Para o diretor de Investigação e Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal, a velocidade das informações e a fragilidade da legislação dificultam o combate às “fake news”
“O PL que está em tramitação hoje, na minha avaliação é insuficiente”, critica o delegado
Com a disseminação de conteúdo falso cada vez mais frequente nas redes sociais, o período eleitoral tornou-se favorável à manipulação da opinião pública. Os exemplos norte-americano e francês, nas eleições vencidas por Donald Trump em 2016 e Emmanuel Macron em 2017, mostraram o potencial das chamadas fake news.
Os casos alertaram o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para a necessidade de reunir estratégias de combate às notícias falsas, e a corte pediu o auxílio de diversas outras instituições brasileira nesta empreitada.
Diretor de Investigação e Combate ao Crime Organizado (Dicor) da Polícia Federal, Eugênio Ricas participará das investigações das fake news. Nesta entrevista a CartaCapital, o delegado defende a criação de uma legislação para combater as notícias falsas. “Hoje o Brasil não tem uma legislação moderna que permita a atuação dos órgãos, isso deixa não só os candidatos vulneráveis, mas qualquer cidadão.” Leia a íntegra
CartaCapital: A Polícia Federal vai participar da força-tarefa do TSE contra as “fake news”. O senhor pode detalhar como será feito esse trabalho?
Eugênio Ricas: Esse foi um trabalho convocado pelo ministro Luiz Fux, que assume o TSE em fevereiro. Ele está muito preocupado com a questão das fake news, porque a gente tem experiências não só no Brasil nas últimas eleições, mas também experiências internacionais que demonstram que as notícias falsas podem efetivamente interferir nas eleições.
Diante disso, o ministro convocou tanto a PF quanto o Ministério Público Federal para estabelecer um protocolo de atuação desses órgãos nas eleições com relação às fake news. A partir da próxima semana esse grupo já se reúne: policiais, servidores do TSE e servidores do MPF para traçar esse protocolo de atuação.
CC: Segundo relatos da imprensa, a PF pretende apresentar o esboço de um projeto de lei a respeito das “fake news”. Há algo que se possa adiantar a respeito desse projeto?
ER: O grupo de trabalho, além de estabelecer esse protocolo, deverá apresentar também uma proposta de alteração que modernize a nossa legislação, para dar condições aos órgãos de atuar no combate a esse tipo de conduta, que é a disseminação de fake news.
A missão principal desse grupo, no entanto, não é uma proposta legislativa, mas sim, o estabelecimento de um protocolo de atuação. Acredito ser uma grande oportunidade para o País realizar esse debate, para que o Congresso e a sociedade possam discutir. Hoje o Brasil não tem uma legislação moderna que permita a atuação dos órgãos, isso deixa não só os candidatos vulneráveis, mas qualquer cidadão.
CC: O que o senhor pensa sobre as proposições atuais que estão no Congresso?
ER: Eu vi uma, um Projeto de Lei que está no Congresso, porém é um que não ajuda em nada, não contribui, ele simplesmente tipifica a conduta de disseminar fake news, e a pena também é muito baixa, de dois meses a um ano. Não estabelece ferramentas, como por exemplo, o acesso a bancos de dados pela PF, nada disso. O PL que está em tramitação hoje, na minha avaliação, é insuficiente para dar condições para o País ter uma melhora nesse aspecto.
CC: Já existe um plano traçado de atuação da Polícia Federal?
ER: A PF só atua se motivada, ela não age em ofício em crimes eleitorais, então ou o MPF ou o Judiciário devem apresentar uma representação ou denúncia para a PF, a vítima vai ter de indicar qual é a notícia falsa e apresentar indícios para possibilitar uma investigação por parte da PF.
Hoje, já estamos em contato com a nossa coordenação central, com as 27 superintendências para a capacitação de policiais para atuarem nas eleições, inclusive visando ao combate às fake news.
CC: Um aspecto delicado do tema é que a repressão à produção de notícias pode, eventualmente, esbarrar na liberdade de expressão. Como conciliar isso?
ER: A liberdade de expressão é um bem muito caro à sociedade, e deve ser preservada a todo custo. Não é objetivo da Polícia Federal cercear qualquer tipo de liberdade de expressão, cercear o direito a fazer charge, ou a fazer humor.
A grande questão é até onde vai a liberdade de expressão, e quando passa a haver um crime, se uma pessoa se manifesta com relação a um candidato, por exemplo, e inventa notícias mentirosas, espalha boatos com o objetivo de prejudicar um candidato, um partido ou mesmo um cidadão comum, deixa de haver liberdade de expressão para haver conduta dolosa.
CC: Um desafio neste debate é a definição de fake news. Com qual definição a PF pretende trabalhar?
ER: Não existe uma definição oficial, isso nem cabe a PF definir, a legislação precisa definir, sabemos que fake news é o ato de divulgar notícias mentirosas. Hoje, a previsão legal para isso está no Código Eleitoral, que fala sobre divulgar informações falsas para prejudicar candidatos ou partidos.
Nós também temos o Código Penal, no qual se preveem a injúria, a calúnia e a difamação como atentados contra a honra das pessoas. No caso da Lei de Segurança Nacional (LSN), em última análise, nós teríamos ali o tipo penal que é disseminar boatos a fim de gerar pânico na sociedade. São legislações muito frágeis. Isso, além de impedir uma atuação eficaz dos órgãos, gera insegurança jurídica.
CC: No contexto norte-americano, a produção de fake news é atrelada à ação de governos estrangeiros, nomeadamente o da Rússia. Há no Brasil preocupação com respeito a influências externas nas eleições?
ER: No caso americano há suspeitas de que a Rússia interferiu com o objetivo de determinar a eleição, foi uma situação muito especial, eu acho que no Brasil é bem diferente, não vejo como uma preocupação hoje.
O que é uma preocupação efetiva é, sim, a utilização de provedores no exterior. Sabe-se que as pessoas dispostas a espalhar fake news pela internet se valem de provedores que estão sediados em outros países, isso é um fato e é um problema que nós vamos enfrentar.
CC: Como o senhor vê a participação da inteligência do Exército nas investigações sobre fake news?
ER: Na reunião em que participei só estavam presentes o TSE, a PF e o MPF, toda ajuda é bem vinda, mas precisamos ter clareza: as fake news, hoje, apesar da fragilidade da legislação, é crime, e é necessária uma atuação da polícia, é atribuição e é dever da polícia investigar e coibir os crimes. Se as Forças Armadas forem atuar teria de ser realmente de forma integrada para gerar inteligência, e não para apurar crimes, isso aí constitucionalmente é uma atribuição da PF.
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CC: Quais são os maiores desafios da PF para fiscalizar as fake news e seus respectivos autores?
ER: A dificuldade maior é a dimensão do País, a velocidade com que as informações circulam hoje em dia, a possibilidade de essa prática ser realizada por meio de provedores em outros países, e a fragilidade da legislação brasileira. É uma série de fatores que contribui para dificultar muito a apuração desse tipo de crime.
CC: Qual é o papel da imprensa nesse processo?
ER: A imprensa tem um papel fundamental. A própria imprensa acaba ficando com a bola dividida, pois muito das fake news acaba também sendo disseminado por parte da imprensa. Não a imprensa séria, obviamente, mas parte da imprensa acaba ou dolosa ou culposamente, mas acaba, disseminando também. O papel de vocês é fundamental.
por Beatriz Drague Ramos CC.