Brasil precisa de mais que uma vacina para evitar múltiplos colapsos como o de Manaus
Capital do Amazonas anunciou em alto e bom som para todo país: eu sou você amanhã. Sem ‘lockdown’, um grande número de municípios corre o risco de sofrer uma crise de abastecimento de insumos médicos e evoluir para uma falência funerária
Por Miguel Nicolelis, em EL PAÍS
Neste domingo, milhões de brasileiros acompanharam o passo a passo da maior decisão científica de que se tem notícia na história do Brasil, pelo menos no que tange ao potencial impacto na vida nacional num momento de crise.
Com se assistissem aos votos dados por jurados de um desfile das escolas de samba, a maioria dos nossos compatriotas foi repentinamente introduzida, sem nenhum preparo prévio, ao lingo técnico, às pompas, e a todo o processo deliberativo empregado há décadas pela Anvisa para aprovar um nova vacina ou medicamento.
Pouco entendendo o conteúdo dos votos, muitos sabiam apenas que pelo menos três dos cinco diretores da Anvisa precisariam aprovar as vacinas para que elas pudessem ser usadas em território nacional.
E assim, por horas a fio, o suspense foi mantido.
Mas no momento em que o terceiro voto decisivo foi dado para a aprovação de duas vacinas ―a chinesa Coronavac, desenvolvida pelo laboratório Sinovac, em colaboração com o Instituto Butantan de São Paulo, e a segunda criada pela Universidade Oxford e a farmacêutica AstraZeneca, licenciada no Brasil pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) ―a comemoração coletiva nas redes sociais e grupos de WhatsApp atingiu níveis reservados somente àquela observada para gols de final de campeonato.
Evidentemente, toda esta comemoração se justificava plenamente.
Afinal, depois de viverem quase um ano sob o trágico impacto de uma crise sanitária, que resultou em 8,5 milhões de casos confirmados e quase 210.000 mortos, sem nem ao menos terem o conforto de contar com um governo federal que assumisse a responsabilidade em coordenar uma resposta nacional à maior crise sanitária em um século, muitos brasileiros se emocionaram com a decisão.
E em meio a esta emoção, eles manifestaram em seus comentários o desejo latente de que este tenha sido um passo decisivo para remover o Brasil do caos em que ele começou a mergulhar no dia 26 de fevereiro de 2020, quando o primeiro caso de covid-19 foi oficialmente diagnosticado.
Infelizmente, como o colapso estarrecedor e sem precedentes ocorrido na cidade de Manaus ilustrou de forma explícita, o Brasil vai precisar de muito mais do que vacinas eficazes e seguras contra a covid-19 para escapar dos múltiplos colapsos, em múltiplas áreas, que se avizinham no nosso horizonte.
Por exemplo, apesar de finalmente termos o início de uma campanha de vacinação, que ainda vai sofrer com uma série de obstáculos, a maioria deles criado pela inépcia e inoperância do Ministério da Saúde, serão precisos meses para que o efeito das vacinas seja sentido em termos de uma queda significativa na transmissão do coronavírus a nível populacional.
Com todas as regiões do país sincronizadas, no que tange ao crescimento de números de casos e mortes e taxas de ocupação de leitos de UTI, o Brasil enfrenta uma segunda onda da pandemia que tem tudo para ser muito pior do que a primeira.
Eu digo isso porque, além da realização de eleições municipais que muito provavelmente foram responsáveis pela sincronização da segunda onda de covid-19, das festas de final de ano cujo efeito começa a ser sentido na forma de uma grande aceleração em casos/óbitos e taxas de ocupação de leitos hospitalares em todo país, e do surgimento de variantes do Sars-CoV-2 com maior poder de transmissão, a vasta maioria dos governantes brasileiros decidiu priorizar “a economia” de suas cidades e Estados em detrimento de medidas mais restritivas de isolamento social, como o chamado lockdown.
Mesmo sabendo que este recurso continua a ser uma das poucas armas bem sucedidas para se reduzir rapidamente a taxa de transmissão do coronavírus, como mostram inúmeros exemplos mundo afora, no Brasil o lockdown virou palavrão e foi condenado a ser carta fora do baralho do arsenal de combate à pandemia.
Como resultado desta visão totalmente equivocada, como a situação de Manaus demonstrou, o Brasil caminha para enfrentar múltiplos colapsos simultâneos.
No topo da lista, a explosão de novos casos de covid-19, que atingirá um pico nas próximas semanas, bem como a enorme demanda por cuidados hospitalares, tanto de pacientes com sequelas crônicas da infecção pelo coronavírus como de pacientes com outras patologias, poderá gerar um colapso do sistema de saúde pública, não em um punhado de cidades, mas em nível nacional.
Além da falta de leitos para internação de novos casos graves de covid-19, existe também a possibilidade concreta de que um grande número de municípios sofra um colapso de abastecimento de insumos médicos, fazendo com que a crise de fornecimento de oxigênio de Manaus se transforme numa imagem recorrente em todo o país.
Como consequência mais devastadora deste processo, várias cidades podem começar a evoluir para um colapso funerário, pela completa falta de condições de dispor dos corpos das vítimas da covid-19.
Neste sentido, na semana passada, Manaus anunciou em alto e bom som para todo Brasil: eu sou você amanhã.
A esta série de desastres na área da saúde temos ainda que somar um eventual colapso social e econômico, resultado do fim do auxilio emergencial, bem como do crescimento do desemprego no país.
Este último fator de desestabilização foi amplamente ilustrado pelo anúncio da montadora de automóveis Ford, que depois de 100 anos, anunciou o final de suas operações no Brasil, eliminando, num piscar de olhos, milhares de empregos que dificilmente serão recuperados a curto prazo.
A tudo isso o governo federal responde com a mesma paralisia e falta de qualquer iniciativa de assumir o controle das múltiplas crises que convergem a passos largos em todo o país.
Aliás, esta inércia política do governo federal confirma de forma categórica a conclusão que eu cheguei, logo no inicio desta crise, de que no Brasil “lutamos contra a pandemia e o pandemônio político”.
Por todas estas razões não podemos achar que a aprovação das vacinas pela Anvisa sinaliza o fim da pandemia.
Muito pelo contrário, a situação brasileira neste momento é gravíssima e tende a se agravar nas próximas semanas.
Para tanto, o Brasil precisa fazer como o Reino Unido fez: ouvir a ciência de verdade e abandonar decisões baseadas apenas em expedientes políticos, em detrimento das boas práticas de manejo de uma pandemia.
Como o Reino Unido, o Brasil precisa decretar um lockdown nacional imediatamente.
Precisa também criar, em caráter emergencial (o famoso, pra ontem), uma Comissão Nacional de Combate ao Coronavírus, que atue de forma independente do Ministério da Saúde, amparada pelo STF, Congresso Nacional e todos os governadores do país, para gerenciar todos os aspectos sanitários da crise da pandemia, incluindo a implementação de um Plano Nacional de Imunização e a supervisão da logística de distribuição de suprimentos médicos para todo o território nacional.
Ah, sim, eu quase ia me esquecendo.
Além de equacionar a pandemia, o Brasil precisa resolver urgentemente as causas do pandemônio político que continua a assolar o país. Para bom entendedor, meia batida de panela basta.
Miguel Nicolelis é um dos nomes com maior destaque na ciência brasileira nas últimas décadas devido ao trabalho no campo da neurologia, com pesquisas sobre a recuperação de movimentos em pacientes com deficiências motoras. Para a abertura da Copa de 2014, desenvolveu um exoesqueleto capaz de fazer um jovem paraplégico desferir o chute inicial do torneio. Incluiu recentemente à sua lista de atividades a participação no comitê científico criado pelos governadores do Nordeste para estudar a pandemia da covid-19. Twitter: @MiguelNicolelis
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