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Se os pobres/nordestinos ainda são base de apoio do ex-presidente, não é por qualquer associação messiânica à sua figura política, como se ele tivesse sido um provedor familiar ideal em um passado mítico de fartura (“pai dos pobres”). Mas por ainda guardarem na memória que, durante poucos anos, algumas de suas demandas (básicas) foram reconhecidas e levadas a sério politicamente. Não se trata de recuperar um paraíso perdido, mas um momento no qual foi possível articular um arco de alianças em que as enormes e congênitas desigualdades sociais do Brasil foram desafiadas. Em vez de nostalgia por um Messias, o que essas preferências expressam é vontade de combater, sem subterfúgios, a pobreza.

O BRASIL É AQUELE PAÍS que tem horror à fome, à ideia da fome, à possibilidade da fome. Não suporta pensar na sua proximidade: sabe que ela devasta o corpo, a dignidade, a vida. Mas o Brasil é também o país que está totalmente acostumado à sua presença, seja de forma real ou mediada: ela está no rapaz circulando perto dos carros e segurando um cartaz pedindo comida; na criança magra vista na matéria da revista; na campanha de arrecadação de alimento que mostra a família, de preferência nordestina, em frente a um casebre.

Os sentimentos circulam entre a revolta e uma desmobilizadora resignação: repetimos que aquilo precisa ser combatido, que é “uma vergonha”, que “o governo devia dar um jeito”, que “esse é o Brasil”. Todo esse horror geralmente tem um destino: no fim, a fome dos outros é um problema dos outros – a não ser que ela sirva para nos entreter, para respaldar reportagem especial ou para apresentador da Globo mostrar “a miséria” em rede nacional e assim posar de salvador da pátria. Falo já a respeito.

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O fato é que depois de passar algum tempo meio fora de moda, a falta de comida no prato voltou bombando ao noticiário e à vida nacional. Os motivos são diversos, mas aqui podemos sintetizá-los: chegamos a mais de 39,9 milhões de pessoas vivendo na miséria (renda de até R$ 89 por mês) e mais de 11 milhões em situação de insegurança alimentar, segundo o IBGE e Ministério da Cidadania. É um aumento de três milhões de pessoas com fome nos últimos cinco anos. Esses números estão desatualizados: neles não está incluída a população de rua nem os últimos impactos da covid-19 no país. Consequentemente, voltamos ao Mapa da Fome do qual saímos somente em 2014, durante o governo Dilma. A região Nordeste concentra quase metade (47%) da pobreza brasileira.

Um último e não menos importante motivo: a fome e a pobreza como tópicos relacionados ao retorno de Lula à corrida presidencial em 2022.

Quero tratar desse último caso, já que ele está diretamente relacionado aos anteriores: falar nos governos petistas é evocar o Bolsa Família, o maior programa de transferência condicionada de renda do mundo (em número absoluto de pessoas assistidas). E falar no Bolsa Família é, também, uma boa oportunidade para nós, os não famintos, analisarmos a nossa relação tantas vezes cínica com a pobreza e a fome, tratadas como se fossem entidades sobre as quais falamos, lemos e nos entretemos, mas sobre as quais não nos responsabilizamos efetivamente.

A fome como espécie de Netflix não confessado.

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Admito que foi com verdadeiro fascínio que ouvi a jornalista Thaís Oyama, no canal My News, falar da elegibilidade do ex-presidente. Ao analisar que as classes D e E seriam disputadas por Bolsonaro e Lula em 2022, a profissional automaticamente trouxe o Nordeste como o endereço óbvio dessa pobreza. Ali, ainda arrematou que, na região, “Lula é tido e havido como o pai dos pobres”, afirmação que escuto bem mais na imprensa sul/sudestina do que aqui em Pernambuco. A coisa avançou e galgou, eu diria, para o poético: em determinado momento, Oyama afirma que o ex-presidente é forte nestas terras porque trouxe “um tempo de fartura, um tempo de pujança, as pessoas têm essa nostalgia”.

Até então, “nostalgia”, para mim, remetia à saudade de um domingo na praia com a família, à lembrança do primeiro ano na universidade, à memória do filho recém-nascido dormindo no berço. Nunca associei “nostalgia” à extrema pobreza ou à miséria, tampouco às palavras “fome”, “urgência”, “desespero”, “necessidade” ou “morte”. Fiquei pensando se isso é por conta de algum ponto muito pouco sofisticado da minha cognição ou se é apenas mais uma prova do distanciamento absurdo que as classes médias e altas – e a maioria da imprensa – mantêm com uma pobreza sobre a qual se sentem tão à vontade para falar.

Ao mobilizar no seu argumento o conceito de “nostalgia” – reintroduzido no debate político pelo norte-americano Mark Lilla –, Oyama inverte percepções e fatos. Situa o entendimento que os pobres brasileiros têm dos governos Lula no que o cientista político chama de comportamento “reacionário”, ou seja, no campo de quem se opõe às transformações supostamente “progressistas” (neoliberalismo, desregulamentação, etc.) em nome de um passado idilicamente imaginado.

Se os pobres/nordestinos ainda são base de apoio do ex-presidente, não é por qualquer associação messiânica à sua figura política, como se ele tivesse sido um provedor familiar ideal em um passado mítico de fartura (“pai dos pobres”). Mas por ainda guardarem na memória que, durante poucos anos, algumas de suas demandas (básicas) foram reconhecidas e levadas a sério politicamente. Não se trata de recuperar um paraíso perdido, mas um momento no qual foi possível articular um arco de alianças em que as enormes e congênitas desigualdades sociais do Brasil foram desafiadas. Em vez de nostalgia por um Messias, o que essas preferências expressam é vontade de combater, sem subterfúgios, a pobreza.

Se a fome é professora, como escreveu Carolina Maria de Jesus, talvez devêssemos, de uma vez por todas, aprender a ouvi-la.

Aqui, Maria de Fátima Bezerra da Silva, 58 anos, agricultora aposentada, conta sobre o dia do nascimento de seu filho Fernando José da Silva, 40, em 1981. Foi o ano mais crítico de uma grande estiagem no Nordeste (de 1979 a 1985). Naquele momento, Maria de Fátima vivia na Fazenda São Gonçalo, zona rural do município de Betânia, sertão do Moxotó, em Pernambuco. Hoje, ela mora em Sítio dos Nunes, distrito da cidade de Flores, também no sertão.

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