No início deste mês, as manchetes dos principais veículos jornalísticos brasileiros convergiram em relação à decisão do Exército de absolver o general Eduardo Pazuello por sua participação em um ato político, realizado no dia 23 de maio, ao lado do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Apesar da flagrante transgressão disciplinar de Pazuello, grande parte das coberturas apontou que o comandante da Força Terrestre, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, teria agido sob pressão do chefe do Executivo, o que contrariou parte dos militares – como o ex-ministro da Secretaria de Governo, o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz.
Para o antropólogo Piero Leirner, entretanto, essas divergências não passam de um jogo de cena, frequentemente visto em filmes policiais típicos da Sessão da Tarde, uma estratégia militar chamada de “guerra híbrida”, que tem a inversão e a dissimulação como características basilares.
“O bad cop [policial mal] é exatamente o próprio Bolsonaro. Eles esticam a corda do problema para apresentarem a própria solução. Por exemplo, as queimadas na Amazônia e a GLO [garantia da lei e da ordem] que usou militares para combatê-las. Santos Cruz [good cop ou policial bom] foi de caso pensado essa opção de ‘válvula de escape’, o ‘candidato de oposição’ que será o único que tem a força de conter o caos quando a corda arrebentar de fato”, explica.
Além disso, o autor do livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida – Militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica” aponta que Pazuello não foi o primeiro militar a descumprir o regimento interno. A partir de 2008, quando o então comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno, contestou publicamente a política indigenista do governo federal, com referência implícita à Raposa Serra do Sol, uma série de declarações de militares cruzaram a fronteira da política.
Neste momento, portanto, não existe divisão interna no governo entre alas militar e ideológica. Na verdade, de acordo com Leirner, este é o “rótulo que os militares precisam para criar sua camuflagem e imputar toda insanidade que toma conta desse país a seu testa de ferro: Bolsonaro”.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: No início dos anos de 1990, você foi o segundo antropólogo no mundo a realizar uma pesquisa etnográfica em unidades militares. Das categorias analíticas que você identificou, quais ainda se mantém?
Piero Leirner: Todas. Se falarmos estritamente em “categorias analíticas”, minha pesquisa tratou de hierarquia e disciplina. Podemos até dizer que elas estão fragilizadas, ou sendo sabotadas, mas enquanto categorias [ainda] estão lá. Não se sabota o que não existe. Agora, em termos daquilo que orbitava a pesquisa enquanto temas que eram elencados, há ainda algumas persistências notáveis.
Acho que a centralidade da Amazônia enquanto algo que faz convergir ideologia e doutrina, especialmente no Exército, é uma questão a ser considerada. Por que falo nessa convergência? Porque se é verdade que há mesmo uma variável, digamos, geopolítica na Amazônia, como parte vital do território brasileiro que incide sobre a possibilidade de projeção de poder pela América do Sul e Caribe.
Há também uma série de amarrações ideológicas que foram atreladas a isto: uma revisão da memória e história militares, produzindo o fenômeno de reinterpretação da fundação do Exército e da Nação a partir de Guararapes [batalhas ocorridas nos anos de 1648 e 1649 entre a coroa portuguesa e ocupantes holandeses da costa nordestina da então colônia brasileira], porque supostamente incide sobre uma ideia de “cobiça internacional” que se confundiria com a situação atual; uma adequação à noção de que o Exército seria uma espécie de “força de resistência” e que, por isso, teria que lidar com ameaças no escopo de uma “guerra assimétrica”.
Note-se, entretanto, que os supostos inimigos que nos ameaçam, encabeçados pela maior das potências – os EUA –, são aliados preferenciais dos militares. E veja também que este processo foi tão profundo que se estendeu para a Marinha, com a ideia de “Amazônia Azul”. Agora, na primeira oportunidade de defendê-la de fato, com os recursos do pré-sal e dos outros campos de petróleo no mar, o que se fez? Todo mundo sabe a resposta. Por isso mesmo trata-se, antes de tudo, de uma “ideologia” da Amazônia, pois tem um propósito político e não necessariamente militar ou de defesa.
Dentro disso, a outra persistência notável é a ideia de que os militares se enxergam enquanto uma espécie de ‘vanguarda política’ para gerenciar o Brasil, pois os ‘paisanos’ não têm competência para produzir um projeto nacional.
Daí se entende o porquê deles insistirem nas fórmulas que se acoplam às noções de que as ameaças são agentes internos que trabalham como forças terceirizadas desses interesses exógenos, como se coloca para a Amazônia. Ou seja, sintetizando tudo isso, trata-se de gestão do território e da população, combinadas numa linguagem militar.
No seu último livro, você problematiza a aplicação de uma nova modalidade de guerra no Brasil, derivada de uma estratégia das grandes potências internacionais. Na sua gênese, a “guerra híbrida” já aparece como uma espécie de meta-teoria, no sentido dos norte-americanos acusarem os russos de a praticarem e vice-versa? Quais são as principais características da “guerra híbrida”?
Sim, a meta-teoria faz parte disso. O problema da “guerra híbrida” é que ela nasce como um conceito que tenta se converter em dado da realidade. As pessoas que defendem esse conceito começaram com uma interpretação de uma “nova modalidade de guerra” e tentam transformar isso em uma “nova doutrina” que, por fim, converte-se na própria “nova forma de guerra” concretamente falando. Ou seja, instituíram uma espécie de profecia autorrealizável. Do que se trata isso, afinal?
Por volta de meados dos anos 2000, como resposta à ideia generalizada de que a “guerra ao terror” não tinha limites, juntou-se todo um arsenal de discursos e tecnologias de guerra numa espécie de síntese, que torna “híbridas” formas de guerra estatais e não-estatais, militares e civis, tecnológicas e primitivas, militares tradicionais e paisanas, legais e ilegais, indistintas quanto ao que é externo e interno.
Os primeiros teóricos disso, norte-americanos, identificaram este problema a partir do que acontecia no conflito israelense-palestino do começo dos anos 2000, e extensível ao “terrorismo”, ligando isso, inclusive, ao narcotráfico. O que eles pensaram? Precisamos formar um “escudo” que responda nas mesmas bases.
Pegaram alguns conceitos que já existiam – como o de “guerra irrestrita” chinês – e produziram uma doutrina de ataque que desse conta de ter os mesmos efeitos que esses que eles disseram que o inimigo causava.
Então produziram um arsenal de dispositivos que dá conta da produção não declarada de um ‘estado de guerra’, do qual não se tem certeza quem é o agente provocador.
A partir disso, começaram a usar [este arsenal de dispositivos que compõem a guerra híbrida] em “revoluções coloridas” no entorno eurasiano, o que forçou a Rússia a produzir uma doutrina que seria uma resposta a isso – a tal “doutrina Gerasimov”. O que aconteceu a partir daí? Os americanos começaram a dizer que a “guerra híbrida” era uma fabricação russa, e vice-versa.
O dispositivo conceitual se sofisticou e foi acoplando toda uma série de tecnologias – por exemplo, o direito e as redes sociais, a mídia e as big techs, e por aí vai. E o que esse monstrengo se tornou? Aquilo que ele profetizava ser desde o começo: um estado de hibridismo generalizado entre guerra e paz, nos quatro cantos.
No Brasil, os militares acusaram a esquerda, o Partido dos Trabalhadores (PT) e as ONGs de estarem implementando uma guerra híbrida em território nacional. Na sua opinião, existe realmente uma interpretação dentro do Exército de que estava em curso um golpe comunista no país a partir da estratégia da “guerra híbrida” ou esse discurso já era parte de uma inversão de sentido, característica típica dessa modalidade de conflito?
Ambos. O que se fez aqui foi algo que replicou o debate lá de fora. Os militares começaram a inventar esse conceito de uma “guerra híbrida produzida pelo PT, esquerdas, índios, quilombolas, ONGs e LGBTs”, de forma a também dar conta do acoplamento de vários depósitos ideológicos próprios e que eram familiares para a quase totalidade dos oficiais daqui.
Porque simplesmente importar o conceito não teria o efeito desejado, foi preciso dar um rosto ‘nacionalizado’ para isso.
Não é à toa que ressuscitaram isso da poeira da biblioteca da ESG [Escola Superior de Guerra], juntando com tudo aquilo que falei acima.
Quando a Dilma [Rousseff] implementou a Comissão [Nacional] da Verdade [CNV], o que era o protoplasma dessas ideias ganhou força, e conseguiu assim galvanizar na tropa inteira a ideia de que o PT estava, no fundo, com um plano para balcanizar o Brasil. Para fora eles assumem isso com a ideia de que o PT começou um projeto para “dividir o Brasil”, atualizando a ideia anterior de que os comunistas faziam “luta de classes”.
Então, mais uma vez, a história da “guerra híbrida” começa como um conceito e termina como uma “realidade”. Como ela não é detectável, tudo parece girar em torno de uma fantasia ou de teorias da conspiração. Mas ao olharmos para como o conceito foi elaborado por um pequeno grupo de militares e o que se fez a partir daí, vemos exatamente a ideia de montagem de um “escudo protetor” que, na verdade, tornou-se um dispositivo de ataque. Já ouvi uma vez um deles sugerir que há “ações preventivas”.
Em outros países, principalmente na região da Eurásia, a guerra híbrida foi aplicada por grupos nativos, com a coordenação e incentivo norte-americano, como aponta Andrew Korykbo em seu livro “Guerra Híbrida”. No Brasil, os militares trabalharam sozinhos ou contaram com o apoio dos Estados Unidos?
[Trabalharam com] apoio “indireto” e também operando para os EUA. Essa parafernália militar, afinal, foi em parte importada de lá – pelo menos o roteiro no qual se adaptou o argumento, digamos assim. É preciso ter consciência de que, desde o começo dos anos 2000, o intercâmbio de oficiais daqui com Washington vem crescendo e isto se tornou mais estável e estrutural com a Minustah [Missão de Paz das Nações Unidas para a estabilização do Haiti].
O que do ponto de vista de Lula [ex-presidente da República] e do Itamaraty era um projeto de soft power com projeção de poder para o Caribe, para Washington e para o grupo de generais – que estava antenado em um projeto de poder desde os anos 1990 – foi a chance de replicar de forma imperceptível uma aliança com o Estado profundo norte-americano.
É notável que de forma semelhante isso ocorreu também no campo do direito, que em termos da ‘guerra híbrida’ é a nova infantaria.
Então, por exemplo, as empresas de engenharia pesada e de defesa que foram no embalo dessa linha diplomática do Brasil caíram no lawfare do sistema judicial norte-americano, como foi o caso, por exemplo, da Embraer. Lembrando que o lawfare, enquanto conceito, foi pensado também primeiramente por militares norte-americanos, e incorporado na teoria da “guerra híbrida”, já por volta de 2006.
Então o que dá para dizer disso tudo? Que o que ocorre aqui é uma espécie de resultado de uma aliança estratégica com os EUA, onde ambas as partes supostamente ganham – e digo supostamente porque não vejo como se ganha com isso aqui, exceto do ponto de vista de quem é o agente operacional da guerra híbrida e de fato tem ganhos próprios.
Recentemente, grande parte dos meios de comunicação tradicionais apontou que a decisão do Exército de absolver o general Eduardo Pazuello, após ter violado regras sanitárias e militares ao participar de ato político, ocorreu por pressão do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Entretanto, você elenca em seu livro uma série de situações, desde 2008, nas quais o Exército rompe a fronteira com a política. Já havia um projeto dos militares de tomada de poder desde então? Bolsonaro exerce alguma pressão sobre os militares ou a influência é de mão única?
O que vi lá atrás, na minha primeira pesquisa com militares, que começou em 1992, era o discurso de que o Brasil não tem elites competentes para produzir um projeto nacional. E eles iam suprir essa carência. Como disse acima, eles se percebem como uma espécie de “vanguarda”, um “bloco histórico” pronto para produzir uma hegemonia. A diferença para outros períodos em que isso esteve claro é que agora eles fazem isso atuando como um “sistema operacional que roda em segundo plano”, isto é, sem que se perceba quem é de fato o administrador do sistema. Por que isto?
Na minha opinião, porque perceberam que o custo com uma ditadura clássica é alto, e porque consideraram que esta forma de realizar este projeto é duradoura e perpassa a conjuntura política.
A inspiração, obviamente, vem da importância que os militares têm na sociedade norte-americana e a máquina que eles geraram atuando em um nível infra-estatal. Mais uma vez, é por isso que a tal guerra híbrida ganhou densidade, lá, aqui e em vários outros lugares.
Assim, em 2008, eles começam novamente a ensaiar aqui pequenas rebeliões de generais – muito bem calculadas – em torno justamente da “questão amazônica”, em decorrência de demarcações de terras indígenas em Roraima.
Mas, como disse, o uso disso se deve mais por conta do potencial ideológico para a própria tropa e para satélites civis que orbitavam o exército em vários espectros. Mas o que realmente se passava nessas ações de “rebelião”? A forma política que poderia servir de ensaio para os anos seguintes.
Evidentemente, Bolsonaro ainda não estava nas projeções. Ele só aparece como uma forma concreta a partir de 2014, logo depois da reeleição [à presidência] de Dilma. Perceberam que ele tinha o potencial de representar a ideia de “militares na política” a partir de um testa-de-ferro. Primeiramente produziram sua candidatura “para dentro” da tropa – com o aval dos ministros da Defesa de Dilma e [Michel] Temer, é bom que isto fique claro – e depois trabalharam o set externo, com um conjunto de operações psicológicas disparadas em série.
No seu livro, você aponta os diversos “choques” entre a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) e os militares, principalmente a partir da instauração da Comissão Nacional da Verdade (CNV). A ex-presidenta errou em entrar em confronto direto com os militares? O que poderia ter sido feito de diferente?
Note, pelas respostas anteriores, que o “sistema” já estava sendo pensado desde antes. O que Dilma fez foi ativar o dispositivo de galvanização de toda tropa contra ela. Isto se deu por conta da CNV – ou melhor, por conta da ordem que ela deu para se retirar um manifesto anti-CNV do Clube Militar e de proibir uma palestra do general [Augusto] Heleno também lá –, o que praticamente jogou quem estava em estado inerte junto ao movimento que estava sendo gestado justamente por Heleno e outros.
Note também que em 2008 o “problema” da demarcação e a tal rebelião militar ganharam força justamente com ele, que deu o “exemplo” que iria arrastar outros oficiais e praças. Mas não foi somente a CNV, é preciso deixar isto bem claro.
Dilma foi reagindo de modo a sempre escalar um conflito com eles – em um processo que identifiquei como “cismogênese”, conceito que foi produzido por um antropólogo nos anos 1930, chamado Gregory Bateson, e que posteriormente foi justamente incorporado nos manuais que dão base às ações de informação e contrainformação da guerra híbrida, como por exemplo ao tirar o estatuto de Ministério do GSI [Gabinete de Segurança Institucional].
Do meu ponto de vista nada poderia ter sido feito de diferente – não com ela, pelo menos. A lista de equívocos é grande, ela não tinha a menor percepção do que é o tipo de poder militar e como lidar com ele. Veja, por exemplo, como passou batido por ela o fato de Bolsonaro ter feito campanha dentro da Aman [Academia Militar das Agulhas Negras] já em 2014. A “crise” da não-punição a Pazuello, perto disso, é uma bobagem.
Em um trecho do livro, você aponta que não há incompatibilidade dos militares com um processo em que o resto do Estado diminui, devido à atual orientação neoliberal que impera nas Forças Armadas. Além disso, a lógica é a de que quanto menos elementos o Estado se encarregar, mais ao centro os militares estarão. Dentro da caserna, não existe mais o elemento de soberania nacional? Isso explica a postura privatista do atual presidente da Petrobras, o general da reserva Joaquim Silva e Luna?
O problema todo é o que eles estão entendendo por soberania, se é que estão entendendo. Para se adequar a essa parafernália que eles próprios montaram, com uma completa reconfiguração do que seriam as novas “ameaças”, toda a ideia de soberania tem que mudar. O próprio sistema legal e as referências sobre monopólio estatal entram em novas premissas.
Reduzindo todo esse problema de forma meio esquemática, uma ideia de “segurança” imbricada a de “defesa” começa a produzir uma indistinção entre uma Força Armada como um “exército” – no sentido clássico, iluminista ou moderno – e uma “polícia” – no sentido pós-moderno, digamos assim. Desse modo, eles se deslocam para a “política”, fazendo esta se interligar à guerra. E a política do modo como a entendíamos, onde vai parar? Vai para o “éter”, digamos de maneira educada.
Sendo assim, junto com ela vão as definições do Estado: se ele antes operava como um mecanismo de compensação do trabalho em virtude da necessidade decrescente de “mais-valia absoluta” face ao aumento do capital fixo, produzindo aquilo que se chama de “bem-estar” – o que para alguns pode ser, digamos, um freio capitalista para a pressão do proletariado –, agora parece ter como tarefa unicamente compensar os capitalistas das próprias crises sistêmicas que o looping financeiro cria. Ou seja, um Estado para salvar os capitalistas do capitalismo.
O truque está em desproletarizar o trabalho e lançar mão de um sistema repressivo que dê conta do crescente “exército de qualquer coisa de reserva”, a massa de empreendedores descapitalizados e de trabalhadores desempregados.
Nesse salve-se quem puder, quem ganha? Os agentes da pirâmide financeira – exceto quando ela quebra, aí o Estado entra para compensar uma parte deles e o jogo recomeça – e os agentes híbridos do sistema de segurança e defesa, que garantem inclusive a drenagem do que resta do sistema produtivo e de riqueza extrativa para pagar a conta dessas crises. Assim, nesse esquema, não dá para esperar muita coisa de generais com seu nacionalismo pós-moderno.
Você aponta um estreitamento de laços entre judiciário e forças armadas nos últimos anos. Na sua opinião, a Lava Jato se enquadra nessa estratégia da “guerra híbrida”? Existiu influência dos militares na sua elaboração e execução?
Sim, ela se enquadra. É bom lembrar que o instituto que esteve na base da Lava Jato, a ENCCLA [Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Ativos], teve e tem participação de militares das três Forças. Isso é resultado da ideia norte-americana de “guerra ao terror”, pós-2001, que estabeleceu que um dos principais caminhos de financiamento do terrorismo passava pela corrupção e lavagem de ativos.
No caso da América do Sul havia e há, para os EUA, dois “centros de gravidade” disso: a tríplice fronteira, onde está Foz do Iguaçu do nosso lado, e os grupos revolucionários da Colômbia, mais recentemente apoiados pela Venezuela.
Para os militares brasileiros – e talvez também de outros países daqui do entorno – isso também se traduz na ideia de uma aliança entre o “Movimento Comunista Internacional”, o narcotráfico e o terrorismo de grupos como o Hezbollah.
Quando logo após o 11 de setembro os EUA resolveram montar uma ação no Paraguai, “coincidentemente” se começa a montar essas forças-tarefa de agentes públicos brasileiros que vão fazer cursos no Departamento de Estado, de Justiça e de Defesa de lá. E os militares entram com a parte “antiterrorista”, digamos assim, que afinal é onde os próprios EUA “querem chegar”.
Não é à toa que essa parafernália da guerra híbrida aparece por aqui junto com um programa proativo do Exército, que é o Sisfron [Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteira].
Nesse programa, o Exército estreita ainda mais sua “sinergia” – e uso esse termo seguindo os “nativos”– com agentes do Judiciário e das polícias estaduais e federais [Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal].
Considerando isso, não dá para dizer que a Lava Jato surge da cabeça dos militares, nem que são eles que dão as instruções de sua execução. Mas o “briefing” e a “fórmula” foram, sim, elaborados a partir de uma perspectiva que nasce das teorias militares norte-americanas, e que em certo sentido foram tropicalizadas por aqui.
A cobertura da imprensa geralmente separa o governo em duas alas, a ideológica e a técnica/militar. Entretanto, você aponta uma ligação estreita de Olavo de Carvalho, o guru da suposta ala ideológica, com os militares desde meados da década de 1990. As Forças Armadas, hoje, estão em sintonia com a ala ideológica?
Essa história de “alas” é uma dissimulação completa.
É exatamente o rótulo que os militares precisam para criar sua camuflagem e imputar toda insanidade que toma conta desse país a seu testa de ferro, que age como um incendiário. Olavo de Carvalho é para eles a atração conveniente que eleva um “grau acima” esse fenômeno que agora até tem nome, o tal “bolsonarismo”. Então é assim que se cria um “teórico” para esse “prático” que é Bolsonaro, e se faz surgir essa miragem chamada bolsonarismo.
É claro que isso é outro desses dados de realidade que funcionam como uma profecia autorrealizável, e agora o bolsonarismo existe também como “pessoa(s) física(s)”, e não só como entidade “mí(s)tica”. Deste modo, é possível dizer que os militares deram um looping nessa história, já que lá atrás era Olavo que acendia o pavio deles e abastecia o arsenal conceitual com coisas como o “gramscismo” ou a conspiração do Foro de São Paulo.
A partir daí, em 2014, os militares souberam orientar exatamente por quais caminhos Bolsonaro deveria começar a produzir ações histriônicas, de modo a produzir a convergência de outras elites e um lumpesinato urbano em torno dele. O resto foi no piloto automático, não há genialidade na fórmula. Note que Bolsonaro tem um repertório de irrupções que dá para contar nos dedos.
Uma das características que você aponta em relação aos militares, mesmo durante a sua etnografia na década de 1990, é a dualidade entre o good cop (policial bom) e o bad cop (policial mal). Atualmente, a figura do good cop parece ter sido assumida pelo general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz. Essa pode ser uma estratégia dos militares para surgir como bombeiros de um incêndio que eles mesmos criaram na próxima eleição de 2022?
Exatamente isso. O bad cop é exatamente o próprio Bolsonaro. Eles esticam a corda do problema para apresentarem a própria solução. Por exemplo, as queimadas na Amazônia e a GLO [garantia da lei e da ordem] que usou militares para combatê-las. Santos Cruz foi de caso pensado essa opção de “válvula de escape”, o “candidato de oposição” que será o único que tem a força de conter o caos quando a corda arrebentar de fato.
A partir daí, será preciso ver que tipo de opção se fará com ele – se vai compor com um outro candidato de perfil messiânico como Sergio Moro ou se com um mais “nacionalista à esquerda” como Ciro Gomes. Tudo depende do timing e das contingências que, inclusive, podem vir de fora. Então não dá para saber, obviamente, o que vai acontecer. Mas dá para saber que eles pensam na candidatura Santos Cruz.
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