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A intervenção militar no Rio de Janeiro como suposta forma de combater a violência atualiza com força a criminalização das classes populares, concentradas nas favelas como forma de sobrevivência. A própria forma de delegar às FFAA, instituição feita para desenvolver a guerra, essa missão, revela que vai se tratar de ocupação de um território, considerado como habitado por inimigos.

A ameaça do Bolsonaro de bombardeio aéreo, depois do aviso para que quem não fosse culpado se retirasse, as ameaças de mandatos coletivos, sobre toda uma comunidade, e as ameaças de que “bandido armado tem que ser morto” – são expressões exacerbadas da concepção militar de ocupação de um território inimigo, como forma de triunfar na “guerra ao tráfico”.

O que significar mandar o exercito atuar nas favelas? Em primeiro lugar significa criminalizar a população pobre. A maioria esmagadora da população das favelas sai trabalhar bem cedo e volta no final do dia. São trabalhadores.

É uma forma de reforçar o clichê de que o povo, as classes populares, são classes perigosas, associadas ao crime, ao tráfico, à violência, à ilegalidade. Associar pobreza, miséria, a marginalidade, a disponibilidade para o crime ou para acobertar o crime, é uma tradição do pensamento conservador brasileiro, que assim se dissocia das responsabilidades por produzir uma sociedade com tanta pobreza e miséria.

Historicamente sempre foi assim. Quando a pobreza explodiu em Paris e em Londres, no começo do século XIX, a burguesia desses países não conseguia explicar como “homens livres”, libertos da exploração feudal, se dedicavam ao alcoolismo, à violência, ao roubo. Atribuíam isso aos desempregados, porque consideravam que o trabalho integrava as pessoas, produzia bons comportamentos.

Criaram casas de recuperação, onde encerravam a trabalhadores obrigando-os a trabalhar, como forma suposta de socialização. Na Inglaterra, considerando Londres contaminada definitivamente, deslocaram o eixo da industrialização para Manchester.

Elaborou-se, naquele momento, a ideologia das classes trabalhadoras como classes perigosas, associando-as à violência, ao alcoolismo, à marginalidade. Associado a ela, a ideia de que “rico não precisa roubar”, mas pobre se disporia a qualquer viração para completar o orçamento.

Ao mesmo tempo que foi se elaborando o biótipo do tipo mais perigoso: jovem, negro, que circula muito pelas ruas. Pesquisas mostram que essa é a vitima privilegiada das batidas policiais, das prisões indevidas.

Quando voltei do exilio ao Brasil, me lembro de ter visto uma imagem muito significativa dos novos tempos que passava a viver o país depois da ditadura. Uma senhor andava por uma rua estreita, escura, quando veio um menino negro na outra direção. Antes, um menino pobre sozinho na rua, à noite, era objeto de piedade, de preocupação sobre se tinha casa, onde morava, como se poderia fazer para ajuda-lo, não deixa-lo perambular sozinho, à noite, pela rua.

Mas aquela mulher, diante da visão do menino que vinha em direção a ela, imediatamente mudou de calçada. Isto é, menino negro passou a ser sinal de perigo, de risco, haveria que se defender diante dele. Me dei conta que algo de muito importante havia mudado no pais.

Embora os jovens negros morram diariamente, perto de 10 por dia, por acoes a polícia, passaram a ser qualificados de agentes da violência, quando são vitimas dela. Um elemento mais para caracterizar os setores populares como classes perigosas.

A criminalização das favelas é a criminalização das questões sociais. Combater a violência e o narcotráfico não possuiria nenhum componente de garantir direitos sociais a todos, começando por emprego, escola, moradia, transporte, salários. Como se a violência, o tráfico, fossem inerentes aos pobres.

Quando controlar o tráfico é, antes de tudo, controlar as fronteiras, por onde entram as drogas e o armamento pesado. Em segundo lugar, controlar os fluxos bancários para onde são canalizados os milhões logrados com a venda das drogas. Em terceiro, por esses mecanismos, localizar os verdadeiros chefões da droga, que não moram nas favelas. Em quarto, descriminalizar as drogas leves, regulamentar seu uso. Além das medidas de garantia dos direitos sociais para a massa da população.

Mas a estigmatizacao das classes populares e das favelas, onde elas residem, em grande medida, no Rio e em outras grandes metrópoles, é a via mais fácil de, ao mesmo tempo, ineficácia em combate à violência, com mais violência, fazer recair sobre os pobres a carga de um fenômeno muito mais amplo. O maior consumidor de drogas do mundo, de longe, são os EUA, que ao mesmo tempo que não diminui o consumo, reparte pelo mundo agora a fracassada estratégia de guerra às drogas, que serve para desviar as raízes do problema e seus verdadeiros responsáveis.

EMIR SADER

Colunista do 247, Emir Sader é um dos principais sociólogos e cientistas políticos brasileiros