Desde 2013, o Brasil tem um plano para conter vazamento de petróleo no mar – o PNC (Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Água). Mas, 50 dias após o petróleo ser visto pela primeira vez numa praia do País, o governo Jair Bolsonaro nada fez. Pior: dois comitês que integravam o PNC foram extintos neste ano. O Ministério Público Federal (MPF) entrou com ação na quinta-feira (17) contra o governo por omissão diante do maior desastre ambiental no litoral brasileiro.
A ação envolve os MPFs dos nove estados do Nordeste e pede que a Justiça Federal obrigue a União a pôr o PNC em ação em 24 horas, com multa diária de R$ 1 milhão em caso de descumprimento. Segundo a Procuradoria, a União tem sido “omissa, inerte, ineficiente e ineficaz”, ao não tomar medidas adequadas para responder à emergência. Desde o fim de agosto – quando as primeiras manchas de óleo foram avistadas na Paraíba –, 187 locais de 77 municípios do Nordeste foram atingidos por manchas de óleo, segundo o Ibama. Além disso, 2.100 quilômetros nos nove estados da região foram afetados.
O PNC, criado em 2013, estabelece a estrutura organizacional de resposta do governo ao acidente, atribuindo responsabilidades a diversos órgãos, fixando uma metodologia de resposta, dando uma estrutura e organização financeiras e permitindo que os estados sejam chamados ao grupo para participar das decisões ou acompanhá-las. Em outras palavras, o plano organiza a resposta do País à crise.
Por ora, a gestão Bolsonaro se limitou a criar um Grupo de Acompanhamento e Avaliação (GAA), formado por Ibama, Agência Nacional de Petróleo (ANP) e Marinha, sem fazer menção ao Plano Nacional de Contingência. Esse grupo de acompanhamento é um dos muitos pontos previstos no PNC.
“Até agora não se falou oficialmente em acionamento do PNC. Não temos outro instrumento em lei para conter esse tipo de dano, que certamente é de significância nacional”, diz a professora de Direito Marítimo Ingrid Zanella, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Temos de nos munir de todas as pessoas capazes de conter esse tipo de dano, e o PNC é o instrumento eficiente para esse tipo de situação.”
Ingrid lembra que o Brasil é signatário de uma convenção internacional sobre Preparo, Resposta e Cooperação em caso de Poluição por Óleo, de 1990. “Se o Brasil for inerte, pode até ser responsabilizado internacionalmente. O Brasil é vítima agora. Mas, quando falamos em responsabilidade ambiental, não agir é igual a poluir.” E com um agravante: sem o PNC acionado, a estrutura de resposta do governo provoca falta de comunicação entre governo federal e estados.
O cientista Emilio Lebre La Rovere, professor do Coppe da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Laboratório Interdisciplinar de Meio Ambiente da universidade, concorda: “Uma vez que o óleo é detectado na praia, tem de acionar o PNC. Para isso que você tem um plano de contingência. Tem que esperar o que para finalmente alguém achar que foi importante?”.
Segundo La Rovere, “com a estrutura do PNC, o governo poderia ter feito uma intervenção anterior. Não iria resolver tudo, mas não impede que a gente faça essa crítica”. Na época da elaboração do Plano Nacional de Contingência no Brasil, o laboratório que La Rovere coordena foi contratado pelo Ministério do Meio Ambiente para fazer o levantamento sobre planos de contingência internacionais.
O oceanógrafo e diretor-geral da ONG Oceana, Ademilson Zamboni, também critica o governo Bolsonaro. “Como foi acontecendo aos poucos e com tempo para perceber que alguma coisa errada havia acontecido, era hora de prestar atenção e acionar o PNC. O mais importante é que existem atribuições claras ali dentro. Existe um desenho com autoridades e atribuições para serem cumpridas.”
Uma parte do plano fala que é o poluidor quem deve comunicar incidentes de poluição por óleo. Nesse caso, não houve qualquer alerta do poluidor, ainda desconhecido. Assim, é o Grupo de Acompanhamento e Avaliação quem deveria acionar o PNC. “Era o momento de olhar o que temos na mão. Não interessa se é uma coisa extraordinária ou não. Ninguém falou sobre isso, parece que foi algo que não existia”, diz Zamboni.
Vários estudos foram feitos para embasar o plano – documentos que mostram, por exemplo, a sensibilidade do litoral ao óleo e mapeamentos que mostram quais áreas devem ser protegidas prioritariamente em casos como esses. Para a oceanógrafa e professora da UFPE Monica Ferreira da Costa, “o litoral do Brasil é todo mapeado sobre sua sensibilidade à poluição por óleo – temos documentos de excelente qualidade. Um país que estava com informação na mão não podia deixar esse espalhamento acontecer. Em um mês, teríamos capacidade de proteger muitos ambientes.”
O vazamento
Em 30 de agosto, uma sexta-feira, turistas começaram a ligar para a Secretaria do Meio Ambiente de Conde, município a 30km de João Pessoa PB). “Tinha gente que saía do mar todo sujo. Até na praia de naturismo, as pessoas entravam nuas e saíam cobertas de óleo”, lembra Vesjudith Moreira, secretária do Meio Ambiente da cidade. “Foi um fim de semana de crueldade.”
Ela conta ter acionado a Capitania dos Portos, a Superintendência de Administração do Meio Ambiente da Paraíba (Sudema), o Ibama e a Polícia Federal, que coletou, no fim de semana, o óleo para a análise. Segundo Vesjudith, o Ibama não respondeu de imediato. “Demoraram a vir e dar importância para esse problema e tomar providência”, afirma. Desde aquele dia, foi encontrado petróleo em mais 186 praias – o número foi atualizado pelo Ibama nesta quinta-feira.
Em 5 de outubro, Bolsonaro publicou uma portaria pedindo investigação sobre o acidente. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, visitou a região apenas em 7 de outubro. O Ibama tem monitorado as praias atingidas e a limpeza. Funcionários da Petrobras foram chamados para ajudar. E a Marinha diz empregar 1.583 militares, cinco navios, uma aeronave, e embarcações e viaturas no trabalho de inspeção e patrulhas.
Mas é pouco diante da dimensão da tragédia ambiental. A falta de articulação entre governo federal e estados gerou ruídos. Para o secretário de Meio Ambiente de Pernambuco, José Bertotti, o governo federal “estava atuando por demanda na emergência. Essa ação precisa ser coordenada e dirigida pelo governo federal, não pode ser demanda dos estados. Isso está muito solto.” Na “ausência de ação federal”, diz Bertorri, foram os estados que convocaram uma reunião entre eles com a presença do Ibama, representando o governo federal.
Em Sergipe, graças a uma ação do Ministério Público, a União foi obrigada a implantar barreiras de proteção nos rios São Francisco, Japaratuba, Sergipe, Vaza-Barris e Real – mas o governo alega que as boias não são efetivas. O MPF ouviu técnicos sobre as possibilidades de contenção. “Em termos de proteção das áreas sensíveis e vulneráveis, não é nem que a União e o Ibama demoraram – é que não começaram. Eles se limitam a fazer sobrevoos na costa e ficam fazendo limpezas na praia a ritmo lento”, diz o procurador Ramiro Rockenback do Ministério Público Federal de Sergipe.
“Provavelmente, por não estar querendo dispor de recursos financeiros que são absolutamente necessários, a União entra num jogo de sorte e azar. Simplesmente não põe os planos em funcionamento e torce para que essas manchas se movimentem para outro lugar e a gente fique livre disso”, acrescenta Ramiro.
Comitês
O PNC também foi atingido por uma das irresponsáveis diretrizes do governo. Em abril, a extinção de dezenas de conselhos da administração federal deu fim a dois comitês que integravam o Plano Nacional de Contingência. Segundo fontes ouvidas pela Folha no Ministério do Meio Ambiente, no Ibama e em ONGs, a extinção dos conselhos pode ser parte da explicação para a demora e a desorganização do governo no combate às manchas de óleo.
Por decreto, Bolsonaro extinguiu conselhos, comissões, comitês, juntas e outras entidades criadas por decretos ou por medidas administrativas inferiores no primeiro semestre. Foram mantidos apenas aqueles criados na gestão atual e os criados por lei. Na estrutura do PNC havia dois comitês que foram extintos: o Executivo e o de Suporte. Ambos eram compostos por Ministério do Meio Ambiente, Ministério de Minas e Energia, Marinha, Ibama, Agência Nacional do Petróleo, entre outros.
Era do Comitê Executivo a atribuição de elaborar simulados e treinamento de pessoal e manter recursos para a resposta à emergência. Era dele também a responsabilidade de elaborar o manual de resposta a emergências, ainda não aprovado. Ao Comitê de Suporte cabia a indicação de recursos humanos e materiais para ações de resposta a incidentes e liberar a entrada de profissionais ou equipamentos importados no País.
O grupo de acompanhamento e avaliação criado pelo governo Bolsonaro foi um fiasco até o momento. Suas poucas ações compreenderam a participação ou realização de seminários sobre o tema. Em um deles, na semana passada, coube à Petrobras simular sozinha o combate a uma emergência. Não há informações sobre a atuação das outras estruturas previstas no plano, como o Comitê de Suporte.
Segundo o decreto, a liderança do Plano é da autoridade nacional, representada pelo Ministério do Meio Ambiente. Mas, até o momento, os trabalhos de limpeza e contenção do petróleo vêm sendo feitos pela Petrobras, embora a empresa não seja apontada como responsável pelo derramamento, sob coordenação do Ibama.
Em nota, o instituto diz que realiza a avaliação do impacto e direciona as ações de resposta, enquanto a estatal responde pela contratação de mão de obra e organização das frentes de trabalho. A Petrobras diz ter mobilizado cerca de 1.700 pessoas para a limpeza das áreas impactadas e mais de 50 empregados próprios para planejamento e execução da resposta. A estatal acionou os centros de defesa ambiental e estruturas de emergência em suas unidades operacionais.
O problema é agravado por deficiências nos quadros do MMA, segundo Anna Carolina Lobo, coordenadora do programa mata atlântica e marinho da WWF-Brasil. Pesa ainda a complexidade do vazamento enfrentado, considerando que ainda não se conhece sua origem ou tamanho real, o que dificulta possíveis medidas de contenção – e o fato de a mancha de óleo normalmente se mover abaixo da superfície do mar, o que dificulta a detecção por satélite.
Nesta sexta (18), a Justiça Federal do estado da Bahia determinou a criação, em até 48 horas, de uma força-tarefa, composta por um representante do MPF da Bahia, um da União, um da Marinha, um do Ibama, entre outros, para desenvolver uma plataforma de compartilhamento de informações para reduzir os danos ambientais e monitorar as áreas afetadas. Na decisão, a juíza federal Rosana Kaufmann afirma que é “possível perceber que diversas providências estão sendo adotadas isoladamente sem a necessária coordenação e compartilhamento de informações”. O primeiro relatório de atividades deve ser encaminhado em cinco dias, afirma a sentença.
Vale lembrar que as reações do próprio Bolsonaro sobre o assunto se centraram em suposições fantasiosas sobre suposta ação criminosa, sem provas, e críticas a ONGs. O presidente também sugeriu que as organizações estivessem ignorando o derramamento de óleo. O presidente voltou ao assunto na sexta (18). Desta vez, questionou se o vazamento poderia ter sido cometido intencionalmente para prejudicar o megaleilão da cessão onerosa, previsto para novembro e voltou a dizer que o óleo é venezuelano.
Na quarta-feira, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles – que fez dois sobrevoos no litoral – disse que a hipótese mais provável é que o material “tenha vazado de um navio, seja durante transporte de um navio para o outro, seja uma avaria ou despejamento”. A visita foi criticada pelo governador Rui Costa (PT). “Se reúne em sigilo, posa para foto na praia e vai embora. Nenhuma ligação deu. Mostra o descaso, desrespeito.”
Com informações da BBC e da Folha
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