O total devastado é equivalente a quase quatro vezes o tamanho da cidade de Amsterdã. Foto: Polícia Civil e Sema/MT
Maior desmatador do Pantanal forneceu aos principais frigoríficos do país, diz relatório
Estudo da organização Mighty Earth revela que unidades da JBS, Marfrig e Minerva foram abastecidas por Claudecy Oliveira Lemes, identificado como responsável pelo maior dano ambiental já registrado no Pantanal de Mato Grosso; Área desmatada é equivalente a quatro vezes o tamanho de Amsterdã
Imagens aéreas mostram centenas de árvores mortas, sem folhas e com manchas esbranquiçadas em seus galhos.
A cena, de 14 de abril, registra parte de uma área de 81,2 mil hectares desmatados ilegalmente com o uso de agrotóxicos.
O total devastado é equivalente a quase quatro vezes o tamanho da cidade de Amsterdã.
Segundo as autoridades brasileiras, a destruição foi causada pelo pecuarista Claudecy Oliveira Lemes e é a maior já registrada no Mato Grosso, estado com o maior rebanho bovino do Brasil.
Em abril, a Repórter Brasil já havia revelado que, ao longo de 2023, Lemes forneceu gado para unidades da JBS, umas das maiores produtoras de carne do mundo.
Agora, um novo relatório, publicado pela organização Mighty Earth nesta terça (17), revela que outros dois grandes frigoríficos – Marfrig e Minerva – também compraram animais do pecuarista nos últimos anos.
O relatório destaca ainda que unidades dos frigoríficos abastecidos por Lemes vendem carne para os principais grupos varejistas em operação no Brasil, incluindo Carrefour, Grupo Pão de Açúcar, Grupo Mateus e Sendas (proprietário do Assaí Atacadista).
O estudo foi produzido em parceria com a organização holandesa AidEnvironment e com pesquisa adicional da Repórter Brasil.
“Para proteger o Pantanal e outros biomas preciosos no Brasil, as grandes empresas de carne e seus clientes no varejo precisam ter controle total de suas cadeias de suprimento, tanto diretas quanto indiretas, até o nível das fazendas, e cortar todos os laços com pecuaristas que destroem a natureza por lucro”, afirma João Gonçalves, Diretor Sênior para o Brasil da Mighty Earth.
A devastação em 11 fazendas de Claudecy Lemes é investigada pelas autoridades policiais e ambientais desde 2022.
Para destruir a vegetação, foram usados 25 tipos de agrotóxicos, entre eles o 2,4-D. O herbicida é um dos compostos do “Agente Laranja”, conhecido por seu potencial destrutivo e usado pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã.
O objetivo do desmatamento era aniquilar a vegetação nativa para expandir a criação de gado na área.
“A morte deliberada de árvores e da vida selvagem no Pantanal pela pulverização aérea de um composto altamente tóxico como o ‘Agente Laranja’ é uma guerra contra a natureza, sendo travada pela indústria da carne”, avalia Gonçalves.
A área desmatada está localizada no município de Barão do Melgaço, no Pantanal matogrossense.
O bioma é a maior planície inundável de água doce do mundo. Parte dela é reconhecida como Patrimônio Mundial e Reserva da Biosfera pela Unesco e é lar de diversas espécies, como a onça-pintada.
Fornecimento para JBS
Lemes é proprietário da Fazenda Monique Vale, localizada em Pedra Preta (MT), a 232 km da área desmatada quimicamente. A propriedade enviou gado para ser abatido em duas unidades da JBS em 2023.
Dados das Guias de Trânsito Animal acessados pela Repórter Brasil mostram que a Fazenda Monique Vale regularmente recebia animais de outras propriedades do pecuarista para a engorda final antes do abate.
Entre os fornecedores de gado estão as fazendas Soberana, Santa Lúcia, Indiana e Reunidas São Jerônimo, 4 das 11 propriedades que sofreram o desmatamento químico.
A JBS afirmou que seis fazendas registradas no nome de Lemes foram bloqueadas pela empresa, sem esclarecer, no entanto, quais propriedades e a data em que o bloqueio ocorreu.
“Em todos os biomas, a Política de Compra Responsável de Matéria-Prima da Companhia impede a aquisição de animais em propriedades com desmatamento ilegal, terras indígenas, territórios quilombolas ou unidades de conservação ambiental”, disse o frigorífico em resposta à reportagem.
Leia o posicionamento na íntegra aqui.
O produtor Claudecy Lemes foi procurado por meio de seus advogados, mas não respondeu às perguntas da Repórter Brasil até o momento da publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações futuras.
Conexões com Marfrig e Minerva
Em 2020, a Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema-MT) embargou 1.370 hectares da Fazenda Soberana, propriedade de Lemes em Barão do Melgaço (MT).
O embargo ocorreu após a identificação de desmatamentos ilegais ocorridos entre 2015 e 2019.
O pecuarista foi multado em 1,3 milhão de dólares pela destruição e assinou um acordo com o Ministério Público estadual se comprometendo a não realizar mais desmatamentos na propriedade.
No entanto, uma investigação policial mostrou que o acordo foi violado e novos desmatamentos foram registrados com o uso de pesticidas.
O novo relatório da Mighty Earth, publicado nesta terça (17), mostrou que 3.447 hectares de vegetação nativa foram destruídos na Fazenda Soberana entre outubro e novembro de 2023, segundo análise de imagens de satélite e alertas de fogo do sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
O relatório aponta que, mesmo após o primeiro desmatamento ilegal, registrado em 2015, a Fazenda Soberana seguiu fornecendo gado para a unidade da Marfrig em Paranatinga (MT).
Os animais criados na propriedade também foram enviados para fazendas que forneceram para duas unidades da Minerva em Mato Grosso, nos municípios de Paranatinga e Várzea Grande.
A Marfrig disse à Repórter Brasil que o último fornecimento de animais da Fazenda Soberana ocorreu em janeiro de 2019.
“Além de não ter realizado outras compras, na época dos abates a propriedade atendia a todos os critérios socioambientais considerados no protocolo oficial”, respondeu o frigorífico.
A empresa explicou que desde março de 2019 a unidade responsável pela compra dos animais, localizada em Paranatinga (MT), não pertence mais à Marfrig.
A Minerva afirmou que a Fazenda Soberana não está registrada no banco de dados da empresa.
O frigorífico, no entanto, não esclareceu se pode garantir que animais criados nessa fazenda ou em outras propriedades recentemente desmatadas pelo pecuarista não cheguem às unidades da Minerva via Fazenda Monique Vale.
“Monitorar fornecedores indiretos é o maior desafio enfrentado por todo o setor”, disse em comunicado enviado à Repórter Brasil.
O último fornecimento de gado da Fazenda Monique Vale para unidades da Minerva ocorreu em setembro de 2020, explicou o frigorífico.
A empresa ressaltou que conduz análises geoespaciais antes da aquisição de gado, e que estudos realizados na época indicaram que a propriedade atendia aos critérios socioambientais da Minerva.
A ausência de desmatamento ilegal dentro da propriedade fornecedora é um dos requisitos dos critérios de compra de gado do frigorífico, e se aplica a todos os biomas.
Em 2022, o Ministério Público de Mato Grosso iniciou uma investigação sobre o desmatamento ilegal de 127 hectares entre 2008 e 2021 na Fazenda Monique Vale.
Segundo registros do Prodes, programa do Inpe que monitora o desmatamento no Brasil por imagens de satélite, o maior desmatamento na propriedade foi registrado em 2017, com a supressão de 117 hectares.
Em sua defesa legal, Lemes disse que a área desmatada em 2017 havia sido vendida para outra pessoa e não fazia mais parte da sua fazenda.
No entanto, o próprio pecuarista incluiu essa área no Cadastro Ambiental Rural (CAR) da propriedade em junho de 2022.
Em outubro de 2022, um mês antes da investigação sobre o desmatamento na Fazenda Monique Vale, Lemes alterou o registro novamente, subtraindo a área desmatada em 2017. O produtor não respondeu às perguntas da Repórter Brasil.
Após ser informada sobre esse fato pela reportagem, a Minerva afirmou que Lemes foi incluído na lista de bloqueio da companhia “para garantir nosso compromisso com zero desmatamento ilegal”.
Leia aqui o posicionamento completo dos frigoríficos.
Dos frigoríficos ao supermercados
De unidades dos frigoríficos JBS, Marfrig e Minerva, a carne é enviada para centenas de supermercados em todo o Brasil.
A pesquisa realizada pela Mighty Earth utilizou dados do aplicativo Do Pasto ao Prato para rastrear a origem de 1.641 produtos de carne vendidos em 120 lojas das redes de supermercados Carrefour, Grupo Pão de Açúcar, Grupo Mateus e Sendas, os principais grupos de varejo do Brasil em 2023, segundo a Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS).
Os dados coletados pelo aplicativo mostram de qual frigorífico a carne vendida nas lojas das quatro redes varejistas foi originada. No total, esses produtos vieram de 157 frigoríficos, segundo o relatório.
A Mighty Earth selecionou uma amostra de fornecedores diretos e indiretos de gado dos frigoríficos da JBS, Marfrig e Minerva, as maiores empresas de carne do país.
A análise visava identificar se os fornecedores das três empresas criaram ou compraram gado de propriedades desmatadas no Pantanal, Amazônia e Cerrado. Os dados, segundo o relatório, mostram que sim.
A análise da Mighty Earth encontrou o desmatamento de 38.248 hectares de vegetação nativa vinculada a 3.113 fornecedores diretos dos três frigoríficos entre 2021 e 2023.
Entre os 8.433 fornecedores indiretos analisados, o desmatamento detectado foi de 72.457 hectares.
“O setor pecuário continua sendo o principal motor do desmatamento no Brasil, e esses varejistas continuam a contribuir para as emissões de gases de efeito estufa que agravam os efeitos dos eventos climáticos extremos”, analisa Cristiane Mazzetti, porta-voz do Greenpeace Brasil.
“Estamos vendo essas consequências todos os dias”.
Segundo Mazetti, tanto os varejistas que vendem o produto final quanto os frigoríficos que compram gado criado em áreas desmatadas estão atrasados no cumprimento dos compromissos assumidos com a sociedade civil.
“Eles assumiram compromissos para monitorar toda a cadeia, mas não os cumpriram. Se essas empresas levam a sério suas políticas socioambientais e climáticas, devem monitorar e rastrear a cadeia pecuária, que são motores bem conhecidos do desmatamento”.
A Repórter Brasil procurou os grupos varejistas mencionados no relatório da Mighty Earth.
O Grupo Pão de Açúcar afirmou que tem uma Política de Compra de Carne Bovina Socioambiental desde 2016 e que o Cadastro Ambiental Rural da Fazenda Soberana está bloqueado no sistema de comercialização do varejista.
O Assaí Atacadista disse que, “há anos”, não tem relações comerciais com a propriedade de Claudecy Lemes.
Quando teve, afirmou o varejista, as entregas estavam em conformidade com a legislação e diretrizes assumidas no programa Boi na Linha, uma iniciativa do Instituto Imaflora em parceria com o Ministério Público Federal para promover boas práticas no setor, como a realização de auditorias e monitoramento.
Além do Assaí Atacadista, Grupo Pão de Açúcar e Carrefour Brasil também são signatários do Boi na Linha.
O Grupo Carrefour Brasil afirmou que não compra carne da Fazenda Soberana, sem mencionar o fornecimento indireto.
A empresa também mencionou realizar monitoramento por imagens de satélite e análise de conformidade socioambiental de 100% de seus fornecedores de carne bovina. Acesse aqui o posicionamento completo das redes varejistas.
O Grupo Mateus não respondeu às perguntas enviadas pela Repórter Brasil. O espaço permanece aberto para manifestações futuras.
Financiamento do Banco do Brasil
A cadeia de responsabilidades não se limita ao setor privado.
Uma investigação realizada pelo Greenpeace, com base em dados públicos do Banco Central do Brasil, mostrou que o pecuarista Lemes teve acesso a quatro empréstimos com juros subsidiados pelo governo para investimentos na Fazenda Soberana.
O crédito rural, que somou mais de R$ 10 milhões, foi concedido pelo Banco do Brasil, uma instituição bancária de capital misto.
O primeiro empréstimo foi concedido ao produtor em março de 2021, mais de um ano após a Fazenda Soberana ser incluída na lista de propriedades embargadas por desmatamento ilegal no Mato Grosso.
Somente em junho de 2023, uma resolução do Banco Central do Brasil começou a proibir a concessão de empréstimos a produtores com áreas embargadas por desmatamento em todo o país. Antes disso, apenas fazendas localizadas na Amazônia tinham essa restrição.
No entanto, a nova regulamentação menciona explicitamente o bloqueio de financiamento apenas para propriedades com irregularidades identificadas pelo Ibama, o órgão nacional de monitoramento ambiental.
Como resultado, abre-se a possibilidade de produtores que desmataram ilegalmente continuarem a ser elegíveis para financiamento de outras fazendas ou de suas fazendas com embargos, se essas tiverem sido registradas por autoridades estaduais – como no caso do produtor Claudecy Lemes.
“É uma brecha muito preocupante”, resume Cristiane Mazzetti, porta-voz do Greenpeace Brasil.
Bioma desprotegido
As fazendas desmatadas estão localizadas no Pantanal. Um dos reservatórios de água doce mais importantes do mundo, esse bioma ajuda na conservação do solo e na estabilidade climática.
Além do Brasil, os 250.000 km² do Pantanal cobrem partes da Bolívia e do Paraguai, ocupando uma área equivalente ao tamanho combinado da Bélgica, Suíça, Portugal e Holanda.
No ano passado, 49.600 hectares foram desmatados no Pantanal, representando um aumento de 59,2% em comparação com 2022.
Em janeiro de 2025, uma nova lei da União Europeia entrará em vigor, proibindo a importação de soja, gado, óleo de palma, café, madeira, borracha e cacau de áreas desmatadas após 31 de dezembro de 2020 – sem diferenciar se o desmatamento foi legal ou ilegal.
No entanto, a legislação não inclui áreas consideradas “não florestadas”, um conceito da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Como resultado, 76% do Pantanal e 73% do Cerrado estão excluídos do escopo da lei.
A pecuária brasileira tem seu próprio acordo comercial para prevenir o desmatamento.
O “TAC da Carne”, estabelecido em 2009, exige que os frigoríficos se comprometam a não comprar gado de áreas desmatadas ilegalmente após 2008.
No entanto, esse pacto só se aplica a fazendas e frigoríficos localizados na Amazônia.
As regulamentações ambientais brasileiras para o corte de vegetação nativa também são mais brandas.
Fazendas localizadas na Amazônia devem preservar 80% da propriedade. Esse percentual cai entre 60% e 40% se a propriedade estiver localizada no Pantanal.