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Após compartilhar um texto segundo o qual o Brasil será ingovernável se todo o povo e as instituições nacionais não o seguirem cega e incondicionalmente, o presidente Jair Bolsonaro agora está espalhando um vídeo em que um pastor estrangeiro diz que ele, Bolsonaro, é o escolhido de Deus para governar o Brasil.

Logo, opor-se a Bolsonaro é opor-se ao próprio Deus.

Diz o pastor: “Na história da Bíblia, houve políticos que foram estabelecidos por Deus. Um exemplo: quando falam do imperador da Pérsia, Ciro. Antes do seu nascimento, Deus fala através de Isaías: ‘Eu escolho meu servo Ciro’. E o senhor Jair Bolsonaro é o Ciro do Brasil. Você querendo ou não.”

Evidentemente, tal pastor não tem como comprovar que Deus falou mesmo consigo e, se falou, que realmente estivesse dizendo de Bolsonaro e não de Ciro Gomes – que, ao contrário de Jair, tem Ciro no nome. Afinal, “Deus não é Deus de confusão, mas sim de paz” (1 Coríntios 14.33) – e Ele tinha uma Bíblia inteira e, em especial, todo o Novo Testamento onde apontar uma palavra menos dúbia: menções literais ao verdadeiro “Messias”, por exemplo, é que não faltam.

Nesta seara, não se pode esquecer que o próprio Cristo advertira que “surgirão falsos cristos e falsos profetas, e farão tão grandes sinais e prodígios que, se possível fora, enganariam até os escolhidos” (Mateus 24.24). E veja que o referido pastor não fez sinal algum nem operou maravilha nenhuma: só disse e pronto – você tem que crer e obedecer, querendo ou não…

Não obstante, se ainda assim o crente achar que a coisa merece alguma atenção, será então prudente conferir, a exemplo dos primitivos bereanos (Atos 17.11), de modo sério e acurado, se Bolsonaro possui as qualificações que a Bíblia estabelece para se discernir um condutor de homens efetivamente ungido pelo Senhor, aquele a quem o próprio Deus confiaria o Seu rebanho.

As igrejas concordam que as qualificações de um verdadeiro “homem de Deus” são aquelas descritas em 1 Timóteo 3.1-7, onde se lê, na versão Almeida Revista e Atualizada, adotada pelos assembleianos centenários:

“Fiel é esta palavra: Se alguém aspira ao episcopado, excelente obra deseja. É necessário, pois, que o bispo seja irrepreensível, marido de uma só mulher, temperante, sóbrio, ordeiro, hospitaleiro, apto para ensinar; não dado ao vinho, não espancador, mas moderado, inimigo de contendas, não ganancioso; que governe bem a sua própria casa, tendo seus filhos em sujeição, com todo o respeito (pois, se alguém não sabe governar a sua própria casa, como cuidará da igreja de Deus?); não neófito, para que não se ensoberbeça e venha a cair na condenação do Diabo. Também é necessário que tenha bom testemunho dos que estão de fora, para que não caia em opróbrio, e no laço do Diabo.”

Bolsonaro possui essas qualificações para ser de fato considerado um “escolhido de Deus”?

Pra começar, o presidente está no seu terceiro casamento, e não por viuvez. Quanto aos filhos, um acaba de sofrer quebra judicial de sigilo bancário e fiscal e está envolvido até o pescoço com as milícias criminosas do Rio, enquanto um outro, cujo destempero constrange até os mais próximos do presidente, cria mais problemas para o pai que a própria oposição.

Sobre ser “temperante, sóbrio e ordeiro”, não vejo nada disto quando o mais alto mandatário da Nação publica imagens pornográficas no Carnaval e faz piada com o tamanho do pênis dos orientais, sem falar do “vamos metralhar essa petralhada” com que incitava todo tido de baderna e violência na campanha.

“Hospitaleiro” … para dizer que taokei os estrangeiros virem fazer turismo sexual no Brasil?

“Apto a ensinar”: precisa dizer mais alguma coisa depois do 15 de Maio com os milhares de estudantes nas ruas, em centenas de cidades, protestando contra os cortes na Educação e sendo chamados pelo presidente de idiotas e imbecis? Precisaria ainda lembrar que o seu Ministério da Educação quer apagar da História ninguém menos que o mundialmente reconhecido Paulo Freire e tem como mentor um astrólogo que ensina que o Sol gira em torno da Terra?

“Não espancador (isto é, não violento), mas moderado, inimigo de contendas”? Acho que também aqui não precisava dizer nada, mas não custa lembrar que uma de suas ex-esposas registrou BO de ameaça de morte; que a “arminha de mão” foi o símbolo da sua campanha; que o seu grande ídolo é um famoso torturador, Brilhante Ustra; que, já presidente, homenageou o ex-ditador paraguaio Alfredo Stroessner, notório pedófilo e estuprador, como “um estadista, um homem de visão”; que sempre lamentou que Ditadura não tivesse matado mais gente, ainda que isso implicasse a morte de inocentes; e, claro, que não passa um dia sem jogar gasolina na fogueira da polarização da sociedade até o limite de uma conflagração.

“Não ganancioso”? Veja-se: Bolsonaro não abriu mão do “auxílio-mudança” mesmo morando já em Brasília; estourou os gastos do cartão corporativo da Presidência; está a um passo de ser investigado com o filho no esquema da “rachadinha”, com a apropriação de até 90% do salário dos assistentes parlamentares; possui patrimônio incompatível com a renda declarada à Receita Federal; em seus quase 30 anos de parlamentar, jamais abriu mão das vantagens financeiras do cargo – e, nesse tempo todo, e com todo esse custo para os cofres públicos, o que apresentou de projetos para o País?

“Não neófito, para que não se ensoberbeça e venha a cair na condenação do Diabo”. Ora, espalhar ele mesmo um vídeo em que é tratado como o ungido de Deus para governar o Brasil, o que senão suma soberba e vaidade, justamente os pecados preferidos de Satanás, também chamado de “pai da mentira” – esse elemento essencial de fake news como o kit gay e a mamadeira de piroca que tanto contribuíram para a eleição do Sr. Jair?

“Bom testemunho dos que estão de fora, para que não venha a cair em opróbrio”. Como bem resumiu o líder da famigerada Ku Klux Klan, “ele soa como nós”: vale dizer, um supremacista branco, racista no popular. Em Nova York, foi considerado persona non grata, por “destruidor do meio ambiente e homofóbico com orgulho”. Em Dallas, não foi sequer recebido pelo prefeito. E mesmo por aqui, como é visto fora do seu círculo de seguidores?

Não, Bolsonaro não reúne as qualificações morais de um “homem de Deus” e não tem o direito de arrogar a si mesmo tal honra (Hebreus 5.4), cuidando ele próprio de espalhar o tal vídeo para fomentar as manifestações a seu favor para o próximo domingo.

Não, não acredito de jeito nenhum no que esse pastor estrangeiro diz no vídeo e sinceramente duvido que um crente suficientemente instruído acredite. Muito pelo contrário: o que vejo é uma inominável blasfêmia, uma grotesca apelação à religiosidade dos mais simples.

Não, um homem verdadeiramente temente ao Criador não faria nada disso nem consentiria com nada disso, como tampouco um autêntico discípulo do Cristo “que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo” (Filipenses 2.6-8); um Cristo que sempre se colocou do lado dos pobres, dos órfãos e das viúvas e nunca daqueles que transformavam a Casa do Pai num mercado.

Aliás, em Dallas, Deus foi alegremente substituído pelos Estados Unidos na boca do próprio Bolsonaro.

O fato é que Jair Bolsonaro se compraz que o endeusem como O Mito e tudo faz para isto. Apesar de eleito para presidir um Estado Democrático de Direito (art. 1º da Constituição Federal), insufla o povo contra todas as instituições democráticas e clama para si os poderes absolutos de um deus – mas não passa disso mesmo: um mito, um ídolo de barro, uma mentira que cada dia mais se desvela inteira aos olhos de todos.

“Se fôsseis cegos, não teríeis pecado” (João 9.41). É, não há mais desculpa possível.

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