Em 23 de abril de 2020, o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina para tratamento da Covid-19
O anúncio foi feito pelo próprio presidente do CFM, Mauro Ribeiro, após reunir-se com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o então ministro da Saúde, Nelson Teich.
Na ocasião, Ribeiro entregou um parecer do conselho do qual foi relator sobre a administração desses medicamentos em pessoas infectadas pelo novo coronavírus.
Em 20 de maio, o Ministério da Saúde, “considerando que recentemente o Conselho Federal de Medicina autorizou”, divulgou protocolo para “tratamento medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da covid-19” com cloroquina e hidroxicloroquina, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
Desde então, respaldado pelo CFM, o Ministério da Saúde ampliou o emprego dos dois medicamentos e ainda introduziu outros, igualmente sem comprovação da sua eficácia no tratamento ou na prevenção da Covid-19.
Nessa segunda-feira, 18-01-2021, o ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, afirmou a uma repórter:
“A senhora nunca me viu receitar, dizer, colocar para as pessoas tomarem este ou aquele remédio. Nunca. Não aceito a sua posição. Eu nunca indiquei medicamentos a ninguém, nunca autorizei o Ministério da Saúde a fazer protocolos indicando medicamentos”.
Mentira deslavada? Tergiversação? Ou o quê?
Eu entrevistei o professor Heleno Corrêa Filho, pesquisador colaborador da Universidade de Brasília (UnB) e diretor executivo do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), sobre a fala do ministro do ministro-geral e o posicionamento do CFM.
Desde 23 de abril, ele tem denunciado o “kit Covid-19”, que o Ministério da Saúde chama de “tratamento precoce”. Por exemplo, aqui, aqui e aqui)
Blog da Saúde – Como classifica a fala do ministro-general, considerando que ele já defendeu publicamente o “tratamento precoce” e o Ministério da Saúde orienta nesse sentido os médicos e a população?
Heleno Corrêa – Acho que ele deseja se excluir de ter que responder por crime de responsabilidade e charlatanismo, deixando isso para sua subordinada médica que assinou a carta prescrevendo regime de tratamento com drogas usadas para tratar outras doenças e sem atuação verificada contra a Covid-19.
O ministro-general comanda, sai pela tangente e deixa o ônus para seus subordinados internos.
Do ponto de vista cível-criminal pode até funcionar, uma vez que quem deve responder pelos documentos ministeriais são os técnicos, embora ele seja a última pessoa que assina e manda a ordem de “tratamento precoce” — usado por grande parte dos mortos de Manaus.
Em última instância, quem pratica esse crime de responsabilidade por charlatanismo e desídia – deixar deliberadamente de responder às necessidades conhecidas do cargo que ocupa – é o Presidente da República, que administra hidroxicloroquina às emas, e desagrada, até elas.
Blog da Saúde – Desde 23 de abril de 2020, o senhor denuncia a autorização do CFM para o uso da cloroquina/hidroxicloroquina na Covid-19. Já na França, desde dezembro, seis médicos defensores da hidroxicloroquina, entre os quais professor Didier Raoult, do Mediterranean University Hospital Institute (IHU), estão sendo processados pelo Conselho Nacional da Ordem dos Médicos de lá. São acusados de charlatanismo. Nessa segunda-feira, 18-01, Didier, o “pai” do uso da hidroxicloroquina na Covid-19, veio a público dizer que ela é ineficaz contra o novo coronavírus. Como explica essa diferença de comportamento, já que até hoje o CFM não voltou atrás na prescrição da cloroquina/hidroxicloroquina?
Heleno Corrêa –– O CFM agiu politicamente ao dar apoio a uma proposta de “tratamento precoce” de caráter fantasioso quando não havia publicações científicas que fundamentassem o “redirecionamento” para Covid-19 de drogas usadas para outras doenças.
Atualmente, portanto, nove meses depois, já existe grande quantidade de ensaios clínicos, negando efeitos benéficos dessas drogas redirecionadas.
Mesmo alguns poucos ensaios não aleatórios ou não randomizados que dão suporte ao uso “pré-sintomático”, apareceram seis meses após o apoio taxativo do CFM ao “kit Covid-19”, cujo criador morreu pela doença tomando todas.
Se fosse pela quantidade e qualidade das pesquisas, o CFM teria corrigido sua trajetória política de apoio ao negacionismo que produziu tanto sofrimento e morte, inclusive de médicos da linha de frente do tratamento à doença.
O CFM preferiu o papel de “quem cala, consente”.
Assim como agora, está calado diante do achaque oficial de uma médica, a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro, contra os médicos que atuam na linha de frente em Manaus.
A corporação médica é cúmplice disso tudo na medida em que seus órgãos científicos, representativos e reguladores não se manifestam na defesa dos médicos que exercem a medicina do diagnóstico e tratamento com crítica científica e se negam a prescrever mezinhas.
Os médicos franceses podem ter saído da letargia, mas também demoraram mais de seis meses.
Diga-se de passagem, o estudo do médico da Riviera Francesa se destaca por dois aspectos: ser de péssima qualidade e ter escondido e excluído dos cálculos seis pessoas que morreram durante o estudo feito com grupos de trinta pessoas [Dos Santos, 2021; Gautret et al., 2021; veja referências ao final].
Blog da Saúde – Até hoje o presidente do CFM não veio a público dizer que a cloroquina não funciona. Ele está fazendo vista grossa?
Heleno Corrêa –– Não é que ele faça vista grossa. O presidente do CFM tem posições políticas, ele não defende posições científicas.
Ele desenvolve papel ativo na promoção de tratamentos não apoiados por pesquisas de maior relevo e em maior número.
Ele não se baseia em acúmulo e confronto de conhecimento científico favorável e contrário para tirar conclusões de apoio ao “tratamento precoce”, que é recomendado pelo Presidente da República e seu ministro general.
Blog da Saúde – Na semana passada, tornou-se pública a carta (veja PS, ao final) da médica Mayra Pinheiro, do Ministério da Saúde, pressionando os médicos de Manaus a adotarem o chamado tratamento precoce. Mesmo sendo Ministério da Saúde, ela teria autoridade/poder pra isso?
Heleno Corrêa — Qualquer autoridade que pressione médicos a mudarem conduta exerce ação antiética, mesmo essa pessoa sendo uma médica. Portanto, a postura dela foi antiética.
Os médicos de Manaus estão recebendo pressão de pacientes e familiares para prescrever esses remédios, pois acreditam nas ordens governamentais que leram na imprensa e ouviram no rádio e TV.
Estão prescrevendo, mesmo sabendo que não têm base científica. É apenas para evitar confrontos com pacientes enganados pela propaganda oficial.
Blog da Saúde — O senhor acha possível até um enfrentamento físico entre médicos e população por causa do “tratamento precoce”?
Heleno Corrêa — Infelizmente, os profissionais de saúde estão colocados em situação de perigo para contentar a tática de disfarce dos gestores contra os crimes de responsabilidade, como falta de insumos básicos de tratamento, de pessoal e até do oxigênio para não morrer sem respirar pela Covid-19.
Blog da Saúde — Até agora o CFM e os CRMs estão calados sobre ”tratamento precoce”, recomendado pelo Ministério da Saúde. Seria afinidade ideológica com os “prescritores”?
Heleno Corrêa — A afinidade é ideológica e política entre os dirigentes dos conselhos de medicina e os médicos que odeiam colegas formados em países estrangeiros.
Diga-se de passagem, muitos gostariam de ter seus diplomas reconhecidos pelos governos da Inglaterra e dos EUA, em mecanismo igual ao do “Revalida” que buscam bloquear no Brasil. O que vale para eles não vale para os outros.
PS: A médica Mayra Pinheiro ficou conhecida em 2013 ao participar de um protesto contra a chegada de médicos cubanos no Ceará. Na ocasião, eles foram vaiados, xingados e mandados de volta para a “senzala”.
No final de 2018, após a eleição de Bolsonaro, ela foi escolhida pelo então futuro ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS), para ser secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (STGES). Justamente, o setor responsável pelo Programa Mais Médicos.
O cubano Juan Delgado sendo vaiado por médicos cearenses na Escola de Saúde Pública do Ceará, em 23 de agosto de 2013
Abaixo, a carta de Mayra Pinheiro aos médicos de Manaus para pressioná-los a usar o “tratamento precoce”. Para o professor Heleno Corrêa Filho, “achaque oficial, postura antiética”
Referências
DOS SANTOS, M. R. Referring to the study: Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open label non-randomized clinical trial. International Journal of Antimicrobial Agents, p. 106176, 2021/01/18 2021. ISSN 0924-8579. Disponível em: < http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0924857920303824 >. Acesso em: 2021/01/18.
GAUTRET, P. et al. Response to the use of hydroxychloroquine in combination with azithromycin for patients with COVID-19 is not supported by recent literature. International Journal of Antimicrobial Agents, p. 106241, 2021/01/18 2021. ISSN 0924-8579. Disponível em: < http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S092485792030460X >. Acesso em: 2021/01/18.
por Conceição Lemes
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