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Em abril de 1996, 21 trabalhadores rurais foram assassinados; para quem sobreviveu, a dor transformou-se em luta

Cercados pela Polícia Militar, sem-terra foram mortos com seus próprios instrumentos de trabalho ou executados com tiros na cabeça – J.R. Ripper

Era uma quarta-feira, por volta das 16h, do dia 17 de abril de 1996. Cerca de 1,5 mil pessoas estavam acampadas na curva do S, em Eldorado do Carajás, sudeste do Pará, em forma de protesto. O objetivo era marchar a até a capital Belém e conseguir a desapropriação da fazenda Macaxeira, ocupada por 3,5 mil famílias sem-terra.

A caminhada que tinha começado no dia 10 de abril foi parada com sangue em um ataque da Polícia Militar que ficou mundialmente conhecido como o Massacre de Eldorado do Carajás. Um total de 155 policiais militares estiveram envolvidos na operação que deixou 21 camponeses mortos, 19 no local do ataque, e outros dois que faleceram no hospital.

Para muitas das famílias que tiveram suas vidas marcadas pela morte, a luta não terminou naquele massacre. Polliane Soares é da direção estadual no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Pará. Naquele 17 abril de 1996, ela tinha 11 anos, e marchava junto da família rumo a Belém pela rodovia PA-150 para reivindicar o direito à terra.

“Eu lembro que no dia do massacre, eu estava na cidade com a minha mãe [,que atuava como professora em Eldorado]. Em um determinado momento da noite, eu acho que por volta das 20h houve um apagão geral. Quando aconteceu apagão, começou a circular a informação de que tinha acontecido o assassinato, que tinham matado os sem-terra lá na curva [do S] e a minha mãe – como o irmão dela estava lá – ficou desesperada“.

Ao anoitecer, o crime já tinha sido cometido. Sem luz e em uma cidade em meio ao breu, totalmente incomunicável, mãe e filha não conseguiram dormir. No dia seguinte, logo cedo, seguiram para a curva do S.

“Quando a gente chegou, eu me lembro muito, de muito sangue na pista. Um cenário muito forte de destruição. As marcas estavam por todos os cantos, muitas coisas deixadas para trás“, diz ela.

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Dos 19 trabalhadores que morreram no local, oito foram mortos por armas brancas. Os outros 11 foram alvejados com 37 tiros, quase 4 tiros por pessoa/ J.R. Ripper

Metralhadora contra pedras

Três meses antes do massacre, em 5 de março de 1996, as famílias haviam ocupado a fazenda Macaxeira – em Curionópolis, município vizinho a Eldorado – e buscavam negociação com Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para iniciar o processo de desapropriação da terra improdutiva. Sem respostas e tendo recebido promessas que nunca foram cumpridas, os camponeses decidiram protestar na capital.

A marcha partiu de Curionópolis e pretendia passar por Eldorado do Carajás e Marabá, antes de chegar a Belém. Quem viveu aquele dia ou assistiu às imagens gravadas pela TV Liberal, afiliada da Rede Globo no Pará, viu a viu a violência que recebeu as famílias sem-terra em Eldorado. A repórter Marisa Romão chegou a pedir aos policiais aos gritos de “só tem mulher e criança”

O registro mostra pessoas ensanguentadas correndo em meio ao chão de terra batida, tiros, sangue, desespero. A agressão durou praticamente duas horas.

Os trabalhadores foram cercados. De uma lado policiais do quartel de Parauapebas, do outro policiais do batalhão de Marabá. Dos 19 mortos, oito foram assassinados com seus próprios instrumentos de trabalho: foices e facões, os outros 11 foram alvejados com 37 tiros, uma média de quatro tiros para cada pessoa. Outras 79 pessoas ficaram feridas. Duas delas faleceram no hospital. 

A policia matou camponeses com tiros na nuca, na testa – em claro sinal de execução. Um teve a cabeça esmagada.

O tio de Polliane sobreviveu. “Naquele tempo tinha, claro, essa divisão dos apoiadores e dos não apoiadores do movimento, mas tinha também uma sensação muito forte de medo sobre o que o Estado podia fazer com as pessoas. Em Eldorado naquela época, eu lembro que os pais da gente, passaram e ter muito receio. A minha mãe e as colegas dela que trabalhavam na escola diziam ‘tenham cuidado, quando vocês verem a polícia em algum lugar, entrem em uma outra rua, lembra do que a polícia fez lá na curva do S com os sem-terra'”, relata a atual dirigente do movimento.

Naquele tempo tinha, claro, essa divisão dos apoiadores e dos não apoiadores do movimento, mas tinha também uma sensação muito forte de medo sobre o que o Estado podia fazer com as pessoas. 

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Fragmento da capa do Jornal do Brasil do dia 18 de abril de 1996 / Reprodução/Jornal do Brasil

Um ato de covardia

Para o professor e dirigente estadual do MST Pará, Batista Nascimento Silva, 39 anos, que mora no assentamento Lourival Santana não há outra definição para o que foi feito se não covardia. Quando, os trabalhadores foram cercados pela PM, Batista estava na PA-150, no sentido Eldorado/Marabá.

“Quando os policiais chegaram e desceram no sentido Marabá começaram a jogar bombas e atirar, os policiais do outro lado, de Eldorado, iniciaram o mesmo ato suprimindo os sem-terra, pois eles foram se aproximando. Os sem-terra, ao perceber que um cidadão baleado caiu no chão, partiram para cima jogando pedras, pau, como uma forma de proteção para tentar afastar os policiais, mas eles acirraram mais ainda o tiroteio”, relata. 

Para se proteger, Batista atravessou a PA-150 para procurar refúgio. “Não tive como ir muito além, muito mato. Retornei, atravessei agachado, muitas pessoas caídas e eu consegui chegar até uma casa do outro lado e lá fiquei por poucos instantes onde já tinham companheiros baleados. Cheguei a ver companheiros socorrendo outros baleados, pernas estouradas de tiro, tiro na boca, cheguei a presenciar. Tinha uma área fechada da casa e eu empurrei a porta porque eu queria me refugiar lá dentro e lá tinham várias pessoas deitadas no chão, crianças, mulheres, senhores e jovens.”

Cheguei a ver companheiros socorrendo outros baleados, pernas estouradas de tiro, tiro na boca. 

O militante observou as pessoas machucadas e com medo e decidiu não entrar, mas percebeu policiais se aproximando e se escondeu no mato onde ficou até às 20h. Ao sair, procurou a mãe e os quatro irmãos. O pai tinha ido à Curionópolis pela manhã, quando retornou foi impedido de passar pelo bloqueio feito pela polícia e assistiu ao massacre sem poder fazer nada. Por volta de 22h, Batista encontrou a mãe e três irmãos, a irmã caçula só foi encontrada no dia seguinte.

“Depois do acontecido ficamos dois dias no local, porque não tínhamos para onde ir e só saímos no dia em que os corpos foram liberados de Marabá para seguir para velório. Então, algo assim, está arraigado na memória e todos os dias de certa forma a gente lembra todo aquele cenário, aquela movimentação, aquilo que foi denominado Massacre de Eldorado do Carajás.”

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Jornal O Globo estampa na capa a confirmação de que sem-terra foram executados pela PM / Reprodução/Jornal O Globo

Memória de luta

Batista acredita que o Massacre foi uma forma de o sistema reprimir a luta do MST naquele momento. “O sistema naquele momento aqui na região dominado pelos ideais dos reis do latifúndio juntamente com um grupo da sociedade que englobava comerciantes, empresas, por exemplo, a Vale estavam furiosos com a expansão e a territorialização do MST”, explica o professor.

O sistema naquele momento aqui na região dominado pelos ideais dos reis do latifúndio juntamente com um grupo da sociedade que englobava comerciantes, empresas, por exemplo, a Vale estavam furiosos com a expansão e a territorialização do MST. 

Ele, que na época tinha 15 anos, afirma que aquele momento instigou a sua vontade de estar ainda mais ao lado da luta da reforma agrária. “Aquele dia despertou em mim que só a luta é capaz de nos garantir conquistas e de certa forma as conquistas alcançadas com a luta se tornam justiça diante das imposições disseminadas pelos senhores que se beneficiam da exploração da classe trabalhadora, da classe mais vulnerável.”

O MST faz questão de honrar a memória dos que tombaram no dia 17 de abril. O coordenador estadual, Tito Moura, opina que o massacre foi uma ação premeditada do Estado, que estava incomodado com a visibilidade do movimento.

Ele relata que, na época, a fazenda Rio Branco, hoje Assentamento Rio Branco estava ocupada; outro pedaço da mesma fazenda se tornou o Assentamento Palmares; e em seguida ocupou-se a fazenda Macaxeira com 3,5 mil famílias. “Para os fazendeiros, aquele momento tinha que ser barrado”, resume. 

Moura já atuava como coordenador do MST na época do massacre e marchou de Curionópolis até Eldorado, mas retornou para resolver assuntos relacionados ao Assentamento Palmares onde, mora até hoje. Assim como Tito diversas pessoas foram poupadas do Massacre, porque haviam retornado aos seus assentamentos.

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Em memória às vítimas do massacre, o monumento das castanheiras queimadas fica no km 95 da PA-150, na chamada curva do S / Divulgação

Impunidade

Dos 155 policiais que atuaram no caso, somente Mário Pantoja e José Maria de Oliveira, comandantes da operação, foram condenados e cumprem a pena em liberdade. Os outros 153 PMs foram absolvidos, ainda que vários dos policiais que atuaram no caso estivessem sem identificação e com armas retiradas do quartel sem registro, o que não é permitido.

Depois do massacre, 17 de abril se tornou o Dia Mundial da Luta pela Terra. A fazenda Macaxeira, cujo proprietário é um dos mandantes do crime, foi desapropriada e se tornou o assentamento 17 de Abril.

O local que foi palco do massacre hoje é considerado sagrado pelo movimento. O “monumento das castanheiras queimadas” é formado por árvores mortas, uma para cada vida ceifada. Ao centro há um altar com o nome das pessoas assassinadas, como forma de homenagem. Tudo para lembrar as vidas roubadas.

A juventude do MST também usa o espaço como acampamento na região amazônica. Os atos e a valorização do espaço são para que o mundo não se esqueça, nunca, o que a PM do Pará fez no dia 17 de abril, em Eldorado do Carajás.

Edição: Rodrigo Chagas

Catarina BarbosaBrasil de Fato | Belém (PA)

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