Paulo Freire – o poder das ideias
Para o educador brasileiro a educação não diz respeito apenas a visões de mundo estáticas, mas também, potencialmente, da transformação do mundo
Neste mês comemora-se o centésimo aniversário de nascimento do filósofo brasileiro Paulo Freire.
Mais amplamente conhecido por seu magistral Pedagogia do oprimido, Freire continua a ser uma estrela-guia para professores que trabalham em comunidades assoladas pela pobreza ao redor do globo e para todos aqueles que procuram um senso de justiça em um mundo injusto.
Todo educador de mentalidade crítica usou Freire em algum momento de seu ensino – seja para entender o mundo confuso dos oprimidos ou como a inspiração que os levou a ver a docência como uma maneira de derrubar as assimetrias de poder e de privilégios da sociedade.
Os programas de alfabetização de Freire para o empoderamento de camponeses são hoje usados em diversos países ao redor do globo e Pedagogia do oprimido é atualmente o terceiro trabalho mais citado nas ciências sociais e o primeiro na área da educação.
A celebridade de Freire fez dele tanto um alvo quanto um profeta em seu país natal, o Brasil.
Atualmente ele está sendo alvo de grupos de extrema-direita como o Movimento Brasil Livre e o Revoltados Online, e o presidente Jair Bolsonaro afirma que é ele quem está por trás de uma conspiração de doutrinamento marxista no sistema escolar brasileiro.
Na verdade, as tentativas de Bolsonaro de extinguir a memória de Freire lembram os ataques dos Republicanos nos Estados Unidos aos teóricos críticos da raça e aos educadores marxistas.
Bolsonaro e o movimento de extrema-direita Escola Sem Partido encorajaram estudantes a filmar professores durante as aulas, especialmente se suspeitassem que eles são defensores de ideias à esquerda ou, ainda pior, que propõem visões políticas ou sociais de inspiração freireana.
Um deputado federal do partido de Bolsonaro chegou a introduzir uma lei para retirar de Freire seu título cerimonial como “patrono da educação brasileira”.
Mesmo os conservadores dos Estados Unidos entraram na onda de ataques a Freire.
A edição recente da The Economist, “A ameaça da esquerda iliberal”, inclui um artigo dedicado à “cultura woke” que descreve equivocadamente a pedagogia de Freire como algo escrito no espírito da Revolução Cultural de Mao.
Isso pra não dizer que o artigo pesca suas evidências de uma única nota de rodapé de Pedagogia do oprimido, ou, o que é mais importante, que a obra de Freire tinha como premissa a solidariedade com as massas e tomava uma posição contrária ao tipo de violência que se tornou parte da Revolução Cultural.
Então por que Bolsonaro e a revista The Economist deveriam mirar em Freire?
O que é que eles acham tão ameaçador em suas ideias?
A vida de um educador revolucionário
Paulo Freire nasceu no Nordeste brasileiro, no estado do Recife, durante a Grande Depressão dos anos 1930.
Ele aprendeu a ler desenhando as letras do alfabeto com os galhos da mangueira em cuja sombra ele se sentava quando jovem.
A experiência da fome e da pobreza, que Freire teve desde muito pequeno, acabou fazendo com que ele ficasse quatro anos atrás de seus colegas da mesma idade na escola e a morte de seu pai em 1933 só fez as coisas piorarem.
Apesar disso, Freire foi, por fim, capaz de terminar seus estudos, se formar na universidade, fazer um doutorado na Universidade do Recife em 1959 e ser admitido no exame da ordem dos advogados (embora ele nunca tenha praticado o direito).
Ele começou sua carreira profissional aos vinte e seis anos de idade, trabalhando como professor de português na Escola Secundária Oswaldo Cruz.
Em 1946, ele foi nomeado diretor do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social do SESI, uma instituição de empregadores criada para oferecer aos trabalhadores do estado de Pernambuco e suas famílias serviços de saúde, habitação, educação e lazer.
Em 1961, ele se tornou diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade do Recife e esteve envolvido em um célebre projeto voltado para lidar com o analfabetismo de massa em 1962.
Esse projeto de alfabetização de Freire no Recife trouxe a ele reconhecimento internacional, particularmente por seu uso de tradições populares e pela importância que ele atribuía à construção coletiva de conhecimento.
Foi nele que Freire começou a criar o que ele chamava de “círculos culturais” – termo que ele preferia a “aulas de alfabetização”, já que alfabetização e analfabetismo assumiam que ler e escrever já eram parte integrante do mundo social dos trabalhadores.
Em um desses círculos culturais, trezentos colhedores de cana aprenderam a ler e a escrever em um tempo recorde de quarenta e cinco dias.
Estimulado, compreensivelmente, pelo sucesso de Freire, o governo brasileiro, liderado por João Goulart, fez planos de estabelecer dois mil círculos culturais freireanos, que iriam idealmente alcançar cinco milhões de aprendizes adultos e ensiná-los a ler em um período de dois anos.
Era para ser um grande feito em um país no qual apenas metade da população adulta era capaz de ler e escrever.
O que não aconteceu. Em vez disso, em 1964, um golpe militar de direita destituiu o governo democraticamente eleito de Goulart.
Freire, acusado de pregar o comunismo, foi interrogado e detido. Ele ficou preso pelo governo militar por setenta dias e foi para o autoexílio por medo de que sua posição proeminente na campanha de alfabetização nacional pudesse levar a seu assassinato.
De fato, os militares brasileiros consideravam Freire um “subversivo internacional” e “um traidor de Cristo e do povo brasileiro”, acusado de tentar fazer do Brasil um “país bolchevique”.
Os dezesseis anos de Freire no exílio foram tumultuados, mas produtivos: depois de uma breve estadia na Bolívia, ele passou cinco anos no Chile, onde se envolveu no Movimento Cristão-democrata pela Reforma Agrária e trabalhou como um consultor da UNESCO junto ao Instituto de Pesquisa e Treinamento para a Reforma Agrária.
Em 1969, ele foi pesquisador visitante no Centro de Estudos em Desenvolvimento e Mudança Social da Universidade de Harvard, mas mudou-se já no ano seguinte para Genebra na Suíça.
Lá ele atuou como consultor do Escritório de Educação do Conselho Mundial das Igrejas, onde desenvolveu programas de alfabetização para a Tanzânia e para a Guiné-Bissau orientados para a re-africanização desses países.
Ele também fez parte do desenvolvimento de programas de alfabetização em antigas colônias portuguesas em situação pós-revolucionária, como Guiné-Bissau e Moçambique, e auxiliou os governos de Peru e Nicarágua com suas próprias campanhas de alfabetização.
Freire finalmente retornou ao Brasil em 1980 para dar aulas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e na Universidade de Campinas.
De 1980 a 1986, ele foi supervisor do projeto de alfabetização de adultos do Partido dos Trabalhadores em São Paulo.
Freire trabalhou brevemente como secretário da educação de São Paulo, de 1989 a 1992, continuando sua agenda radical de reforma do processo de alfabetização para a população desta cidade.
Campanhas globais de alfabetização
Durante todo seu tempo no exílio, Freire estava escrevendo o que logo se tornariam livros clássicos: Pedagogia do oprimido, Ação cultural pela liberdade e Pedagogia em processo: cartas a Guiné-Bissau.
A obra de Freire seria absorvida mais tarde por educadores, filósofos e ativistas políticos na América do Norte e na Europa, mas foi cunhada fundamentalmente no Sul Global: em comunidades de base, barrios urbanos, subúrbios e favelas, onde influenciou – e foi influenciada por – incontáveis movimentos sociais, dos esforços anti-apartheid na África do Sul ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra no Brasil.
Freire sempre encorajou educadores a reinventar seu trabalho, em vez de simplesmente “transplantá-lo” através de fronteiras nacionais variadas, uma vez que ele via seu ensino como algo surgido em um contexto especificamente brasileiro.
Ele chegou a essa percepção bem cedo, tendo ele mesmo estudado com educadores de visão parecida, cujas experiências em campanhas de alfabetização de massa em outros países ele teve de adaptar para o Brasil.
Freire conheceu o arquiteto da Campanha Cubana de Alfabetização, Raúl Ferrer, em 1965 na Conferência Mundial Contra o Analfabetismo em Teerã. Ferrer e Freire se encontraram novamente em 1979 para discutir o papel da alfabetização na Revolução Sandinista na Nicarágua.
Freire considerava a campanha cubana de alfabetização, responsável por alfabetizar mais de novecentas mil pessoas em menos de um ano, uma das maiores conquistas educacionais do século XX.
Ele disse coisas similares sobre a campanha sandinista de alfabetização na Nicarágua.
Freire reconhecia abertamente o líder da independência cubana José Martí como um dos pensadores revolucionários mais importantes do século XX e era um admirador firme de Fidel Castro e Ernesto Che Guevara.
O presidente Hugo Chavez, por sua vez, era um grande admirador de Freire e expressou a mim o desejo de trazer o trabalho de Freire para a Revolução Bolivariana – missão na qual eu pude desempenhar um papel breve e modesto.
Na semana seguinte a sua morte inesperada, Freire iria participar de uma cerimônia em Cuba, na qual Fidel Castro daria a ele um prêmio importante por sua contribuição à educação. De acordo com seus amigos, este seria o prêmio mais importante de vida de Freire.
Um marxista resoluto
Para Freire, desafiar o capitalismo era uma necessidade urgente e premente.
Ele nem sempre oferecia descrições exatas de qual seria sua visão de uma alternativa socialista, mas a adesão de Freire à epistemologia materialista era firme e profunda e ele manteve durante toda sua vida uma fé modernista na agência humana e na sociabilidade inabalável da linguagem.
Freire era decididamente marxista, mas sua linguagem nunca cobria a paisagem política com o jargão marxista-leninista usual.
Ele não pregava, por exemplo, que todo valor tem origem na esfera da produção, nem acreditava que o papel principal das escolas era servir aos agentes do capital e aos seus senhores.
Ele via, no entanto, a educação capitalista como algo que reproduzia as relações sociais de uma ordem social de dominação e exploração; e via também que a típica panaceia de “melhorar de vida” por meio da educação era na maior parte das vezes um véu ideológico que canalizava a solidariedade humana para falsas narrativas de esforço, recompensa e progresso individuais.
Freire era um filósofo formidável, mas em vez de meditações isoladas, ele usava a filosofia para avançar sua pedagogia emancipatória.
A visão de Freire da libertação da educação de suas formas autoritárias foi extraída da dialética hegeliana entre senhor e escravo; sua descrição da auto-transformação dos oprimidos foi inspirada no existencialismo de Martin Buber e de Jean-Paul Sartre; e sua concepção da historicidade das relações sociais foi influenciada pelo materialismo histórico de Karl Marx.
A ênfase de Freire no amor como uma pré-condição necessária para a educação autêntica foi parte de sua afinidade continuada com a teologia radical cristã da libertação.
Dom Hélder Câmara, o arcebispo católico de Olinda e Recife – que teve uma influência profunda em Freire – capturou o espírito da teologia da libertação em poucas frases curtas: “Quando dou comida aos pobres, eles me chamam de santo. Quando pergunto por que os pobres não têm comida, eles me chamam de comunista”.
Freire, ele mesmo um católico, não se preocupava tanto com a “religiosidade”, mas sim com a perspectiva de uma igreja emancipada – em uma região na qual boa parte do sistema educacional ainda estava sob o controle de autoridades religiosas.
Freire sonhava, ao contrário, com o que ele chamava de “igreja profética”: uma Igreja que se colocaria de maneira solidária ao lado das vítimas da sociedade capitalista.
Foi esta visão que levou Gustavo Gutierrez, quem codificou o princípio central da Teologia da Libertação como a “opção pelos pobres”, a convidar Freire para elaborar alguns dos elementos-chave desta doutrina radical cristã emergente.
Pedagogia do oprimido
Apesar de todas as conexões de Freire com a teologia da libertação, a descrição que mais instantaneamente capta sua vocação é a de “filósofo da práxis”.
A filosofia de Freire foi delineada, em poucas palavras, para ajudar seres humanos a se tornarem ativamente mais humanos – e esse projeto político e ético significava entender e também transformar o mundo. Essa era uma tarefa melhor capturada no dito popularizado de Freire: “a leitura da palavra e do mundo”.
A obsessão de Freire com o poder da palavra falada e escrita era sem paralelos – com o que aquele poder revela sobre o mundo tal como ele aparece diante de nós e sobre o que esse mundo poderia vir a ser.
Para ele, a esfera da alfabetização tornaria os seres humanos capazes de viver no modo subjuntivo – em um estado de “como se” que abre os caminhos para novos mundos.
Outra das categorias de Freire, o “inédito viável”, era uma elaborada filosofia da esperança que conclamava os grupos despossuídos a irem além de suas “situações-limite” – isto é, dos constrangimentos em sua humanidade postos pelo subdesenvolvimento – e transformarem tais condições adversas em um espaço de experimentação criativa.
Para Freire, era isso que estava em jogo na alfabetização: uma prática que poderia ser usada tanto para despossuir e excluir quanto para emancipar.
Ancorando a pedagogia de Freire havia uma complexa mas sólida visão materialista do mundo e de sua transformação.
Para Freire, qualquer ação tomada no mundo necessariamente o transforma. Mais do que isso, transformar o mundo afeta a maneira pela qual os indivíduos agirão nele depois. Entrar nesse processo é o modo como os indivíduos aprendem a se tornar sujeitos que agem sobre um mundo dinâmico e aberto, em vez de se manterem objetos passivos sobre os quais se age, em um sistema fechado e imutável. Esta era a visão de como os oprimidos poderiam superar a subjugação, segundo Freire.
“Diálogo” e “dialética” são palavras-chave no vocabulário freireano.
O “encontro” dialógico, como Freire o chamava, é o verdadeiro oposto da doutrinação (uma ironia que passa despercebida pelos críticos brasileiros e americanos preocupados com a teoria crítica da raça ou com a “doutrinação” freireana).
Freire resistiu ao que ele chamava de “educação bancária” – a que enfia um monte de conhecimento qualquer na cabeça dos pobres estudantes – porque ela era socialmente opressora e porque presumia um mundo tão fixo que as mesmas lições poderiam ser repetidas ad nauseam. Como Freire diz em Pedagogia do oprimido:
Se ele [o diálogo] é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes. (…) Porque é encontro de homens que pronunciam o mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns a outros.
Como sujeitos, somos encorajados por Freire a romper a prisão do conhecimento pré-fabricado e suas respectivas relações de dominação ao mudarmos as condições materiais que nos conformam.
Ficar ao lado dos oprimidos não era, para Freire, apenas um imperativo ético – como era para a teologia da libertação – mas também um imperativo epistemológico: era, ele insistia, a única maneira de romper com a ideia de que haveria um reino de ideias puras a serem pinçadas e transmitidas pelas autoridades designadas.
A verdade, para Freire, era sempre dialógica, sempre envolvia o eu e o outro, ligados em uma contradição dialética da vida cotidiana.
Freire hoje
Freire sempre resistiu a ser identificado com os diversos movimentos e tendências na educação aos quais algumas pessoas afirmavam que ele era ligado, sejam eles a educação popular, a educação de adultos, reformas educacionais, educação não-formal, educação progressiva, ou a pedagogia marxista.
Enquanto algumas dessas correntes iriam em algum momento cair nas mãos dos especialistas em políticas públicas, o projeto de Freire permaneceu firmemente uma pedagogia dos oprimidos.
Nosso mundo é, em muitos sentidos, o mundo que Freire lutou para evitar: um mundo onde conhecer por meio do questionamento crítico perde espaço para guerras culturais intermináveis; onde professores são criticados por argumentar com base em evidências; onde as pessoas são punidas por desafiar o histórico de envolvimentos coloniais dos Estados Unidos e sua história brutal da escravidão.
O tipo de pensamento corajoso que Freire defendia faz da covardia moral da maior parte dos líderes políticos e figuras públicas atuais algo ainda mais condenável.
O que é necessário em nossos sistemas escolares hoje é uma pedagogia que permita aos estudantes entender suas experiências de vida em contextos sociopolíticos mais amplos e complexos.
As guerras culturais nos Estados Unidos e no Brasil devem-se, em parte, ao medo do que isto poderia significar: certo ou errado, convidar estudantes a considerar os méritos da teoria feminista, da teoria crítica da raça, da teoria decolonial e de outras linguagens analíticas, significa também refletir sobre as experiências históricas que tornaram essas perspectivas possíveis em primeiro lugar.
Em sua raiz, seja no Brasil, seja nos Estados Unidos, a direita está alimentando o medo de uma vasta conspiração doutrinária porque isto é o que eles mesmos temem.
Ao imaginar nossas escolas como um lugar de disputa darwiniana para impor visões de mundo conflitantes, os conservadores estão tentando nos fazer esquecer, convenientemente, daquilo que Freire nos ajudou a entender: que a educação não diz respeito apenas a visões de mundo estáticas, mas também, potencialmente, da transformação do mundo. Ou, como Freire coloca: “A leitura de mundo precede a leitura da palavra”.
*Peter McLaren é professor de pedagogia na Chapman University (EUA). Autor, entre outros livros, de A vida nas escolas (editora Penso).
Tradução: Anouch Kurkdjian
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