O silêncio do Supremo Tribunal Federal sobre o habeas corpus impetrado pela defesa de Lula tornou-se um ponto de passagem da situação política — e já faz parte da lamentável história da construção de um regime de exceção sobre as cinzas da Constituição de 1988.
Pelo regulamento presidencialista do STF, a responsabilidade de pautar a decisão cabe a presidente da casa, a ministra Carmen Lúcia. Desde 9 de janeiro, quando Edson Facchin decidiu que o pedido deveria ir a votos no plenário do Supremo, a ministra mantém um silêncio preocupante sobre o destino do habeas corpus de Lula.
Mais do que atingir uma pessoa, por mais importante que ela seja, essa atitude alimenta prejuízos óbvios para o país. Gera grandes incertezas e inseguranças sobre o futuro, contribuindo, de uma forma ou de outra, para iniciativas improvisadas e aventureiras, como a intervenção federal no Rio de Janeiro.
Insuspeito de qualquer simpatia política por Lula, em artigo publicado hoje na Folha o advogado Ives Gandra Martins Filho deixa claro que os advogados de Lula têm razão em seu pleito, apoiado no artigo 5 inciso LVII, aquele que diz: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”
Militante de correntes ultraconservadoras do pensamento católico, Yves Gandra usa uma imagem clássica da obra A Revolução dos Bichos, de George Orwell, para denunciar o tratamento dispensado a Lula: “todos são iguais perante a lei mas alguns são mais iguais do que os outros”.
Não vamos ter medo de encarar a verdade. O Brasil e nossa fragilizada democracia pagam um alto preço pela postura do Supremo num debate com tamanha relevância, que envolve o mais popular presidente de nossa história, destinado a assumir, em qualquer circunstância, um papel de relevo na definição de nosso futuro imediato.
Sabemos que o caminho que pode levar a necessária reconstrução do pacto democrático rompido por um impeachment sem crime de responsabilidade terá uma configuração caso as garantias definidas no artigo 5, inciso LVII, sejam respeitadas de verdade. Mas este caminho sem dúvida será outro, áspero, tortuoso e mais difícil, caso a Constituição venha a ser atropelada mais uma vez. É simples assim.
Numa conjuntura na qual todos os elementos do cenário tem seu peso e importância, não consigo acreditar que a improvisada operação que produziu uma intervenção federal no Rio de Janeiro teria ocorrido, se, do outro lado da Praça dos Três Poderes, o país tivesse um STF atuante, apegado a sua autoridade de principal guardião da Constituição.
O decreto presidencial teria atribuído “natureza militar ao cargo de interventor”? Teria assegurado ao general Braga Netto o direito de atuar acima das “normas estaduais” a que devem estar submetidos todos os cidadãos do Rio de Janeiro, do governador (?) Pezão ao mais humilde morador no casebre mais miserável? O ministro Raul Jungmann teria falado, repetido, falado mais uma vez em “mandatos coletivos de busca e apreensão” como se fossem a coisa mais natural do mundo?
Ponto mais conhecido da passagem de Carmen Lúcia pelo STF, a jurisprudência “Cala a boca já morreu”, empregada para reforçar o mandamento constitucional que proíbe a censura, foi humilhada pela operação que tirou a faixa presidencial do peito do Vampirão da Escola de Samba Paraíso do Tuiti. Sabemos que isso não poderia ter acontecido, num país onde a ironia com os ricos e poderosos não só é uma divertida tradição criada nos teatros de revista das décadas de 30 e 40, mas um direito reconhecido pelo artigo 220 da Constituição, onde se diz: “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição”.
Instrumento destinado a resguardar as liberdades individuais em horas de perigo, os brasileiros tem uma experiência rica e também amarga com o habeas corpus. A história da ditadura militar de 64, por exemplo, pode ser dividida em dois capítulos. No primeiro, que começa no 31 de março e chega a dezembro de 1968, respeitava-se o habeas-corpus. No segundo, que durou até o final do regime, ele se encontrava “suspenso”. No primeiro caso, servia como a última proteção contra o pau de arara e a cadeira do dragão. No segundo, a barbárie estava instalada. Deu para entender o significado da decisão sobre Lula?
Os advogados de Lula entraram com o pedido de habeas corpus preventivo uma semana depois do julgamento no TRF-4, encerrado com a mensagem explícita de que a pena de 12 anos e um mês começaria a ser executada assim que o tribunal examinasse os limitados recursos oferecidos à defesa. Em 9 de fevereiro, o ministro Edson Facchin, recusou o pedido, encaminhando a decisão para o plenário. Sabemos que já foi em si uma decisão desfavorável para o réu.
Caso tivesse enviado o caso para a Segunda Turma, responsável pela Lava Jato, as chances matemáticas do HC ser atendido eram maiores, em função de um honroso retrospecto de respeito aos direitos e garantias fundamentais. Ao jogar para o plenário, Facchin escolheu um campo no qual as chances de uma derrota do pedido de Lula eram maiores.
Nem assim Carmen Lucia coloca o assunto em debate aonde se deve, o que abre uma hipótese grave do ponto de vista institucional. Em vez de “apequenar-se”, preocupação que a presidente do STF deixou clara num jantar com executivos e jornalistas no qual o tema Lula entrou em pauta, o tribunal corre o risco de desaparecer mais absoluta irrelevância e covardia.
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