Apesar da ligação histórica com o movimento, agora a Igreja Católica perde espaço no maior assentamento do Rio de Janeiro.
A APOSENTADA ZULMIRA CUNHA, 76 anos, se cansou da Igreja Católica. Assim como outras mulheres que vivem no assentamento Zumbi dos Palmares, em Campos dos Goytacazes, no interior do Rio de Janeiro, ela não se identificava com os padres católicos, jovens e sem experiência conjugal. Acabou se convertendo à Assembleia de Deus. Na ocupação do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, o MST, onde vivem mais de 500 famílias desde o fim dos anos 1990, a expansão do neopentecostalismo é gigantesca. Nos cinco núcleos do assentamento, há 12 templos e comunidades religiosas, 11 deles evangélicos. A Assembleia de Deus tem sete, a Igreja Universal do Reino de Deus, dois. A Igreja Católica, que outrora era dominante entre os assentados, resiste em uma única capela.
Maior assentamento do estado do Rio de Janeiro e quarto maior do país, o Zumbi dos Palmares viu o número de evangélicos assentados crescer cerca de dez vezes na última década. Eram meros 7% em 1999 – dois anos após a ocupação da área. Na época, 86% dos assentados se diziam católicos e 3% adeptos de religiões de matriz africana. Hoje, são 72% evangélicos, e apenas 15% são católicos. O número de seguidores de religiões afro não se alterou, enquanto o de evangélicos explodiu.
Os dados são da pesquisa “Pentecostalização Assentada no Assentamento Zumbi dos Palmares”, realizada pelo teólogo Fábio Py e o geógrafo Marcos Pedlowski, ambos professores do programa de pós-graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense, a Uenf. O estudo, que levou três anos, acaba de ser publicado na revista acadêmica Perspectiva Teológica, da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte.
“É impressionante a quantidade de evangélicos nos assentamentos no Brasil e em movimentos como o MST e também o MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem Teto]. Chama a atenção a quantidade de lideranças evangélicas que estão sendo construídas. E com uma atuação bastante relevante das mulheres”, constata Py, doutor em teologia. “Não são mais católicos, como eram no começo, são pentecostais. É uma outra linguagem que está se construindo nessas periferias rurais, nos assentamentos.”.
No assentamento, resistem cerca de 20 pessoas, em média, nas celebrações da Igreja Católica. Um dos espaços de oração dos católicos acabou fechado nos últimos anos por falta de público e de padre. Zulmira, fiel católica no início da ocupação, lembra, “com todo o respeito”, que era atendida por um padre “menino de 20, 30 anos, que tinha acabado de sair do seminário, não entendendo nada do que a vida tem”. Segundo ela, o padre “não sabe o que é criar filhos, netos, muito menos o que é se deitar todos os dias com a mesma pessoa trabalhando na roça”, disse ela ao pesquisador, em entrevista mencionada no estudo.
A falta de sintonia dos padres com a comunidade era evidente, segundo relatos. Em dezembro de 2017, numa celebração de fim de ano, um padre de 27 anos, que não visitava o assentamento havia dois anos, chegou ao local trajando uma vestimenta usada por jesuítas, com gola clerical e outros adornos. Estava ainda cercado por 20 seminaristas, todos jovens, que faziam uma barreira entre ele e o povo. Questionado por um outro religioso sobre a roupa, que não seria adequada para o local, o padre disse não haver “nada mais santo do que a roupa jesuítica”.
As mulheres do assentamento preferem conversar com os pastores, em vez dos padres, por achar que eles – que podem se casar –, entendem melhor os seus problemas. “Ao contrário do padre, que não pode se casar, namorar, pelo menos o pastor sabe da vida de casado”, disse Zulmira. “A vida na roça e de casa é muito dura para chegar uma vez no mês e escutar o padre falar sobre um monte de gente, histórias, estudos, e não falar nada para mim, nada da vida aqui. Ainda por cima, passa um monte de reza nas confissões”, desabafou.
Assembleia de Deus é a igreja mais presente no assentamento: são sete templos.
Foto: Arquivo Pessoal/Fábio Py
A CPT perde espaço
O assentamento Zumbi dos Palmares tem uma área de 8.500 hectares – o equivalente a 8,5 mil Maracanãs – que pertencia a uma antiga e falida usina de cana-de-açúcar, a São João, abandonada desde a década de 1980. Campos de Goytacazes viveu o apogeu da lavoura canavieira no país no início do século 20. Décadas depois, o setor enfrentou uma grave crise. As usinas faliram por conta dos cortes dos subsídios do governo federal para a produção de cana e álcool, e os trabalhadores rurais da região ficaram desempregados.
Formado por nove fazendas, o latifúndio da usina São João foi ocupado por 559 famílias, inicialmente, em abril de 1997. Entre os assentados, havia trabalhadores da usina e moradores de favelas de Campos e cidades vizinhas, como Macaé e São Francisco de Itabapoana, recrutados por líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e Comissão Pastoral da Terra, a CPT, órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e vinculado à Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz.
Seis meses depois da ocupação, a área foi desapropriada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. No mesmo ano, houve a emissão de posse pelo Incra. No momento, estão lá 506 famílias. Onde só se plantava cana-de-açúcar, há agora o cultivo de frutas, legumes e hortaliças, além da produção de ovos, que geram renda para os assentados.Pastores ‘fizeram um trabalho mais intenso no dia a dia junto às pessoas’.
Embora sem o apoio oficial da diocese de Campos dos Goytacazes – tradicionalmente ligada à ala conservadora católica –, membros da CPT sempre tiveram fortes vínculos com o assentamento Zumbi dos Palmares. Participaram ativamente de sua organização, incentivaram encontros em missas mensais, ajudaram na formação política dos cortadores de cana e de outros trabalhadores rurais sem terra e implantaram no local projetos como o Movimento Fé e Cidadania, Movimento pela Educação no Campo, escolinhas de agroecologia e de estudos bíblicos (ligados à leitura popular da Bíblia), além de ações de erradicação de trabalho escravo e o acompanhamento de comunidades quilombolas.
O órgão católico também ajudou a manter um ambulatório médico no acampamento. Entre outras atividades, seus agentes ensinaram os moradores a manejar uma horta com plantas medicinais. “Os padres atuaram e ajudaram muito mais o movimento na luta pela terra do que os pastores. Estiveram mais presentes. Não lembro de pastores contribuindo nas ações. Apenas um no assentamento tem proximidade com o movimento”, diz Alcimaro Martins, agente da CPT, trabalhador rural e assentado no Zumbi dos Palmares.
Ex-seminarista, ele observa, no entanto, que os pastores “fizeram um trabalho mais intenso no dia a dia junto às pessoas, formando uma nova comunidade no assentamento”. Embora seja presidida por um bispo católico, a CPT tem caráter ecumênico, ou seja, é composta por pessoas de diferentes religiões. Mantém em seus quadros membros de outras igrejas protestantes, por exemplo.
A proximidade, no entanto, não foi suficiente para frear a expansão neopentecostal.
Igreja Católica ajudou a estruturar o espaço onde hoje são cultivados legumes, frutas e hortaliças. Hoje, sua presença minguou. Fotos: Arquivo Pessoal/Fábio Py
Uma nova comunidade
O MST disse não haver comprovação de que evangélicos são maioria em seus assentamentos pelo Brasil, porque não há um levantamento nacional sobre o tema. Nelson Freitas, membro da direção nacional do movimento e ex-integrante da Pastoral Operária Católica, reconheceu, no entanto, que os pentecostais são maioria hoje nos assentamentos no Rio de Janeiro. Disse acreditar que eles representam “uns 80%” dos assentados. Ressalta, porém, que é importante separar quem é da direção, as lideranças e a base do movimento. “A pessoa pode ser de uma religião evangélica, mas o seu comportamento político ser bem diferente daquele da igreja. O MST, nos assentamentos, mantém em prática a sua linha de ação e as suas diretrizes”, observa.
A mudança no perfil religioso dentro do assentamento do MST adianta a tendência do restante do país. De acordo com o último Censo do IBGE, em 2010, católicos somam 64,6% da população brasileira contra 22,2% dos evangélicos. Pesquisador da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, José Eustáquio Alves prevê que, em dois anos, os católicos estarão abaixo dos 50% pela primeira vez no país. Até 2040, a expectativa é que os evangélicos assumam a dianteira.
O teólogo Fábio Py, protestante de origem luterana e batista e que também presta assessoria à CPT, contou ter ouvido de um líder do MST em 2015 que 40% dos integrantes do movimento eram evangélicos. Em visitas depois a assentamentos, no entanto, constatou que o número era muito maior. Um exemplo: entre as 12 integrantes do coletivo de mulheres do Zumbi de Palmares, atualmente, 80% são evangélicas.
Evangélicos são mais dinâmicos: alugam, abrem a igreja e, se não der muito certo, fecham e partem para outra.
Foto: Arquivo Pessoal/Fábio Py
Práticas de gabinete
O dirigente dos sem terra Nelson Freitas explica que o público do MST mudou muito nos últimos anos. Com o avanço do agronegócio, diminuiu, segundo ele, o número do trabalhador rural nato, aquele que vivia só no campo. “No Rio, onde a gente busca o público para as ocupações? Estão nas chamadas periferias, nos arredores das cidades grandes e médias. E uma das poucas organizações da qual esse público participa é a igreja. E hoje, qual é a igreja? É a evangélica”, responde.
Para ele, o fato de a Igreja Católica ter diminuído a força das comunidades eclesiais de base, as CEBs, e contido o avanço da Teologia da Libertação no Brasil acabou afastando grande parte dos militantes católicos das ações sociais na periferia. Esse vácuo foi ocupado pelos evangélicos, avalia. “Outra questão é que começamos a nos preocupar com a construção de um partido político nosso. Na medida que elegíamos alguém para o Legislativo, era uma vitória, mas arrastávamos para os gabinetes de vereador e deputado aquela pessoa que estava na rua no dia a dia fazendo um trabalho. Hoje, muitas dessas pessoas têm uma política bem intencionada, mas não têm vínculo com o povo. Têm práticas de gabinete”, detecta.
Para o padre e teólogo Manoel Godoy, professor da Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte e do Centro Bíblico Teológico Pastoral do Conselho Episcopal Latino-Americano, a Igreja Católica precisa se adequar à celeridade da vida urbana. Ex-assessor da CNBB, Godoy vê lentidão do catolicismo para responder às necessidades da população. “A demora para construção de um templo católico é tão cultural que, quando algo tarda muito, é costume dizer: ‘parece obra da igreja’. Alugar um salão para o funcionamento de uma comunidade católica não está nos planos da instituição. Ela sempre vai atrás de compra de terreno e construção. Os evangélicos não têm essa dificuldade. Alugam, abrem a igreja e, se não der muito certo, fecham e partem para outra. Isso não é da cultura da instituição católica”, observa.
Outro obstáculo, segundo Godoy, é a demora na formação de um líder na Igreja Católica, além da centralização exacerbada da evangelização nas mãos do clero. “Os inúmeros leigos e leigas que participam das comunidades católicas são muito passivos e dependentes do clero. Não agem com autonomia, nada decidem. Tudo se concentra nas mãos do clero. Desta forma, fica muito difícil a multiplicação de centros comunitários”.Evangélicos ganharam mais força com os militares: era uma maneira de resistir à militância católica de esquerda.
Ele sugere medidas urgentes a serem tomadas pelas lideranças católicas, como a “celeridade na formação de lideranças, a flexibilização na lei do celibato, um melhor aproveitamento dos leigos e leigas que já participam da vida da igreja e a valorização maior sobretudo das mulheres”. Propõe ainda um resgate dos padres casados, “que são bem formados e capacitados para o exercício do ministério”. E acrescenta: “Ficar fixado num modelo único de padre é perder o bonde da história. Faz-se necessário criar novos modelos do exercício do ministério: casados, padres de equipes pastorais e ordenação de mulheres”.
O padre Godoy lembra que, desde a década de 1960, com o surgimento dos primeiros pastores televisivos, como Rex Humbard e Billy Graham, a pregação neopentecostal com base na teologia da prosperidade ganhou terreno no país, principalmente no rádio e televisão. “Com os militares, os evangélicos ganharam mais força, pois eles perceberam que seria uma maneira prática e barata de enfrentar a militância católica que se alinhava mais com as teses da esquerda, por meio das CEBs e da Teologia da Libertação”, afirma.
Godoy concorda que o avanço das igrejas pentecostais e neopentecostais “é um fenômeno nacional”, com crescimento vertiginoso nas periferias e favelas. “Um nordestino que chegava ao Rio de Janeiro subia o morro como Severino e descia como pastor, com a Bíblia debaixo do braço. Já se disse que era uma forma de sobreviver numa situação adversa e hostil. O terno e a Bíblia lhe conferiam uma certa autoridade”, afirma.
O ex-assessor da CNBB diz que, em regiões como a periferia de Belo Horizonte, onde atua, o crescimento evangélico é de tal magnitude que “o católico passou a ser identificado com características bem demarcadas: classe média e alta, escolarização superior, idade mais avançada e residentes de bairros mais nobres da capital”. Em Campos dos Goytacazes, a população católica hoje também está nas áreas nobres e centrais da cidade, enquanto os pentecostais predominam em assentamentos e nos bairros periféricos.
O papa Francisco terá muito trabalho para tentar reverter esse quadro.
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