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Nada em Guaribas permanece igual a três anos atrás. A estrada que dá acesso ao município no sul do Piauí agora é totalmente asfaltada, assim como várias ruas da cidade. Mas a vida de muitas famílias mudou para pior – não tem carne no prato todos os dias e a comida, às vezes, é feita no fogão a lenha, porque um botijão de gás custa R$ 120. Também não é como antes o anseio generalizado pela volta do PT. A chegada de novas igrejas afinadas com o bolsonarismo e a influência de pastores evangélicos está mudando as intenções de voto naquela que já foi a cidade mais petista do Brasil.

Estive em Guaribas em 2018 e voltei no início deste ano para saber como estava o município de 4.573 habitantes que deu o maior percentual de votos para Fernando Haddad na última eleição presidencial. O candidato petista foi a escolha de 93% dos eleitores no primeiro turno e de 98% no segundo – apenas 59 pessoas votaram em Bolsonaro. A cidade foi escolhida como piloto do programa Fome Zero em 2003, primeiro ano de mandato de Lula, quando o povo sentiu a condição de vida começar a melhorar. O Índice de Desenvolvimento Humano, que era de 0,214 em 2000, chegou a 0,508 em 2010, último dado divulgado pelo IBGE.

Os índices se materializam no dia a dia da população. As casas de taipa, comuns há 20 anos, sumiram. O cenário urbano agora é composto por moradias que geralmente têm uma calçada com espaço suficiente para as cadeiras no fim da tarde e uma árvore com sombra grande à frente. Não há muros e nem trânsito em Guaribas. Dependendo do horário, nem mesmo se vê pessoas pelas ruas estreitas.

Em 2018, quando andei por aquelas vias e conversei com os guaribanos pela primeira vez, um dos principais temores da população era o que de fato aconteceu no governo Bolsonaro: o fim do Bolsa Família e a saída dos médicos cubanos do município. Os dois programas, implementados durante os governos petistas, eram essenciais em um lugar que está entre os 200 municípios com o pior índice de atividade econômica do país, segundo dados do IBGE de 2019. Eles também eram os principais motivos da gratidão que os guaribanos tinham ao PT e, principalmente, a Lula. Mas esse sentimento vem mudando.

A cozinheira Natália Pereira, eleitora convicta de Haddad em 2018, é um exemplo disso. Quando voltei à sua casa, a encontrei à beira do fogão, terminando de limpar alguns peixes que seriam servidos para os clientes no almoço. Fui recebida com alegria e um enorme sorriso. Ela parecia estar esperando meu retorno para dizer que agora é a favor de Bolsonaro. “Dessa vez estou com ele. O tempo muda e, a cada dia que passa, a gente vai vendo. Tem muita coisa que não é do jeito que eu pensava”.

Quem a ajudou a “entender melhor as coisas”, me disse, foi o pastor Hosano Júnior, da Igreja Bíblica da Paz. Ele saiu de São Paulo e está morando em Guaribas desde 2020. No site da denominação evangélica, consta que a decisão de se instalar no Piauí foi tomada após “dois anos consecutivos de viagem missionária à cidade” e que existe um trabalho no sertão brasileiro “para que vidas sejam salvas e transformadas pelo poder da palavra de Deus”. Pereira não era evangélica, mas passou a frequentar os cultos da igreja e a conversar bastante com o pastor Júnior. “Ele vai explicando as coisas para a gente e está com o Bolsonaro. Ele diz que o presidente é uma pessoa boa e quer coisas para o bem”.

Por e-mail, perguntei ao pastor Júnior como ele costuma abordar questões políticas com os fiéis. “Todas as conversas e aconselhamentos referente à política ou a qualquer outro assunto são baseados no que a palavra de Deus nos orienta”, respondeu. Sua motivação para se instalar em Guaribas, acrescentou, foi uma reportagem sobre a “situação precária” de algumas pessoas. “Cremos que onde a presença de Deus chega, tudo se transforma para o bem. Já presenciamos muitas mudanças em Guaribas”, disse o pastor, que não tem previsão para deixar a cidade.

Em três anos, a cozinheira Natália Pereira passou de petista convicta a bolsonarista orgulhosa.

A igreja, que apoiou os atos antidemocráticos convocados pelo presidente em 7 de setembro de 2020, foi a segunda denominação evangélica que se instalou em Guaribas nos últimos três anos. A outra é a Assembleia de Deus Clamor da Última Hora, registrada em 2019 em Val Paraíso, no estado de Goiás. O pastor Argemiro e a pastora Ozelia são os missionários da denominação responsáveis por “ganhar almas para Cristo” no município piauiense.

As igrejas se somam às três que já existiam em 2018 – a Assembleia de Deus Madureira, a Assembleia de Deus Missões e O Brasil para Cristo, todas afinadas com o bolsonarismo.

O pastor Amado Alves, da Assembleia de Deus Madureira, é um dos mais empenhados em virar votos. Ele faz campanha para Bolsonaro desde a última eleição e acredita que a maioria dos 59 eleitores que o presidente teve no segundo turno eram da sua igreja. Para este ano, o contato com “pastores que ficam próximos ao governo” o ajudou a ter “outra visão” de como trabalhar e, por isso, está confiante de que será mais bem-sucedido.

O pastor menciona com orgulho que já participou de um evento com a presença do ministro do Supremo Tribunal Federal André Mendonça, o “terrivelmente evangélico” indicado por Bolsonaro. Ele também comemora a proximidade com os “rallyzeiros de Goiânia”, uma forma de chamar os missionários que fazem cruzadas evangélicas, visitando cidades pelo país.

O pastor Amado Alves, da Assembleia de Deus Madureira, crê que as chances de virar votos para Bolsonaro ‘melhorou em 100%’ com a chegada de novas igrejas alinhadas ao presidente.

O resultado de todo esse trabalho foi o aumento de aproximadamente 30% no número de fiéis na Assembleia de Deus Madureira nos últimos três anos, segundo os cálculos do pastor. “A gente fica ali, incitando devargarzinho. Eu acredito que vamos chegar a mais de 400 votos”. Para quem estranha tanta dedicação em prol do Bolsonaro, ele explica: “nós temos que falar, porque a palavra [a Bíblia] diz que a política é projeto de Deus”.

Somente na zona urbana de Guaribas, a igreja liderada pelo pastor Amado tem um templo e uma congregação, espécie de filial. A cidade, embora pequena o bastante para ser atravessada em menos de 10 minutos de carro, é separada por uma barragem, e as casas se concentram nos dois pontos mais altos. Por isso, o pastor achou importante ter um templo em cada lado. Há, ainda, três congregações espalhadas pela zona rural e outra sendo construída no Cajueiro, um grande povoado do município. “Eu penso que ele vai ganhar de novo. No que depender da minha oração e do meu trabalho…”.

O pastor Alves não está sozinho. Ele disse que, por haver “um grupo de pastores, a mente desse povo [de Guaribas] hoje está muito aberta”. Na sua avaliação, esse trabalho conjunto “melhorou em 100%” a chance de converter votos para Bolsonaro.

Maria Joana Silva Alves, membro da Igreja O Brasil para Cristo, afirma que Bolsonaro ‘vem colocando Deus’ em seu governo.

Maria Joana Silva Alves é uma das frequentadoras da Igreja O Brasil para Cristo. Lá, ela ouviu dizer que as ações de um governante não são um favor, mas, sim, uma obrigação de quem está no poder. Não há, portanto, razão para os guaribanos votarem em Lula somente pelo que ele fez durante seu governo. “A palavra de Deus diz que, quando um governante é justo, o povo todo é feliz. Mas quando é injusto, o povo todo sofre”.

Sobre o que Bolsonaro fez em defesa do povo, ela afirma apenas que ele “vem fazendo as coisas, vem colocando Deus”. Por isso, ela acredita que “os evangélicos, conhecedores da palavra”, com certeza votarão nele – o apoio evangélico ao presidente vem caindo, no entanto. Embora ainda não tenha decidido se fará o mesmo, uma coisa é certa: “em alguns que são muito fortes para o pessoal daqui, eu não voto”, disse, se referindo a Lula.

Matheus Alexandre, cientista social e mestrando em Sociologia que pesquisa os valores políticos dos evangélicos brasileiros, lembra que se estabelecer em pequenas cidades, assim como nas periferias das grandes capitais, sempre foi parte da estratégia de pregação e conversão de novos crentes. Portanto, ele não acredita em uma ação planejada de expansão de igrejas evangélicas com o único intuito de angariar apoio político para o presidente. Mas, para ele, é inegável que o encontro com o bolsonarismo ocorre, porque “as principais denominações evangélicas brasileiras, influenciadas por uma ética neopentecostal, possuem crenças que preservam afinidades com o neoliberalismo, o conservadorismo e o autoritarismo”.

Ivan Martins, pastor da Igreja Metodista e doutorando em Educação que estuda fundamentalismo religioso e neoliberalismo, concorda. “Desconheço quaisquer organizações missionárias ou evangelizadoras que pensem em alcançar as cidades do interior a fim de influenciar nas eleições. No entanto, lideranças evangélicas fundamentalistas têm um projeto de poder alinhado ao atual governo. Assim, naturalmente, estão em campanha”.

Os dois pesquisadores alertam que nem todas as igrejas evangélicas são iguais. E, dentro de cada denominação, há vertentes que se opõem ao bolsonarismo. Não é o caso, contudo, dos pastores que atuam em Guaribas, para os quais a pauta conservadora é essencial. O pastor Alves, por exemplo, lançou mão de um argumento comum para explicar por que é a favor de Bolsonaro – “ele defende a família”. Perguntei o que o faz pensar que Lula não defende. Depois de muito tergiversar, concluiu que seu presidente se aproxima dos valores da família quando se coloca contra os homossexuais, ao contrário de Lula, que os defende.

Fonte: The Intercept Brasil

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