O atual confronto entre uma parcela do Supremo Tribunal Federal e a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, é consequência do desarranjo institucional do país que teve início há cerca de cinco ou seis anos. Nesse desarranjo, o marco principal foi o impeachment com gol de mão da então presidente Dilma Rousseff em 2016.
Há exatos três anos, a Câmara dos Deputados aprovou o pedido de abertura de processo de impeachment da petista, numa sessão famosa por seus absurdos políticos e legais, com direito até a homenagem do então deputado federal Jair Bolsonaro a um notório torturador da ditadura militar de 1964.
Ontem, Dodge mandou arquivar um inquérito aberto pelo presidente do STF, Dias Toffoli, para investigar ataques e supostas notícias falsas a respeito de membros do tribunal. O ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito, decidiu que o inquérito continua ativo e que Dodge não teria poder para arquivá-lo.
Do ponto de vista formal, a razão parece estar ao lado de Dodge, mas numa democracia, a última palavra é do STF. Isso dá vantagem tática a Dias Toffoli e Moraes contra a procuradora-geral. O plenário da corte deverá ser chamado a arbitrar esse novo embate institucional.
Há um esgarçamento entre as relações de setores do Judiciário e do Ministério Público. Um grupo de ministros do STF avalia que procuradores da República, especialmente da Lava Jato, cometem abusos e interpretam a lei penal de modo errado.
Nos últimos 5 ou 6 anos, houve um retrocesso institucional no Brasil. Instituições passaram a interferir nas esferas de poder alheias. Nossas instituições, que pareciam consolidadas e cientes de seus papéis numa democracia, deram uma pirada.
O impeachment de Dilma, com crime de responsabilidade para lá de controverso, foi um marco desse recuo institucional e civilizatório. Primeiro, tomaram a decisão política de derrubá-la. Depois, foram atrás de provas, frágeis, de crime de responsabilidade.
Agora, o STF reage de forma corporativa porque se sente vítima de abusos aos quais assistiu sem reação enquanto outras instituições e pessoas eram atingidas, como Dilma e o ex-presidente Lula.
Dias Toffoli, a exemplo da antecessora no comando do STF, Cármen Lúcia, também manipulou a pauta do tribunal. Estava previsto para 10 de abril um julgamento que poderia ter desdobramento favorável a Lula. O presidente da corte simplesmente desmarcou o que havia marcado e ponto final.
Lula é tratado de modo diferente, com processos que tramitam a jato e decisões sob medida, inclusive com cerceamento ao seu direito de dar entrevistas. Esse tratamento dá razão à alegação do ex-presidente de que é vítima de uma caçada política e jurídica.
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O próprio veneno
O ex-presidente Michel Temer tem dito em conversas reservadas que forças-tarefas são inconstitucionais. Ele crê que a Lava Jato se enquadra nessa categoria.
Numa força-tarefa, polícia, Ministério Público, Judiciário e órgãos do Executivo (Receita, por exemplo) se unem para investigar e punir eventuais crimes. Esse expediente deveria ser excepcional e de curta duração. A Lava Jato já tem mais de cinco anos e, em alguns casos, agiu como poder paralelo e independente do MP e do Judiciário.
A polícia investiga. O Ministério Público também investiga, checa o trabalho da polícia, acusa e pede abertura de processo. O juiz avalia se a denúncia do MP é consistente, julga as provas e absolve ou condena. Um fiscaliza o trabalho outro, como prevê nosso ordenamento jurídico, com seu sistema de freios e contrapesos.
Quando todos estão reunidos, há possibilidade de uma instituição fechar os olhos para deslizes da outra em função do objetivo comum da força-tarefa. Por exemplo: um juiz pode direcionar a investigação e julgar ao mesmo tempo, algo que guarda semelhanças com o que Dias Toffoli e Alexandre de Moraes estão fazendo. O MP está, de certa maneira, provando do próprio veneno.
Disputas de poder, eventuais abusos e supostas reputações estão desmoronando em praça pública.
Ouça o comentário feito ontem no “Jornal da CBN – 2ª Edição”: