‘ISSO NÃO PODE SER UMA COISA PÚBLICA’
Vídeo: Conselheiros do CFM incentivaram prescrição da cloroquina em reunião secreta do gabinete paralelo
Éram precisamente 18 horas do domingo, 19 de julho de 2020, quando começou uma reunião online com a presença de figuras importantes da saúde brasileira. O encontro sigiloso reuniu dois secretários do Ministério da Saúde, um vice-presidente e dois conselheiros do Conselho Federal de Medicina, o CFM, médicos de diferentes regiões do país e o empresário Carlos Wizard.
A pauta era discutir o embasamento legal para a prescrição da cloroquina e as estratégias de distribuição da droga, comprovadamente ineficaz contra a covid-19, no Brasil. A reunião foi secreta – e permaneceu sigilosa até agora.
Nesse ambiente reservado, os representantes do CFM admitem que estavam ali fazendo o que não deveriam: promovendo um tratamento na época já descartado pelas maiores autoridades de saúde do mundo contra uma doença que ainda não tem cura.
A gravação do encontro foi entregue ao Intercept por uma fonte que pediu para se manter anônima por medo de represálias. O material não faz parte dos documentos recolhidos pela CPI, assim como o vídeo que mostrou a atuação do senador Marcos do Val, do Podemos do Espírito Santo, junto ao grupo. Para preservar a identidade da fonte, o Intercept optou por publicar apenas trechos dos vídeos. RelacionadoVídeo: Senador da CPI trabalhou com ‘gabinete paralelo’ de Carlos Wizard para popularizar cloroquina
Apesar de contar com representantes de entidades que estavam na linha de frente do combate à maior pandemia do último século, a reunião não consta em agendas públicas ou em registros do governo ou do CFM, que regula – ou deveria – o exercício da medicina no Brasil. Em vez disso, o encontro de três horas de duração aconteceu na internet, fora de prédios públicos, no que veio a ficar conhecido como o gabinete paralelo do governo Jair Bolsonaro para a pandemia de covid-19, comandado por Wizard.
O médico Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti, terceiro vice-presidente do CFM, se sentiu à vontade para dizer que estava “representando os médicos de Alagoas interessados e empenhados em implantar o tratamento precoce”. Na sequência, ele deu início a uma apresentação de 19 slides – todos com o logotipo da entidade – em que, ao longo de 15 minutos, detalhou leis, pareceres e manuais de conduta médicos para estimular profissionais de saúde a receitarem a cloroquina contra a covid-19 sem receio de sofrerem punições éticas.
Ao ser questionado pela médica Luciana Cruz sobre a possibilidade de refazer a palestra para médicos interessados em receitar a cloroquina, Fortes admitiu que não poderia fazer em público o que acabara de fazer ali. “Isso não pode ser uma coisa pública, inclusive porque, como eu sou o responsável pela Codame, [pela área que disciplina a] propaganda e publicidade médica no Brasil. Eu próprio escrevi o que eu não posso fazer” disse, rindo.
Naquele momento de 2020, a cloroquina, que faz parte do infame kit covid, já era considerada comprovadamente ineficaz contra o vírus que já matou quase 600 mil brasileiros pela agência de vigilância sanitária dos EUA e por estudos da Universidade de Oxford, na Inglaterra, publicados antes da reunião. A Organização Mundial de Saúde, a OMS, já havia suspendido seus estudos com a droga como possível tratamento para a covid-19. Hoje, sabe-se ainda mais: o uso da droga aumentou a mortalidade pela doença.
Fortes é o responsável por dirigir e coordenar os trabalhos da Comissão de Divulgação de Assuntos Médicos, ou seja, de propaganda, no CFM. Mas, no gabinete paralelo, ele tratava do parecer 4/2020 do CFM, que liberou o uso de cloroquina para o combate de doenças cuja aplicação não está prevista na bula do medicamento – caso da covid-19.
Além dos conselheiros do CFM e de Wizard, dezenas de pessoas participaram do encontro, como a médica Nise Yamaguchi, e dois ocupantes de cargos de nomeação política no Ministério da Saúde: a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde, Mayra Pinheiro (que ficou conhecida como Capitã Cloroquina) e o secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos, Hélio Angotti Neto. Todos eles tinham interlocução direta com Bolsonaro e outros propagandistas do movimento pelo ineficaz tratamento precoce da covid-19.
Promover a ideia de um remédio milagroso contra a doença era estimulado pelo presidente da República para que a população saísse à rua, apesar dos riscos, na esperança de movimentar a economia.
Luís Guilherme Teixeira dos Santos, conselheiro do Conselho Federal de Medicina e ex-corregedor Ético-Profissional do Conselho Regional de Medicina do Rio, faz arminha com o senador Flávio Bolsonaro, o 01.
Foto: Reprodução
‘Tem que tomar muito cuidado nessas aparições’
Atranquilidade com que Fortes fala da contradição ética em que se encontrava talvez se explique porque sabe que está protegido pelo sigilo. E que não estava só. Um colega no CFM, o conselheiro federal Luís Guilherme Teixeira dos Santos, estava igualmente presente à reunião do gabinete secreto. Santos, além disso, foi diretor e corregedor do setor de Processo Ético-Profissional do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro até maio de 2020. E, assim como Fortes, reconheceu o campo minado sobre o qual caminhavam.
“O colega não pode induzir a um tratamento ou prometer isso ou aquilo. Mas dá para ser feita uma live informativa. E tem que tomar muito cuidado com as palavras. Parem para pensar, eu estou aqui, doutor Emmanuel, doutora Annelise, doutora Graziela… Tem pessoas de dentro do Conselho aqui [no gabinete paralelo], e isso geraria um problema maior ainda. Imagina só, nós, envolvidos [na promoção da cloroquina]?”, disse Santos.
Em seguida, Santos fez uma fala confusa, na qual admitia ser difícil se dissociar do fato de ser integrante do CFM ao advogar pela cloroquina. Por isso, recomendava, era melhor optar pela discrição.
“O doutor Emmanuel falou, de forma bem clara: uma coisa é eu estar aqui como doutor Luís Guilherme, outra coisa é [participar] como representante do CFM. E, para nós, que estamos nessa posição [de membros da direção do CFM], é muito difícil [se] dissociar [dela], por mais que eu consiga falar [da cloroquina] de forma adequada. Tem que tomar muito cuidado nessas aparições, porque isso é muito ruim”, alertou.
Além deles, a médica Annelise Mota de Alencar Meneguesso, também conselheira federal do CFM, participa da reunião. Ela pode ser vista sugerindo aos colegas que sempre lembrem que o tratamento da covid-19 com cloroquina é off label (ou seja, não está na bula do medicamento). “Como a gente sabe que o pessoal contrário à gente está em cima, qualquer passo em falso vai ser motivo para alguns [processarem os médicos que receitarem a cloroquina]”.
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