceram de mencionar que praticaram tal conduta. Gleisi critica: “É um escândalo” 10/08/2020 18h07 – atualizado às 18h24Reprodução
Lula
Um novo capítulo da Vaza Jato, revelado nesta segunda-feira, 10 de agosto, pelo site The Intercept Brasil, reforça as denúncias de uso político de informações pela Lava Jato para perseguir o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O site jornalístico denuncia que a força-tarefa de Curitiba recebeu em 2016 dados de investigação sigilosa sobre Lula antes mesmo de chegar a fazer um pedido formal para ter acesso ao documento.
A denúncia confirma mais uma vez que Lula é vítima de lawfare pelos procuradores há mais de quatro anos. Também mostra que a Lava Jato obteve acesso a informações de maneira informal, sem autorização judicial, contrariando o que ela própria tem alegado. Na guerra travada dentro do Ministério Público Federal, a negativa do compartilhamento de dados foi dada ao procurador-geral da República, Augusto Aras, que queria acesso aos dados de 38 mil pessoas investigadas pela República de Curitiba.
“É mais um escândalo da República de Curitiba: procuradores acessaram investigações sobre Lula sem autorização judicial e vazaram para a imprensa”, criticou a presidenta nacional do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR). “É cada vez mais urgente que o Supremo Tribunal Federal julgue a parcialidade da Lava Jato e a suspeição de Sérgio Moro”.Gustavo Bezerra
Gleisi Hoffmann: “É mais um escândalo da República de Curitiba: procuradores acessaram investigações sobre Lula sem autorização judicial e vazaram para a imprensa”
O caso ocorreu durante os preparativos para a operação que obrigou Lula a prestar depoimento, sobem 2016. Semanas antes da condução coercitiva de Lula, os procuradores de Curitiba obtiveram acesso a uma apuração que, oficialmente, só seria compartilhada um mês depois por colegas do Ministério Público Federal no Distrito Federal.
A apuração sigilosa contra Lula era um Procedimento Investigatório Criminal, instrumento usado pelo MPF para iniciar investigações preliminares sem precisar de autorização da justiça. Os procedimentos investigatórios criminais, conhecidos entre os procuradores como PICs, estão no centro da disputa entre Aras e a força-tarefa de Curitiba.
Argumentos furados da Lava Jato
Desde que foi obrigada a entregar seu banco de dados à Procuradoria Geral da República, no início de julho, a força-tarefa afirma que o compartilhamento dos procedimentos é indevido e que precisa ser pontual, feito apenas mediante justificativa cabível e com pedido formal. O compartilhamento dos dados da Lava Jato à PGR foi suspenso temporariamente por decisão do ministro Luiz Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal.
Sabe-se agora que a força-tarefa da Lava Jato, liderada por Deltan Dallagnol, aproveitou-se da falta de normas claras sobre compartilhamento de provas no MPF para “dar uma olhadinha” em investigações de outros colegas. É isso que foi revelado pela Vaza Jato, que trouxe à tona nas famosas mensagens do Telegram entre procuradores, às quais o Intercept teve acesso. Na prática, isso quer dizer que os procuradores de Curitiba não julgaram necessários os ritos e formalidades que agora exigem do chefe do Ministério Público Federal.
As mensagens também sugerem que a Lava Jato chegou a se perder – mais de uma vez – em meio aos procedimentos de investigação que tinha em andamento. Aras tem alegado que a Lava Jato acumula dados de 38 mil pessoas e sugere que boa parte deles se originam de um excesso de investigações paralelas abertas em Curitiba. Não é uma crítica inédita – já foi feita, em 2017, pelo ministro Gilmar Mendes, crítico no STF dos excessos da Lava Jato.
Ainda em 2015, no segundo ano da operação, esse excesso foi percebido pelos próprios procuradores, de acordo com as conversas no Telegram, mais uma vez detalhadas pelo The Intercept Brasil. A troca de mensagens em 14 de outubro entre os procuradores da Lava Jato confirma.
“Em momentos críticos, como nas investigações que desaguaram na operação contra Lula em 2016, isso foi percebido até na Receita Federal”, informa o Intercept. “Num grupo de Telegram que reunia procuradores e policiais federais, os participantes se deram conta de que vinham fazendo pedidos idênticos ao fisco para alimentar as respectivas investigações, que corriam em paralelo”.
A ‘perninha’ informal da Lava Jato
Em um dos procedimentos investigatórios criminais, aberto por procuradores do MPF em Brasília, apurava-se um possível tráfico de influência de Lula para ajudar a empreiteira Odebrecht a fechar contratos com financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no exterior.
Um dos documentos citados no procedimento é um relatório que listava correspondências trocadas entre o Itamaraty, de 2011 a 2014, e autoridades de cinco países onde a construtora tinha interesses. O documento já circulava no grupo de Telegram exclusivo dos procuradores de Curitiba em 12 de fevereiro de 2016, mas a Lava Jato só teve acesso formal à investigação quase um mês depois, em 10 de março, como mostra um ofício emitido naquele dia pelo MPF do Distrito Federal. Ou seja, o documento foi obtido por fora dos canais oficiais.
A ideia da força-tarefa era juntar essas informações ao material que já tinha sobre Lula. Os procuradores sonhavam em compor um caso forte que servisse para reforçar a competência deles nos processos contra o petista. É algo que a defesa do ex-presidente sempre contestou, alegando que os casos deveriam ser concentrados na Justiça Federal de São Paulo, onde ele mora e estão o triplex (Guarujá) e o sítio (Atibaia). Sergio Moro e a Lava Jato, porém, sustentavam que havia conexão entre esses casos e a corrupção na Petrobras, tese que acabou prevalecendo, não sem críticas.
Naquele momento, porém, os procuradores queriam colocar “a perninha da Lava Jato” nessas investigações, nas palavras de Roberson Pozzobon. As discussões dos procuradores indicam que o material foi recebido de duas formas: primeiro por meio de cópias digitalizadas e, dias depois, pelo correio. Ambos os envios foram articulados via Telegram antes do ofício que regularizou o acesso.
A ‘olhadinha’ dos procuradores
No início de fevereiro de 2016, quando a Lava Jato já preparava a condução coercitiva de Lula, o procurador Paulo Galvão consultou o chat FT MPF Curitiba 3, de uso exclusivo dos membros da força-tarefa, sobre a possibilidade de receberem investigações contra o ex-presidente que corriam em Brasília.
Em mensagem no dia 2 de fevereiro, Galvão avaliou que a equipe do Paraná já conhecia os fatos que vinham sendo apurados na capital federal, exceto por “telegramas do itamaraty que mencionam benefícios às empreiteiras e o uso do 9 para lobby”. Era uma referência a Lula, assim apelidado por causa do dedo amputado num acidente de trabalho.
Os tais telegramas eram um conjunto de correspondências trocadas de 2011 a 2014 entre o governo brasileiro e autoridades de Angola, Cuba, Panamá, República Dominicana e Venezuela. Eles foram reunidos pelo MPF de Brasília de forma sigilosa, em outubro de 2015, numa investigação aberta três meses antes para apurar se Lula havia favorecido a Odebrecht em obras financiadas pelo BNDES.
Ninguém respondeu à mensagem de Galvão naquele momento, mas o assunto voltou à tona quatro dias depois num grupo de Telegram criado especialmente para discutir as investigações em andamento contra Lula:
Em outro trecho do mesmo chat, no dia seguinte, ficaria claro por que a Lava Jato desejava assumir aquela investigação. Primeiro, o procurador Júlio Noronha reforçou a importância de a força-tarefa receber “aqueles documentos do Itamarati que podemos usar para cruzar com convites para palestras no exterior”. Em resposta a essa sugestão, houve a seguinte conversa:
Pozzobon fez duas confissões: sobre a intenção de dar “uma olhadinha” informal na investigação sigilosa de Brasília e a ânsia de manter no Paraná as investigações contra o ex-presidente. Logo em seguida a essa conversa, Dallagnol já combinava com Galvão, num chat privado, como botar as mãos nos autos. Quatro dias depois, em 11 de fevereiro, Dallagnol passou aos colegas um relato das investigações em andamento em Brasília “sobre o nono elemento” (outra referência ao dedo amputado de Lula) e avisou que o MPF de Brasília iria “mandar tudo digitalizado amanhã”.
Por baixo dos panos
Em 12 de fevereiro, dia seguinte ao anúncio de Dallagnol, o procurador Diogo Castor de Mattos usou o mesmo chat para narrar descobertas que vinha fazendo no relatório do MPF de Brasília sobre as correspondências do Itamaraty, o mesmo documento que os procuradores já vinham cobiçando.
As informações sobre o BNDES que Castor citou no início da conversa foram retiradas do arquivo em pdf que ele dividiu com os colegas no mesmo chat minutos depois, às 19h05. O documento, que faz parte do procedimento investigatório criminal que a equipe de Curitiba vinha discutindo, só poderia estar naquele inquérito. O problema é que a Lava Jato foi autorizada oficialmente a acessá-lo somente em 10 de março. Até aquela data, portanto, o compartilhamento havia sido feito por baixo dos panos.
O documento, enviado por baixo dos panos à Lava Jato, faz parte do conjunto de anexos e arquivos das conversas de Telegram entregues ao Intercept por uma fonte.
Com o passar dos dias, ficou evidente que a Lava Jato queria manter em segredo que havia consultado aqueles autos. A primeira menção a isso foi em 20 de fevereiro, um dia após a investigação ter vazado para a revista Época. O procurador Paulo Galvão enviou o link da reportagem aos colegas de equipe e, logo em seguida, fez um pedido:
O diálogo revela que a Lava Jato pretendia estudar o caso furtivamente para poder, eventualmente, “esquentar” o material numa nova investigação ou denúncia. Nesse caso, segundo Galvão, a força-tarefa produziria novamente as provas, sem deixar à mostra de onde surgiram as informações.
Defesa de Lula foi enrolada
Mais tarde, no mesmo dia, a equipe comenta uma manifestação da defesa de Lula, que protestava porque tentava conseguir uma cópia daquele caso, sem sucesso, desde dezembro de 2015. Desta vez é Noronha quem alerta os parceiros para manterem a manobra em segredo: “Pessoal, por favor, lembrem de não dizer que tivemos.acesso a esses autos! Só confusão que vem de lá”.
O assunto voltou no dia 4 de março, data da condução coercitiva de Lula, quando a força-tarefa voltou a discutir o que fazer com as investigações que corriam contra o ex-presidente em Brasília. Na ocasião, decidiram marcar uma videoconferência com os colegas, na semana seguinte, para tratar do assunto. A reunião, aparentemente, ocorreu no dia 9 daquele mês. Horas antes, Paulo Galvão voltou a pedir discrição. Sua intenção era esconder dos próprios colegas de Brasília que os procuradores de Curitiba tiveram acesso ao procedimento.
Outras atuações heterodoxas
A espiada na investigação de Brasília sobre o BNDES foi a única a deixar um rastro no Telegram, mas as conversas no aplicativo sugerem que outros quatro procedimentos contra Lula também chegaram às mãos da força-tarefa naquele momento.
A norma mais recente do MPF sobre os procedimentos investigativos criminais determina, em um de seus artigos, que o PIC precisa ser compartilhado por meio de “expedição de certidão, mediante requerimento” de qualquer interessado, inclusive do próprio Ministério Público. Não há nada, porém, proibição expressa ao repasse das informações da maneira adotada pela Lava Jato de Curitiba.
Procurada, a PGR reconheceu que o ofício é o caminho correto para a troca de informações dentro da procuradoria, mas não vê uma violação flagrante no procedimento informal. “Provas pertencem à instituição Ministério Público Federal, e não a determinados membros ou grupos. Foi nesse contexto que a PGR solicitou, por meio de ofícios, o compartilhamento de dados das forças-tarefas em 13 de maio”, afirmou o órgão, em nota que aproveita para defender a tese de Augusto Aras.
Comportamento reprovável
A falta de um enquadramento legal não impede, porém, que a conduta da Lava Jato seja considerada reprovável. “Uma coisa é você fazer a cooperação dentro do canal legal, deixando tudo registrado por escrito. Outra coisa é combinar isso pelo Telegram, onde não há nenhum tipo de controle. É algo muito grave e que mostra, digamos, uma vocação para a clandestinidade”, avalia o jurista Cristiano Maronna, doutor em Direito pela USP e conselheiro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o IBCCrim, a quem apresentamos o caso.
O Intercept perguntou à Lava Jato no Paraná se reconhecia ter acessado os autos por antecipação, se esse expediente era comum e se os procuradores consideram o procedimento adequado. Em nota, a força-tarefa não negou o recebimento informal dos autos e nem o fato de que eles estavam sob sigilo, mas eximiu-se de culpa. Segundo a resposta do grupo, “cabe ao próprio procurador que é titular da investigação conferir acesso às informações quando e da forma que entender pertinente, não sendo necessárias formalidades especiais para tanto”.
É uma alegação que não resiste ao confronto com o procedimento adotado pela própria Lava Jato em seguida. Mesmo considerando que a troca de informações sigilosas entre procuradores não depende de “formalidades especiais”, a força-tarefa as adotou após receber os autos de maneira informal, emitindo um ofício a Brasília.
Outro lado
Já o MPF do Distrito Federal se recusou a comentar o caso. O Intercept questionou ainda ao Conselho Nacional do Ministério Público se o órgão vê problema no procedimento. O CNMP limitou-se a citar as normas que tratam dos PICs e informou não poder comentar o caso concreto, porque pode eventualmente ser chamado para julgá-lo.
A PGR está investigando as manobras da Lava Jato para se apropriar de investigações, como no caso de Lula. No último dia 30, a corregedora-geral da instituição, Elizeta de Paiva Ramos, mandou abrir uma sindicância sobre o trabalho das forças-tarefa devido à suspeita de que a equipe de São Paulo ignorava a distribuição regular dos casos para assumir aqueles de seu interesse, algo que os procuradores negam.
Prestação de contas
Em Curitiba, mostram as conversas via Telegram, o excesso de procedimentos era notado especialmente na hora de prestar contas à corregedoria do MPF. Trata-se da única instância à qual os procuradores precisam dar satisfações sobre investigações paradas ou deixadas pelo caminho.
Em maio de 2016, por exemplo, o veterano procurador Januário Paludo estava incumbido de sanear a papelada. Pelo aplicativo, ele avisou que havia levado a Porto Alegre, de onde também despacha, todos os documentos do gabinete de Dallagnol e “zerado” suas pendências. Em resposta, o coordenador da Lava Jato fez uma piada: “Zerado pq levou tudo pra uma sala de POA que tá com a porta que não fecha de tanta coisa? Kkkk”.
As mensagens mostram que a Lava Jato também deixava acumular denúncias externas, recebidas de terceiros. Numa tarde em novembro de 2017, Dallagnol anunciou aos colegas que Paludo faria uma triagem dessas informações para “enterrar com devidas honras as centenas de esqueletos” da força-tarefa.
Da Redação, com reportagem do The Intercept Brasil
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