Irresponsabilidade no trato com a informação e posicionamento político dissimulado pela notícia.
Esses dois elementos são os eixos marcantes da edição de ontem (19/08) do Jornal Nacional, data em que o dia se tornou noite em São Paulo por causa das queimadas no Norte do país, em que jornais alemães pedem boicote a produtos brasileiros por causa da destruição da Amazônia e se completam 500 dias da prisão – cada vez mais injustificável – de Lula.
Diante do caos que está assolando o Brasil, metaforicamente representado pelo dia negro em São Paulo, a edição do JN é simbolicamente estruturada para construir significações, ignorando uma realidade e projetando “o Brasil que a gente quer”.
Três linhas simbólicas argumentativas cumprem essa função:
1. IDEIA DOS POLOS: LULA E BOLSONARO SE EQUIVALEM
Quando se completam 500 dias da prisão sem provas de Lula, cujas ações da Lava Jato seguem sendo desnudadas pelas denúncias do Intercept, a ideia de polos que prejudicam o país é retomada com vigor, agora num gancho inexplicável com o meio ambiente.
Desde a campanha, antes da adesão a Bolsonaro como última escolha possível contra o PT, o JN trabalhou estrategicamente a concepção de que Lula e Bolsonaro estavam em polos do espectro democrático, igualmente radicais, cujas candidaturas prejudicavam o país exatamente pela radicalização.
Essa ideia ganhou novos matizes na edição de 19/08 com o dizer do Jornal Nacional de que Lula, tal qual Bolsonaro, também já havia retrucado outros países que faziam recomendações sobre a Amazônia.
Não há qualquer contextualização, apenas a fala de ambos, recortada, editada, enquadrada.
Não há qualquer menção à discrepância das políticas ambientais dos dois governos.
Não são citados números de desmatamento ou recuperação ou investimento na conservação para efetivar algum termo de comparação.
Não informam que o Fundo Amazônia foi criado no governo Lula.
Não informam que os governos petistas nunca sofreram qualquer ameaça de sanção por questões de absoluta negligência com o meio ambiente.
Há apenas o anúncio de Bonner:
“Quando a Alemanha e a Noruega anunciaram a suspensão do envio de recursos para a proteção da floresta amazônica, o presidente Jair Bolsonaro repetiu uma postura que o então presidente Lula adotava quando estrangeiros criticavam a política ambiental do Brasil. Os dois presidentes afirmaram que a Europa destruiu todas as suas florestas e que por isso não tem moral para dar conselhos sobre a Amazônia”.
Na fala do repórter, no começo da matéria, lembrando a Rio 92, fica clara a suposta equivalência: “diante de dados tão alarmantes, governos brasileiros tão diferentes têm pelo menos uma reação em comum: ignorar esse combinado de 27 anos atrás”.
Imediatamente entra uma fala de Lula, descontextualizada, sem referência histórica imediata, intercalada por uma fala de Bolsonaro respondendo a Angela Merkel sobre os recentes cortes de recursos para o Fundo Amazônia.
Percebam como a referência é alicerçada no estabelecimento do elo entre os dois polos – “Jair Bolsonaro REPETIU uma postura” e “os dois presidentes afirmaram”.
De onde se infere que, se Bolsonaro hoje fala asneiras – e isso não é mais passível de ser ocultado -, Lula também falava. Ou seja, dois polos que prejudicam o país.
Essa estratégia da polarização, ou de considerar os dois como polos, revela duas coisas importantes:
a) Lula ainda incomoda bastante esse núcleo de poder representado pela mídia corporativa.
b) O Jornal Nacional não vai destruir Bolsonaro isoladamente sem que haja uma opção viável à direita e sem que Lula esteja inviabilizado politicamente.
Portanto, um avanço em direção a Bolsonaro vai significar um avanço em direção a Lula.
Para não haver dúvidas, assim se encerra a matéria: “É essa imagem que NOSSOS governos cultivam lá fora”. Portanto, não é apenas Bolsonaro.
2. NATURALIZAÇÃO DE ABSURDOS
O despropósito das queimadas é tratado como ocorrência sazonal, onde se vive uma “temporada de queimadas”, como se fosse algo que ocorre de tempos em tempos e nada tem a ver com a ação humana.
Não há qualquer referência à ação criminosa de grandes fazendeiros, que colocam fogo no que desmatam porque é imensamente mais barato agir dessa forma e, agora, têm o aval do presidente da República.
Quem esperou ver a imagem da Gotham City paulista ficou frustrado, porque o dia transformado em noite em São Paulo foi enquadrado no boletim do tempo – portanto, infere-se que se trata de algo absolutamente normal, que pode acontecer de tempos em tempos.
O dia que virou noite em São Paulo foi explicado, portanto, em função de uma “virada no tempo”, com “fumaça trazida pelos ventos”… nada mais singelo e natural.
“Esqueceram” de ressaltar a origem da “fumaça”, que de tão assombrosamente densa conseguiu cobrir e transformar o dia em noite numa cidade a quase três mil quilômetros de distância de sua origem.
Na chamada de abertura, informam que Mato Grosso vive a pior “temporada” de queimadas e que perdeu os recursos do Fundo Amazônia.
A matéria mostra que “falta dinheiro pra combater os incêndios”, e prossegue dizendo que, de janeiro até agora, “o estado registrou mais de 13 mil focos de fogo que podem ser indícios de queimadas”.
Vejam bem: “podem” ser indícios, apesar de dados registrarem o problema.
O enquadramento é aquele dado às tragédias: são mostradas cenas da destruição, há depoimentos de pessoas afetadas, mostram-se imagens de animais prejudicados, mas não há um agente, não há um sujeito que responda por isso, é uma tragédia, portanto, não controlável.
Para confirmar isso, diz a repórter:
“A situação em Mato Grosso é de alerta ambiental. Várias regiões no estado registraram ontem 38 graus. O clima quente e seco não tem data pra ir embora. Esse cenário favorece o aumento de queimadas como essa”.
Ou seja, queimada passa a ser algo que “surge”, não uma ação provocada por um agente humano.
No entanto, a matéria prossegue falando do corte nos recursos do Fundo Amazônia e de como os recursos foram importantes no combate aos incêndios e desmatamento.
Mas não recupera os motivos do corte imediatamente.
É nesse momento que entra a narração de William Bonner equiparando Lula a Bolsonaro.
Tudo passa a girar em torno dessa construção, e a matéria foca em mostrar que todos foram negligentes.
Não há recuperação ou comparação histórica, apesar do tamanho da matéria.
Ao invés de contextualizar o problema, com elementos atuais e históricos e dados de desmatamento e queimadas utilizadas como recurso pelos laifundiários, levando uma pluralidade de elementos para que os espectadores possam construir uma linha de interpretação, o JN preferiu mostrar o intenso reflorestamento da Europa e resgatar a história da “floresta prometida” de 2016, nas Olimpíadas.
Cada atleta levou uma muda que seria plantada para reflorestar, mas isso não ocorreu, e as mudas continuam no viveiro.
Para o JN, essa é a prova de que o Brasil nunca se importou muito com o meio ambiente, ao contrário da Europa, que investiu no reflorestamento. A não conclusão da floresta parece ser o pior problema do país em relação às questões ambientais.
A contextualziação poderia ser utilizada na construção da notícia com a menção, por exemplo, ao fato de que ruralistas do Pará escolheram a data de 10 de agosto para fazer queimadas em grande escala, mostrando que queriam “trabalhar”.
Os focos de incêndio foram progressivos desde então, e o “movimento” conquistou adesão de outras regiões.
Tampouco há menção ao fato de que o desmatamento para criar gado e para para plantar soja, utilizado pelos grandes fazendeiros, é uma das origens das queimadas.
Além disso, dados divulgados pelo Inpe mostram um aumento de 82% nas queimadas no governo Bolsonaro.
Basta ligar os pontinhos: a alta mais expressiva é no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, estados produtores e exportadores de soja.
Mas essas informações não são relevantes para o JN. Melhor pensar que a fumaça é por causa dos “ventos que correm”. E Bonner torce pela “chuvinha” para aliviar o incômodo das queimadas, afinal, agro é pop.
E quanto a São Paulo ter se transformado em Gotham City, o Boletim do Tempo fala que “o tempo virou”, os ventos e a frente fria ajudaram no fenômeno. Pronto, torçam pela chuvinha.
3. RECONSTRUÇÃO DA REALIDADE – NÃO VAMOS FALAR EM RECESSÃO
Para não dizer que não falamos de desemprego, uma matéria alto astral, mostrando pessoas felizes e empolgadas num treinamento para um “novo” emprego.
“Muitos brasileiros que procuram emprego passaram os últimos dias participando de uma espécie de maratona em Curitiba. Que só dura dois minutos”, nos informa Bonner.
Começa a matéria, e o repórter anuncia um auditório alegre e animado:
“Festa no auditório. A boa notícia chegou pelo celular. E é para comemorar mesmo: dos 7 mil inscritos, 500 foram escolhidos”.
Seguem imagens e depoimentos de felizardos escolhidos que terão de mostrar seu talento às empresas, em apenas dois minutos. É como o The Voice, compara o instrutor ouvido.
Tudo é festa, e no fim, a Beatriz, que se apresentou tão bem, deve levar uma vaga numa grande empresa de alimentos, e a Taís deu um show. Fim. Assim está circunscrito o problema do desemprego.
Num cenário de recessão técnica, nada de trazer palavras incômodas. Portanto, vamos encontrar outros significantes para tratar o tema, por exemplo, “treinamento para buscar emprego”.
Na mesma linha de abordagem da economia, o aumento do dólar e a queda da Bolsa de Valores de São Paulo são jogados na conta de um “iminente” crise econômica mundial provocada pela guerra comercial entre China e EUA.
Anuncia Bonner:
“Isso tem muito a ver com o medo de que a economia mundial perca o fôlego com a guerra comercial entre chineses e americanos. Nessa incerteza, investidores estrangeiros retiram recursos de países emergentes, como o Brasil. Ao venderem ações de empresas daqui, nossa Bolsa de Valores cai, e o aumento da procura por dólar e ouro faz os dois ficarem mais caros”.
De forma alguma isso é problema da equipe econômica chefiada por Paulo Guedes – se alguém tiver curiosidade para comparar, reveja edições do JN ao longo de 2015, sobre os problemas econômicos no governo Dilma.
Para fechar, se esqueçam dos problemas, porque logo mais tem show do Criança Esperança.
Nessa reconstrução, “recessão” é um conceito impublicável – negaremos a realidade enquanto for possível, nada de colares de tomate ou grandes estabelecimentos vazios, sem consumidores. A ordem é economia alto astral.
Há outros aspectos relevantes na edição, como a blindagem à Lava Jato, com matéria grande sobre a Lei de Abuso à Autoridade e fala de Sergio Moro, que são reveladores de um posicionamento do JN como ator político que se posiciona (obviamente, representando uma linha adotada pela grande corporação Rede Globo).
Portanto, as linhas-mestras da edição conversam entre si e formam um todo pleno de sentidos, que vai se consolidando.
Se Bolsonaro extrapola nas falas, não dá para bater nele apenas: é preciso ligá-lo a Lula, construindo os polos, minimizar a grave crise econômica, anulando a ideia de recessão, e blindar a Lava Jato.
Por ora, creio que será esse o roteiro básico. Vamos aguardar.
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