Ilustração: Bruno Debize da Motta/Mídia NinjaOntem à noite, a Rede Globo dedicou 45 minutos de seu popular programa “Fantástico” à execução de Marielle Franco e ao assassinato de seu motorista, Anderson Gomes. Essa história vem dominando as manchetes no Brasil durante a última semana, e continua recebendo destaque em órgãos de imprensa do mundo todo.
Esse não foi um caso em que a cobertura da Globo elevou uma história à proeminência nacional. Muito pelo contrário: O que nós vimos foi a Globo tentando assumir o controle de uma história que explodiu online graças ao ativismo cidadão e à raiva inconformada causada pelo crime, sem que se precisasse de ajuda ou amplificação dos grandes veículos de imprensa. Essa é uma das poucas vezes em que a grande mídia brasileira foi uma espectadora, não o motor, de uma história.
A Globo pôde ver que a reação ao assassinato de Marielle vinha crescendo e se fortalecendo, indo em direções que deixam as elites brasileiras profundamente desconfortáveis. A cobertura que vimos ontem no Fantástico foi a tentativa da Globo de retomar o controle da narrativa.
Houve partes da reportagem do Fantástico que foram genuinamente informativas e jornalisticamente impecáveis, em especial a exposição detalhada e baseada em fatos de Sonia Bridi, onde ela mostrou, de forma assustadora, o profissionalismo e a competência demonstrados pelos criminosos, indicando de maneira convincente que seja lá quem tenha sido o mandante dessa execução sabia exatamente como o crime seria investigado pela polícia e como evitar detecção. Esse fato aterrorizante é uma peça fundamental do quebra-cabeça que é entender quem mandou matar Marielle.
Outras partes foram verdadeiramente comoventes e apresentadas de forma belíssima, em especial as entrevistas com Mônica Tereza, a esposa inconsolável de Marielle, a sua filha, seus pais e sua irmã. A inclusão proeminente da vida e morte de Anderson, bem como uma entrevista conduzida de forma muito delicada com sua viúva, são também elogiáveis.
O programa fez jus à trajetória notável e inspiradora da vida de Marielle: da pobreza, privação e maternidade solteira aos 19, ao curso de Mestrado, ativismo pelos direitos humanos, empoderamento político e votação massiva em sua candidatura à câmara municipal em 2016.
Esse não foi um momento insignificante na mídia brasileira: uma negra, lésbica, da Maré e do PSOL homenageada e glorificada numa das plataformas de mídia mais importantes da Globo, com milhões de pessoas assistindo. A esposa de Marielle foi incluída com destaque, e não escondida.
As perspectivas de vários políticos de esquerda e ativistas foram incluídas de maneira respeitosa. E eles condenaram e criticaram os políticos e juízes de direita que vem espalhando mentiras sobre a vida de Marielle. Tudo isso deve ser celebrado.
Mas Marielle era, antes de tudo, uma pessoa política: uma radical, no melhor e mais nobre sentido da palavra. Foi seu radicalismo que a tornou uma inspiração para tantos indivíduos sem voz, e uma ameaça a tantos grupos poderosos e corruptos. Seu ativismo e suas crenças políticas eram a essência de Marielle, uma parte fundamental de sua identidade, a peça central daquilo que a tornou uma figura com tanta força e poder.
O crime que terminou com sua vida foi também estritamente político. Não há maneira de compreender a vida e o assassinato de Marielle sem uma sincera e clara discussão de sua vida política. O que faz de seu caso tão jornalisticamente relevante é sua política, que por sua vez produziu os motivos políticos para que alguém a quisesse morta. Estes são os assuntos mais difíceis e complicados, além de os mais importantes, na cobertura da vida e da morte de Marielle.
E foram estes assuntos que o Fantástico evitou quase completamente – com exceção do momento em que os manipulou descaradamente para seus próprios interesses. No único trecho em que tratava de sua vida política, o fazia de maneira banal, com uma discussão condescendente da definição de “direitos humanos”, que o Fantástico basicamente reduziu a uma declaração paliativa e incontroversa de que todos os humanos nascem livres e devem ser tratados igualmente: proposições que virtualmente todo político brasileiro, da direita à esquerda, endossaria alegremente.
O Fantástico drenou a política de Marielle de sua vibração, seu radicalismo e sua força, e a converteu em um gibi simplista de clichés vazios que, na prática, não seriam questionados por ninguém.
Extinguir a sensibilidade política real de Marielle foi crucial para alcançar os objetivos da Rede Globo. As emoções derivadas do brutal assassinato de Marielle foram contundentes e poderosas. A questão é: para que fins estas emoções serão direcionadas? Que consequências elas forjarão?
Em última análise, o que o Fantástico realmente buscava se tornou cristalino no fim de sua cobertura. Tomaram o poder ainda crescente da história de Marielle, e tentaram limita-lo à uma simples e apolítica história de interesse ordinário, algo que nos faz chorar, sentir-nos tristes, empáticos, e talvez até irritados, mas não de uma maneira que faria o espectador adotar as causas de Marielle, ou devotar sua vida à agenda política que ela simbolizava.
A Rede Globo e seus companheiros da elite cultural enxergam um grave perigo nos efeitos do assassinato de Marielle. Eles podem ver que o caso está acordando pessoas tradicionalmente desapoderadas para a crueldade das desigualdades sociais e da intolerável criminalidade de suas forças policiais. O crime está estimulando moradores de favelas a se organizar e mobilizar.
É por isso que o Fantástico investiu pesado nas emoções humanas nesta reportagem – o sofrimento, o choro dos parentes, o assassinato de um pai de família trabalhador que sustentava seu bebê, a raiva que todos sentimos quando uma vida humana é violentamente extinta, a música fúnebre que nos deixa tristes – e ignoraram os aspectos políticos assustadores da vida de Marielle.
A Globo sabe que não pode deter ou limitar o poder das emoções, então ela tenta torná-lo apolítico e portanto inofensivo. Ela quer que toda essa tristeza e indignação caiam no buraco negro da irrelevância política, como uma de suas super-emotivas novelas, onde o assassinato de Marielle não tenha significado nenhum além de deixar as pessoas um pouco mais irritadas com a escalada da violência no Brasil.
Mas ainda pior que a supressão das convicções politicas de Marielle foi a tentativa do Fantástico de despolitizar sua morte – ao tentar explorar a imagem de Marielle para obter apoio à uma política que ela detestava: a “intervenção” militar de Michel Temer no Rio de Janeiro. Depois de 45 minutos construindo tristeza e raiva pelo assassinato, o Fantástico canalizou esses sentimentos de forma manipulativa e exploradora, subvertendo as causas políticas de Marielle.
Imediatamente em seguida aos segmentos homenageando Marielle veio um sobre o assassinato horrível de uma criança no complexo do Alemão, indo em seguida para um repórter em Brasília que informou que o presidente estava naquele momento em uma reunião com ministros em busca de mais recursos para a intervenção.
Foi nesse momento que ficou clara a agenda odiosa e ameaçadora do Fantástico. Não se tratou somente de eliminar o riso de que a morte de Marielle galvanizasse apoio para a causa política à que ela dedicou sua vida. Foi ainda pior: exploraram a morte de Marielle para fortalecer tudo que ela lutou contra.
É fácil entender porque isso foi tão controverso. King era um verdadeiro radical, detestado por muitos. Ele denunciava os males do capitalismo. Ele conclamava ao levante as populações mais oprimidas. Ele criticava o imperialismo americano. Em um discurso proferido um ano antes de morrer, denunciando a participação dos EUA na guerra do Vietnã, ele disse que o governo dos EUA era o “maior causador de violência hoje no mundo”, bem como o maior expoente da “arrogância assassina do ocidente que vem envenenando a atmosfera internacional há tanto tempo”.
Assim, se você for parte da elite política ou econômica dos EUA, e souber que não poderá apagar a memória de uma pessoa com opiniões tão perigosas e ameaçadoras, o que você faz? Você apaga todas as opiniões que forem ameaçadoras a você, permitindo que ele seja celebrado de maneira inofensiva e convertendo o que ele representa em algo simplista e clichê. No feriado em homenagem à King, seu desprezo ao capitalismo e suas denúncias contra imperialismo americano raramente são lembradas.
Hoje em dia, poucos americanos conhecem esse lado de King. Ao invés disso, ele é tratado como um símbolo de concepções vagas e elementares sobre igualdade racial que poucas pessoas rejeitariam. Ele foi reduzido ao menor denominador comum, e as partes verdadeiramente subversivas de sua visão de mundo foram deliberadamente apagadas da história.
Da mesma forma que o Fantástico tentou ontem a noite explorar a memoria da Marielle em apoio à uma política que ela passou o último mês de sua vida opondo veementemente – a intervenção militar no Rio – o governo dos EUA hoje tenta explorar a memória de King em apoio ao militarismo e imperialismo, os quais ele detestava com toda a força. O exército dos EUA utiliza a imagem de King em sua propaganda, como se o mero fato de que essa força matadora é racialmente integrada fosse deixar King orgulhoso e apoiasse a violência dos EUA.
É isso que muitos no Brasil querem fazer com a imagem de Marielle. Eles sabem que ela não será esquecida, e que a raiva e o nojo que seu brutal assassinato causou não vão simplesmente desaparecer. Assim, o projeto é de retirar dela todo o radicalismo e energia subversiva, transformando-a em um símbolo genérico e inofensivo que possa ser explorado em favor de interesses contrários aos que ela sempre defendeu, inclusive para gerar apoio à políticas que ela detestava.
O episódio do Fantástico de ontem foi o primeiro passo nesse projeto. É a responsabilidade de quem acredita na visão e no ativismo de Marielle impedir que esse revisionismo e exploração detestáveis prevaleçam.