Fotos: Instagram @bispomacedo/reprodução e Ricardo Stuckert/PR
Lula, satanás e os evangélicos
Por Ângela Carrato*
Muita gente deve ter ficado surpresa com a entrevista exclusiva, de 30 minutos, que a TV Record fez com o presidente Lula, na semana passada.
Anunciada ao longo de toda a quinta-feira (13/7) com pompa e circunstância, ela integrou o principal noticiário, o Jornal da Record, que vai ao ar às 19h55.
A surpresa diminui quando se observa o resultado da Pesquisa do Instituto IPEC, o antigo Ibope, divulgada esta semana.
Ela mostra que a confiança dos brasileiros no presidente da República subiu ao maior patamar desde 2012. Ao todo, o presidente Lula marca 50 pontos, numa escala de zero a 100. Já os menores índices de confiança estão exatamente entre os eleitores evangélicos, com 43 pontos.
O que indica que Lula está certo ao buscar se aproximar e dialogar com esse segmento.
Na entrevista à TV Record, Lula falou, com a desenvoltura que o caracteriza, sobre os assuntos do momento, como a possível reforma ministerial, e os avanços do governo nesses primeiros seis meses.
Ele não poupou críticas ao governo “anterior” que deixou 14 mil obras paradas (dentre elas 4 mil escolas e 1.600 creches) e bateu duro nos que difundiram mentiras e na própria mídia.
Lula deixou claro que é um absurdo a mídia que publicou as comprovadas denúncias de espionagem dos Estados Unidos contra o Brasil e outros países, não mover uma palha em defesa do jornalista australiano Julian Assange, que as divulgou.
Preso há cinco anos na Inglaterra, Assange corre risco de ser extraditado para os Estados Unidos, onde dificilmente escapará da prisão perpétua ou mesmo da pena de morte.
Todos esses assuntos são absolutamente novos para os telespectadores da Record.
Referindo-se à repórter que o entrevistava, Lula fez a seguinte comparação: é como se o seu chefe e a empresa em que trabalha deixassem você sozinha numa denúncia verdadeira.
Lula, aliás, emendou dizendo que seria bom que os Estados Unidos parassem de espionar outros países.
A presença de Lula na TV Record se justifica, quando se leva em conta a realidade atual e o passado recencer
Desde o golpe de 2016, que derrubou a prsidente Dilma Rousseff, ele e o PT passaram a ser combatidos pela emissora e banidos do noticiário de todo o grupo de mídia controlado pelo empresário Edir Macedo (Record TV, Record News, R7, Rádio Record e PlayPlus).
A situação se complicou mais ainda durante o governo do extremista de direita Jair Bolsonaro, que teve em Macedo um apoiador de primeira hora.
Ela chegou às raias do absurdo durante a campanha eleitoral do ano passado, quando inúmeras vezes, Lula foi comparado ao diabo e a Satanás nos veículos de Macedo e também em cultos da Igreja Universal do Reino de Deus.
Não faltaram cultos em que os pastores e bispos afirmaram que Lula era “comunista”, “contra a família” e “inimigo da religião” e que por isso os fieis não podiam votar nele.
Além de empresário, Macedo se intitula bispo, é o chefe da Igreja Universal e tem sob a sua influência um partido político, o Republicanos.
As divergências entre Macedo e o PT chegaram a um ponto tão ruim que, após as últimas eleições, nas quais não contava com a derrota de Bolsonaro, ele tentou dar a volta por cima.
Do nada, declarou que “perdoava” o PT pelo que considerava “erros”, no que foi prontamente rebatido pela presidente do partido, deputada Gleise Hoffmann: “não precisamos do seu perdão”.
Ao agir assim, o PT deixava claro sua indignação, especialmente sabendo o papel decisivo que Macedo jogou não só para garantir para Bolsonaro o voto do eleitorado evangélico mais retrógrado como, sobretudo, para criar junto a essas pessoas uma visão totalmente distorcida do PT e da realidade brasileira.
Muito do ódio que ainda persiste na sociedade brasileira vem daí.
Já Macedo, por sua vez, deve ter contabilizado os problemas e prejuízos que o aguardavam se mantivesse a mesma postura de quando a extrema-direita estava no poder.
É preciso recuar no tempo, no entanto, para se entender a relação entre Macedo, o PT e o próprio Lula.
Em 1989, Edir Macedo, cujo nome pouca gente conhecia, comprou para a Igreja Universal do Reino de Deus, a TV Record, cuja marca era propriedade de Sílvio Santos, o dono do SBT.
Fundada em 1953 pelo empresário paulista Paulo Machado de Carvalho, a emissora teve seus anos dourados na década de 1960.
Depois experimentou continuado declínio, até ir parar, no início dos anos 1980, nas mãos de Sílvio Santos.
Quando Edir Macedo comprou a emissora, tanto ele quanto Sílvio Santos teriam incorrido em crime se o Código Brasileiro de Telecomunicação (CBT) aprovado em 1962 e até hoje em vigor, fosse levado a sério por José Sarney, o primeiro governo civil após 21 anos de militares no poder.
Isso porque o CBT determina que as concessões de rádio e TV são públicas (pertencem ao Estado) e não podem ser vendidas.
Dito de outra forma, um empresário é dono do imóvel, da programação e detém os contratos de artistas e jornalistas que emprega, mas não do sinal da emissora.
O certo seria a concessão da TV Record voltar para o Estado, mas não foi o que aconteceu.
Em 1995, a Record foi tema de muita polêmica, por causa do chute de um dos seus pastores em uma santa da Igreja Católica. Esse episódio marcou o início de guerra aberta entre a então Organização Globo, de Roberto Marinho, e Edir Macedo.
Competidores nos negócios, Marinho e Macedo se tornavam também adversários no âmbito religioso: Marinho focado nos telespectadores católicos e Macedo nos evangélicos.
Na primeira metade dos anos 2000, a Record investiu em uma programação popular, contando com nomes como Ana Maria Braga e Carlos “Ratinho” Massa.
Ela apostou igualmente na cobertura de esportes e em jornalismo investigativo, além de incluir em sua programação várias séries estadunidenses.
Nas eleições presidenciais de 2002, a TV Globo, como sempre, fez de tudo para derrotar Lula, enquanto a TV Record manteve uma postura mais equidistante.
Data daí a aproximação entre Lula, o PT e Macedo.
A Record ganhou muito dinheiro nos governos petistas, que adotaram na publicidade critérios transparentes para a divisão destas verbas. Coisa que nunca havia acontecido, com a família Marinho sendo sempre a privilegiada.
Isso redundou em crescimento, com a Record se tornando a segunda rede de TV aberta do país, desbancando o SBT e passando a ameaçar a própria liderança da Globo.
Em 2010, a TV Record e a Rádio Record faturaram R$ 1,93 bilhão, a maior parte vinda de verba governamental.
Era para a relação entre Lula e Macedo ter se prolongado, se não fosse o conservadorismo e as ideias reacionárias do bispo, que passou a ver nos programas sociais do PT e no avanço do país em matéria de costumes um risco para o império que construía em sentido oposto: transformando fieis em pessoas avessas a todos os avanços civilizacionais.
Macedo estar na linha de frente do golpe contra Dilma e no apoio ao “cristão” Bolsonaro era previsível, especialmente depois que resolveu expandir seus negócios também para a política.
Primeiro a Igreja Universal apoiava candidatos, depois decidiu pela criação de um partido político próprio, cujo presidente é o deputado federal Marcos Pereira.
Com quase 500 mil filiados, o Republicanos, que se apresenta como uma agremiação de centro-direita, integra o fisiológico “Centrão” e é a 11ª maior força política do país.
Como as demais agremiações fisiológicas, também tem pressionado o governo Lula por espaço numa possível reforma ministerial.
Oficialmente, o Republicanos fala em apoio à “governabilidade”, mas, na prática, pensa apenas em cargos e vantagens.
Não por acaso, na entrevista à TV Record, um dos assuntos recorrentes perguntados pela repórter a Lula foi a tal reforma.
A pretensão de Macedo não é pouca. Quer nada menos do que o Ministério do Desenvolvimento Social (responsável pelo Programa Bolsa Família).
Para não deixar dúvidas, o presidente avisou que Saúde e Desenvolvimento Social são pastas “suas” e que não haverá reforma, mas mudanças pontuais. Mesmo essas ficarão para agosto.
Por outro lado, é inegável que Lula, visando a governabilidade, gostaria de ter o maior número possível de partidos integrando a sua base de apoio no Congresso Nacional. E o Republicanos é um deles.
Acredito que, no passado, Lula tenha chegado a imaginar que a TV Record pudesse se tornar uma emissora capaz de contribuir para desconcentrar a comunicação no Brasil.
Depois de tudo o que aconteceu, obviamente ele não deve pensar mais assim.
Seja como for, se Macedo sabe que precisa retomar o diálogo com o governo – diante do prejuízo de sua emissora no ano passado – Lula, por sua vez, quer continuar o trabalho de desarmar o ódio implantado pelos golpistas, por Bolsonaro e pelo próprio Macedo na sociedade brasileira.
Detalhe: não satisfeito em ser dono de emissora de TV, de igreja e de partido político, Macedo também se aventurou na área das finanças, comprando o antigo banco Renner.
Até onde se sabe, o banco de Edir Macedo não vai bem.
E para piorar a situação, a TV Record deu um grande prejuízo no ano passado.
Tanto que a emissora promoveu, no início desta semana, uma demissão em massa em todos os setores, não poupando nem apresentadores e repórteres conhecidos do público.
Em nota oficial, a direção da TV Record argumentou que todo o mercado de mídia passa por um período de reformulação e que estava fazendo apenas uma reorganização em suas frentes de trabalho.
Pelo visto, a principal “competência” da Igreja Universal é na arrecadação de dinheiro, especialmente dos mais pobres.
Pragmático, Lula conhece o terreno em que está pisando. Sabe, sobretudo, que precisa dialogar com uma parcela da população na qual foi inoculado ódio, sem qualquer razão, ao PT e a ele próprio.
A reaproximação com Macedo abre essa possibilidade, mesmo que seja uma possibilidade bastante limitada.
Como tem sido dito, essa reaproximação entre Macedo e Lula, além de todas as limitações e reservas possíveis, tem um problema de origem: é algo de cúpula.
Nada indica que os pastores e bispos alterem seus posicionamentos.
Da mesma forma, conquistar uma vaga no ministério de Lula não é garantia de que a agremiação votará com o governo. Haja vista o que tem acontecido com os integrantes de outro partido igualmente fisiológico, o União Brasil.
Razão pela qual o PT e o governo Lula precisam criar seus próprios canais de comunicação para informar, esclarecer e dialogar com a população brasileira.
Uma comunicação pública azeitada, eficiente e permanente é o caminho mais seguro para dialogar com os segmentos mais fáceis de serem capturados pelas mentiras, fake news e desinformação, como é o caso dos evangélicos.
A aproximação com Macedo é algo circunstancial.
Se Macedo visa verbas e poder político, Lula quer aprofundar o desmonte do golpismo e do ódio implantado no país.
Como os objetivos são diferentes, não dá para esperar muito desta nova situação, sob pena de o governo Lula repetir, no que se refere à mídia, os erros que lhe custaram caro no passado.
Não resta dúvida de que a atual composição do Congresso Nacional é a mais reacionária de toda a Nova República, com a maioria cabendo à direita e à extrema-direita. Motivo pelo qual Lula precisa, sim, visar a governabilidade.
Já em termos da comunicação, o grande desafio para o terceiro governo Lula permanece: estabelecer uma comunicação pública que, ao mesmo tempo, informe e contribua para politizar a sociedade.
Até agora isso não aconteceu, mas precisa começar a acontecer.
Não resta dúvida de que a vida da população brasileira melhorou muitos nos governos petistas e já voltou a melhorar nesses seis primeiros meses da terceira administração de Lula, mas isso de pouco adiantará se as pessoas continuarem acreditando que a melhoria se deve a Deus, aos pastores ou à religião.
Sempre que religião e política se misturam, o resultado é desastroso para a democracia.
Não foi diferente no Brasil.
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