A imagem de crianças aprisionadas em modernos campos de concentração cercados de arame nos Estados Unidos tem provocado reações de choque, repulsa e indignação no mundo inteiro.
O fato de que não tenham sido capazes de tirar o sono de nenhuma autoridade do planeta é a demonstração escancarada do ambiente geral de conformismo e derrota de nossa época. Também expressa a hipocrisia passageira, torcendo para que um escândalo dessa envergadura, possa ser esquecido após duas ou três manchetes inofensivas.
O problema dessa imagem é seu caráter inaceitável, explosivo. Num universo no qual 0,1% da população controla uma riqueza mundial de US$ 73,7 trilhões, nunca fomos tão ricos. Poucas vezes fomos tão canalhas. Estamos vendo, agora, que nunca houve tanto dinheiro para se fazer o mal.
Depois de desembarcar das versões contemporâneas dos velhos navios negreiros, os adultos são enjaulados e separados de seus filhos — que também serão encarcerados.
As crianças, algumas ainda bebês, que choram à noite num ponto mal iluminado e incerto, são os personagens-símbolo de tamanha injustiça e sofrimento. Encarnam, no entanto, uma tragédia previsível, dolorosamente construída.
Vivemos um tempo de pilhagem de riquezas e destruição de nações inteiras, de injustiça social e regressão. Produto da pior devastação econômica desde 1929, assiste-se em todo planeta a um processo de empobrecimento e perda de direitos que atinge jovens, adultos e velhos num movimento perverso — mas de lógica irretocável.
As crianças sofrem em função de uma regra conhecida da existência nas sociedades humanas. Se as leis da natureza ensinam os pais a cuidar dos filhotes — sejam humanos, caninos ou leoninos, por exemplo — ao longo dos anos centenas de milhões de adultos foram alijados de qualquer oportunidade de trabalho e progresso. Em consequência, perderam toda capacidade de oferecer proteção, conforto ou alimento. Simples assim.
Sem destino, sem pouso e, dizendo com simplicidade, sem emprego e sem descanso, perto de 70 milhões de pessoas foram expelidas de suas casas, de seu mundo, e agora vagam pelo planeta em barcos, comboios clandestinos e acampamentos improvisados. “O mundo assiste a pior crise de deslocamento involuntário de todos os tempos”, informa a Folha, empregando o termo técnico para falar de realidades muito mais chocantes e doloridas, assombrações que não assombram porque estamos sendo habituados a elas.
Formando uma massa maior do que a maioria dos países reconhecidos pela ONU, essa multidão em movimento é a parcela visível de um universo infinitamente maior, que caminha cotidianamente para a regressão e o atras. É assim num ponto qualquer de Bogotá, nas ruas de São Paulo, nas estradas do Iraque ou ruínas da Indonésia. Onde você quiser imaginar — mesmo nas periferias pobres da Europa e Estados Unidos.
São os deserdados do colapso de 2008-2009, que deu impulso a um novo processo concentração de renda e de poder político em escala mundial, minando, cedo ou tarde, a resistência e luta por um destino melhor que se manifestava em tantos lugares — inclusive no Brasil, convém, lembrar, numa homenagem às 49 brasileirinhas e brasileirinhos que foram separadas dos país ao chegar aos EUA e até agora não tiveram direito a qualquer reação indignada por parte do Planalto de Temer.
O cenário e os personagens da tragédia contem algo de bíblico mas a realidade é absolutamente material, econômica e política. Também pode ser explicada racionalmente. Basta evitar qualquer hipocrisia sentimental.
Os pedantes do pensamento único me desculpem mas essa realidade terrível foi anunciada com clareza peculiar por Karl Marx, explicada por John Maynard Keynes e enriquecida por corajosos sábios contemporâneas que vieram mais tarde e hoje se encontram silenciados. Não há debate possível aqui. Nem lugar para lágrimas de crocodilo.
O que estamos vendo é o óbvio, o saldo inevitável de um projeto político de concentração mundial de renda, riqueza e força militar. A partir de Washington, e suas várias correias de transmissão espalhadas pelo mundo, tenta-se impor uma nova ordem de cima para baixo, em todo o planeta, visando a consolidação de um poder econômico administrado pelo império norte-americano.
O ponto central é tratar o bem-estar do povo como desperdício e ameaça a seus lucros gigantescos. Também é preciso encarar a dignidade devida a todo ser humano desde o fim da Idade Média como que poucos merecem e um número ainda menor irá alcançar. Também é preciso destruir o que ainda resta de espaço público e privatizar o resto, sem nada poupar, inviabilizando por fim as democracias, regimes onde as maiorias têm de ser ouvidas.
No cotidiano de cada país, esse universo produz o fascismo e suas variantes. Nos Estados Unidos, início e fim de tudo, o melhor retrato é o campo de concentração para crianças.
Alguma dúvida?
Paulo M Leitee