As práticas denominadas arteterapia têm auxiliado milhares de brasilienses, que são acolhidos, ao mesmo tempo em que prosseguem com o tratamento e enxergam novas formas de seguir em frente
A música preencheu um vazio para Maria do Rosário, que se diverte ao lado de Filipe Wiladino e Joaquim Monteiro, membros da banda – (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)
Apaixonada por música, Rosário dos Santos, 60 anos, sempre gostou de soltar a voz. Quando escuta Clara Nunes, então, a empolgação para cantar é certeira, vem da alma. No Centro de Atenção Psicossocial 2 do Paranoá, aprendeu a tocar atabaque, zabumba, triângulo, caixa de guerra e violão. Há dez anos, integra a banda do Maluco Voador, coordenada pelo psicólogo e músico Filipe Braga. A música, segundo a aposentada, preencheu um vazio antigo, causado pela depressão e pela síndrome do pânico.
O psicólogo e musicoterapeuta Felipe Braga, 36, que atua na unidade, explica que a arte é parte importante do tratamento de alguns pacientes, ultrapassando a porta do consultório. “É um instrumento mediador das questões que são subjetivas e singulares da história dessas pessoas com o mundo. A terapia individual e a medicação são importantes, mas não saem do espaço do consultório. Por meio da arte, conseguimos comunicar coisas que, talvez pela fala ou só baseado numa estabilização de sintomas com medicação, não seria possível”, explicou.
No caso de Rosário, os diagnósticos bateram à porta cedo, aos 8 anos, época em que, conforme observou, essas doenças não existiam para a sociedade. “Minha mãe falou que não me criaria como uma inválida. E sempre associavam frescura e preguiça aos meus transtornos. Quando me estabilizava com um remédio, o médico o tirava e a crise surgia novamente”, recordou.
A mudança para Rosário surgiu quando, acolhida pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPs), em 2008, ingressou em oficinas que tinham a arte como uma válvula de escape para o sofrimento. Além do grupo de música, participou de peças de teatro e aprendeu artesanato. Os batuques do Maluco Voador conquistaram seu coração e ela se manteve firme na banda, mesmo após receber alta do centro. “Lá, me sinto amada e acolhida”, contou.
Formado em 2012, o grupo é composto por usuários, trabalhadores e familiares do CAPs, e parceiros da comunidade. A musicalidade se costura entre a batida do zabumba, a pisada dos pés e a celebração da vida. Criar pontes entre os pacientes e uma vida social é, para Felipe Braga, um dos objetivos do centro.
“Estamos rompendo a barreira de que as pessoas consideradas loucas só podem se apresentar em locais onde o público entenderá seu transtorno. Hoje, queremos ocupar todos os espaços sociais. E isso muda muito a forma como eles são vistos em suas próprias comunidades”, destacou o psicólogo.
Além de Rosário, Joaquim Monteiro, 53, mostra que o Maluco Voador sacode a vida daqueles que o frequentam. Com um pandeiro na mão, ele diz ter conseguido resolver muitos dos “problemas da mente” que o atormentavam. “Agora, quero desabrochar como cantor e músico”, revelou. Natural do Piauí, ele traz em suas letras as memórias da terra, além de tocar atabaque e agogô.
Cores que fortalecem
Camila Louise, 37, sempre orbitou o mundo das artes, com interesse especial em pintura, tanto que iniciou, em 2017, um curso de desenho realista. No ano seguinte, engravidou de sua primeira filha e, após o parto, começaram os sintomas da depressão, diagnosticada somente três meses depois.
“Foi um período na escuridão, sem saber o que eu estava enfrentando. Quando veio o diagnóstico, entendi a gravidade das circunstâncias”, lembrou. Afinal, a maternidade foi, para ela, uma avalanche de emoções. “A mãe sente muitas coisas quando nasce um filho. A felicidade é apenas um dos sentimentos”, disse.
Assim, começou o tratamento com medicação e sessões de terapia. Como não podia ficar sozinha com o bebê, sua irmã mais nova foi morar com ela para ajudar, assumindo parte da maternidade, para que conseguisse se recuperar. “Minha rede de apoio foi fundamental. Falo com muito orgulho disso, porque condiz com o que estamos acostumados a ver: mulheres cuidando de mulheres”, comentou a produtora cultural.
Com o auxílio da família, Camila foi encontrando força e energia para considerar novos ares e se dedicar a projetos paralelos. Decidiu aprender a aquarelar. Fez um curso on-line, identificou-se e desenvolveu uma técnica precisa relacionada ao que já sabia sobre desenho realista. “É muito cruel não se sentir à vontade para verbalizar a dor, daí surge a arte, como um espaço terapêutico complementar. A aquarela, por exemplo, trouxe cor para a monocromia da depressão que eu vivia”, revelou.
Hoje, Camila continua pintando, ora como passatempo, ora como complemento da renda, com foco em pintura à tinta a óleo. “No meu processo de autoconhecimento, percebi que não posso abrir mão da arte, porque ela ocupa um espaço de reorganização interna”. A artista explica, ainda, que é muito satisfatório observar o próprio progresso e as repercussões do que faz. “Isso traz propósito”, analisa. Desde então, ela participou de duas exposições, no Jardim Botânico de Brasília. Este ano, engravidou do terceiro filho.
Linha da felicidade
Assim como a arte fez a diferença na vida de Camila, também iluminou os dias de Doralice Alves, 77. A idosa viu no crochê um novo modo de seguir em frente e dispersar as dores geradas por uma depressão profunda que teve após a perda do marido em um acidente. “Foi como se eu tivesse recebido uma luz, fiz amizades, e hoje estou recuperada”, celebrou.
Para ela, esse foi um ponto de virada que jamais esquecerá. No Instituto Pipoquinha, onde passou a ter aulas de artesanato, aprendeu a fazer cachecóis, meias, toucas. Agora está fazendo até bolsas, itens que, para ela, não são somente peças de costura, mas símbolos de uma nova vida. “Renasci”, disse, emocionada. A instituição, criada e dirigida por Ivone Braga, 43, realiza ações sociais desde 2011, na região do Gama.
Na oficina Ponto a Ponto Social, o objetivo é fazer com que mulheres desempregadas, principal público-alvo, sintam-se acolhidas. Além das aulas de crochê, tear no prego e artesanato, das quais Doralice participa, são oferecidos cursos de capacitação profissional, ações de terapia ocupacional e rodas de conversa com psicólogos.
Na semana passada, também foi iniciado um projeto voltado à hortoterapia. As oficinas colocam os pacientes em contato com a terra, a fim de dissipar a sensação de tristeza e melhorar o bem-estar. Proporcionam, também, boa alimentação, aliada essencial da saúde mental. O público-alvo são adolescentes, a partir dos 13 anos, mulheres que passaram por contextos de violência, homens que têm familiares com transtornos mentais e idosos.
Dessa forma, para Braga, pode-se perceber que o tratamento vai além do consultório e das abordagens tradicionais, e infinitas possibilidades podem oferecer acolhimento às pessoas acometidas por transtornos mentais graves, as quais passam a não ser mais estigmatizadas por sua condição. “Essas práticas podem romper com o isolamento, propiciar outras formas de comunicação e descobrir potenciais que até então estavam dormentes”, concluiu Braga.
Com informações do Correio Braziliense
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