Além de discutir a concentração de audiência e de propriedade de mídia no país, entrevista traz bastidores de ex-editora do Jornal Nacional e ex-repórter do jornal O Globo
A primeira Conversa Pública de 2018 trouxe para centro do debate o Grupo Globo e os impactos econômicos, sociais e culturais que o conglomerado tem no Brasil. A entrevista realizada na Casa Pública, no Rio de Janeiro, foi conduzida pela jornalista e escritora americana Julia Michaels. Os entrevistados foram Beth Costa, secretária-geral da Fenaj e ex-editora do Jornal Nacional, Ruben Berta, do The Intercept e ex-repórter do O Globo, e Mônica Mourão, do Intervozes.
Julia Michaels – Gostaria que a Mônica, do Intervozes, que fez um estudo muito interessante sobre os donos da mídia no Brasil, falasse sobre a Globo.
Mônica Mourão – A pesquisa se chama “Quem Controla a Mídia no Brasil”. É um projeto da Repórteres Sem Fronteiras realizado em dez países, e o Brasil foi o 11º. A pesquisa analisou 50 veículos, e o critério de escolha foi a audiência. Dos 50 veículos, nove são ligados a grupos religiosos e nove, ao Grupo Globo. A gente tem aí duas forças muito grandes concentrando a mídia no país: a quantidade de audiência dos veículos das Organizações Globo está em primeiro lugar e é maior do que a soma do segundo, terceiro, quarto e quinto lugares juntos. Esse monitoramento no caso do Brasil traz o alerta vermelho de prejuízo para a democracia devido à concentração.
É uma concentração econômica, é uma concentração de audiência e, podemos dizer, uma concentração cultural se a gente pensar na forma como o Grupo Globo se coloca na sociedade. O grande desafio de falar sobre esse tema é não ficar – principalmente eu, que também sou nordestina – como aquele personagem do Tá No Ar que é um cara nordestino de esquerda que fica esculhambando a Globo. A gente precisa refinar os nossos argumentos. Não dá para simplesmente dizer: “Fora, Rede Globo. O povo não é bobo”. A gente tem que olhar com um pouco mais de cuidado para o que significa essa concentração midiática no Brasil. E o problema, digamos, da concentração midiática não é exclusividade da Globo. A gente fala dela porque tem uma robustez econômica, de audiência, de verbas publicitárias que se sobrepõe aos outros grupos. Mas ela, obviamente, pôde crescer e chegar a esse ponto por existir pouca regulação e menos ainda fiscalização do que é feito. Portanto, essa concentração é fruto, na verdade, de todo um sistema econômico e político.
Natalia Viana – Em 2014, a Globo tinha uma rede nacional de 118 TVs afiliadas e a receita foi US$ 7 bilhões. Segundo o The Economist, era o terceiro grupo midiático que crescia mais rápido no mundo.
Mônica Mourão – A Globo tem cinco emissoras que são Globo: Rio de Janeiro, Recife, São Paulo, Brasília e Belo Horizonte – está no limite de acordo com a legislação. Mas o domínio de audiência se dá por meio das 123 redes afiliadas. E a gente sabe que a relação da “cabeça de rede” com as afiliadas é uma relação extremamente desigual.
Eu sou professora e dou uma matéria que se chama “Mídia Regional”. Nela, os estudantes tentavam atualizar o monitoramento que o Intervozes fez há alguns anos, e a grade de programação das afiliadas é quase igual a da “cabeça de rede”. Mesmo o que tem de diferente segue um padrão. Ou seja, a gente tem o Bom Dia RJ, tem o Bom Dia Ceará, tem o Bom Dia SP. E se reproduz na estética e na linha editorial. Então, esse domínio está presente, principalmente, a partir do sistema de afiliadas, que faz com que a emissora consiga estar dentro da lei, porém ocupando espaço no Brasil inteiro.
Julia Michaels – Eu gostaria muito de ouvir a Beth e depois o Ruben, que lá trabalharam, sobre como é decidida a pauta na Globo? Se tem um viés e, se tiver, qual é.
Beth Costa – Os interesses regionais também são muito fortes na questão da propriedade dos meios que vem da falta de regras para esse setor desde a Constituinte. A Globo está dentro e fora da lei ao não respeitar a Constituição no quesito de propriedade dos meios. E ela muito menos obedece ao capítulo da Comunicação Social da Constituição que trata do papel social de um meio de comunicação, principalmente rádio e TV, que é uma concessão do Estado. É como a saúde pública, a escola, a educação. A radiodifusão no Brasil é uma concessão do Poder Executivo e, portanto, teria que estar submetida a regras e leis porque presta um serviço público. Aliás, agora tem uma medida provisória do Temer que diz que não precisa mais ser concessão, mas autorização. Ou seja, nem passar pelo Congresso Nacional precisa mais. Não tem audiência pública, não tem transparência. Se passar essa norma, desobedecendo à Constituição, pode ser que a Globo tenha que ser submetida apenas a nada.
Julia Michaels – Como era quando você trabalhou lá?
Beth Costa – Trabalhei 22 anos. A definição das pautas e o que entra no ar e o que não entra obedece à lógica “eu boto no ar o que acho interessante para mim como grupo econômico”. Os jornalistas da Globo podem negar, mas existe. Como sindicalista e dirigente sindical da Federação Nacional dos Jornalistas [Fenaj], que criou o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, acredito que o jornalismo e o jornalista têm que dialogar com a sociedade porque o produto do trabalho dele é um produto social.
A gente poderia perder horas falando sobre a teoria da manipulação e como se faz a manipulação. A gente sabe que a Rede Globo, imbricada na questão cultural, é muito inteligente, e não se pode subestimar o seu grupo dirigente, que é muito bem preparado. Quando assumi o Sindicato dos Jornalistas em 1987, fiz uma reunião sindical na Globo para entender o seguinte: qual seria o papel do sindicato numa empresa que, naquela época, pagava o maior salário, tinha as melhores condições de trabalho, os melhores equipamentos, Fundo de Garantia, ou seja, uma empresa corretíssima. Na época, eu era casada com um psiquiatra. Quando cheguei em casa depois da reunião, falei: “Meu bem, essa reunião na Globo era mais pra você do que pra mim”. Porque as pessoas não conseguiam aliar os problemas éticos internos que tinham com o que elas faziam com a questão sindical. Achavam que o sindicato só tinha que ir até salário, condições de trabalho, e não se entrar no mérito, na ética do que cada um produz. As pessoas diziam: “Eu chego em casa, eu tinha que tomar uma dose de uísque, agora eu tomo três, eu tenho que me embebedar antes de dormir, eu tenho que me drogar”. O grande problema é que a definição das pautas obedece a interesses particulares, e não sociais, não de prestação de serviço público. A Rede Globo não presta um serviço à sociedade. Quando eu estava no Jornal Nacional, se apresentou a pauta do Luz para Todos como algo que o ex-presidente Lula iria inaugurar um poste no meio do nada. “Mas, se está levando energia elétrica para as cidades onde não existe, isso não é notícia?” “Ah, não vou fazer propaganda para o governo. O governo, se quiser fazer propaganda, que pague.”
Na parte do jornalismo, é a direção que dá as normas. Desde a campanha do Collor, o caçador de marajás, desde o debate Lula-Collor, desde sempre…
Então, a família e os proprietários, que não são proprietários, mas concessionários, tratam as emissoras, principalmente na parte de radiodifusão, como se fosse propriedade privada. Se você tem uma escola particular, você está submetido às diretrizes do MEC. Você pode até ganhar dinheiro com uma escola privada, com um hospital privado, mas você está submetido a regras gerais que trazem benefícios para a sociedade.
Julia Michaels – Ruben, quero fazer uma pergunta específica sobre a cobertura que O Globo fez do ex-governador Sérgio Cabral, atualmente preso. Eu sentia um noticiário com apoio irrestrito à pacificação que não mostrava as contradições.
Ruben Berta – Vocês talvez tenham uma visão mais macro do que a minha. O que posso passar de mais relevante é a experiência de alguém que fez parte daquela engrenagem durante um período muito grande. Eu fui repórter e o que posso dizer, talvez não agrade, mas em 95% do tempo fiz coisas que considero boas e reportagens de que me orgulho. Mas admito que existiu aqueles 5% vagabundos. Houve dois períodos na minha passagem no Globo que foram especialmente críticos. O período do Sérgio Cabral e o das manifestações de 2013.
2013 foi um período muito difícil de estar como repórter do jornal O Globo. O jornal fez uma capa desastrosa, emblemática, chamando as pessoas de vândalos. E, para quem estava na rua, foi muito triste ver aquilo. A gente ficou muito na linha de frente. Uma coisa importante de as pessoas entenderem é que houve uma mistura muito grande, que ainda se perpetua, que é entre o profissional e a empresa. Não necessariamente eles se misturam. Então, naquele período se criou um clima de animosidade em que você já ia para a rua num alto nível de estresse. Não menos de três vezes voltei para a casa e chorei: “Meu Deus, eu não estou conseguindo cumprir minha função”, pensava. Quem estava lá dentro da redação não me ouvia, o que eu passava era simplesmente ignorado. E lá fora, na rua, eu era o jornalista da mídia golpista que tinha que apanhar. E, talvez, tenha sido o período em que eu tenha sentido mais, realmente, uma distância entre a cúpula da redação e quem estava na rua acompanhando.
Eu não sei se O Globo, especificamente, sendo mais crítico à gestão Sérgio Cabral, mudaria alguma coisa no quadro que a gente vê no Rio de Janeiro, mas o fato é que houve uma omissão, sim, e muito séria. O Cabral, não sei exatamente por que motivos, isso não chegava pra gente, era um tema que pouco podia ser falado. Para você ir à frente com uma denúncia contra o Cabral, você tinha que ter algo, enfim, o tal do “batom na cueca”, que era uma coisa difícil. E, às vezes, mesmo quando se tinha “batom na cueca”, era embarreirado. Havia um clima de que o Rio estava próspero e a gente não podia acabar com essa prosperidade do Rio. O que eu não posso deixar de ressaltar também é que assim, em grande parte do tempo, eu tive até uma certa liberdade, fiz reportagens relevantes. Mas a coisa vai um pouco de acordo também e, mais especificamente no Rio, com quem está no poder. O Globo era um jornal na gestão Garotinho e virou outro jornal na gestão Cabral. Isso é claro. Então, sentia-se isto: acabou a gestão Garotinho, então agora se parou de fazer jornalismo investigativo. Um pouco também na gestão Eduardo Paes. Ah, a gestão Eduardo Paes, menos jornalismo investigativo. Crivella? Opa, mais jornalismo investigativo.
Beth Costa – Todo o meu trabalho na Rede Globo foi como editora de noticiário internacional. Eu acho que só por isso é que eu durei tanto tempo. Na minha área, as grandes restrições, como vocês devem imaginar, sempre foram Venezuela e Cuba. Então, nessas áreas, às vezes nem era eu que fazia a matéria para evitar brigas e discussões. Era o meu colega que dividia a edição de noticiário internacional. E eu tinha muita liberdade com os correspondentes também. A pauta era decidida, a relação muito boa, mas era assim: Europa, Estados Unidos e, quando chegava na América Latina, é que tinha problemas com esses dois países. E tinha realmente orientações para como cobrir, como editar as matérias.
Mariana Simões – Rubem, eu queria que você comentasse como você passou de O Globo para o The Intercept e se as pessoas olham você como se fosse “uma alternativa”.
Ruben Berta – Tem gente que ainda vê a mídia independente como uma coisa menor. Muitos assessores de imprensa estão mais interessados se vai sair uma notinha no Ancelmo Gois ou no Lauro Jardim do que se sairá uma matéria mais profunda na mídia independente. Existe esse desafio de a gente se consolidar e de ir ganhando aos poucos esse respeito e credibilidade. Acho que a gente tem que fazer um pouco de autocrítica também. Como hoje a internet tem um zilhão de opções, há algumas coisas que são mais sérias, menos sérias e, às vezes, as coisas que não são tão sérias acabam ganhando uma audiência maior do que as coisas que são mais sérias. Você gritar que a Globo é golpista, isso dá mais audiência do que você fazer uma matéria mostrando que a Fecomercio, que era comandada por um cara superduvidoso, vinha financiando a Infoglobo há muito tempo, mas talvez isso não tenha um impacto tão grande quanto você gritar que a Globo é golpista.
Alexandre Caroli – A minha pergunta é em relação à ética profissional. Será que a gente vai ter que conviver agora com essa impossibilidade de ter uma diversidade ideológica, de pensamento, de visão de mundo, em qualquer redação?
Beth Costa – O tema é interessante, mas é bastante complexo. Primeiro, vamos voltar ao fundamento do nosso debate. Para esse tipo de posicionamento acontecer, a gente tem que acabar com o monopólio da mídia. Ele é antidemocrático, é antiprofissional, é explorador. Então, o jornalista é contratado para produzir para um veículo e o que ele faz é usado em qualquer dos veículos do grupo. A Globo pode ser que não tenha mais o lucro de antes, mas não tenham dúvidas que ela não tem prejuízo. Ela está sempre no azul. Eu sempre briguei, como profissional e como sindicalista, que não se pode obrigar um jornalista, um trabalhador, quando entra, cruza a portaria da emissora, a deixar de lado tudo que aprendeu. Sua mãe falou: “Não pode mentir, não pode roubar”, e aí, de repente, você entra e é obrigado, não digo a mentir, porque a Globo é muito esperta nos modelos de manipulação, mas você bota o foco no terciário, e não no principal. Você escreve de uma maneira que não se questiona nada e dá um jeito na hora da edição. Por exemplo, eu estava na Globo na época da discussão das cotas.
Se vendia a pauta assim: “Vamos fazer uma cobertura bem equilibrada, três contra e um a favor”. E esse um a favor, que era brilhante, você nunca usava o melhor momento e o melhor argumento dele na entrevista. Além de ser só um, o editor não tinha o trabalho de ir lá: “Bom, qual é o momento em que ele consegue elaborar melhor o argumento a favor?”. Certamente não era esse trecho da entrevista que aparecia no noticiário.
A Globo tentou me demitir várias vezes, nunca conseguiu. Então, quando eu pedi demissão, pedi que me mandassem embora para eu não perder os 22 anos que estive lá. Eu fui comer um lanche. Atrás de mim, em uma mesa, tinha dois jovens e um que estava lá havia uns dois anos e o outro que estava chegando. Disse: “Olha, você está chegando, aqui é ótimo para trabalhar. Agora, eu tenho um conselho para te dar. O segredo aqui é o seguinte: você faça tudo que te pedirem sem contestar”. Era o segredo para ficar na Globo! Um jovem de 23 anos!
Ruben Berta – Na verdade, hoje o que se prega é o discurso da isenção. Acho que, mais do que nunca, na mídia corporativa, o que se vende é o discurso da isenção. Você tem que ser isento. E é um discurso que eu tenho questionado. Já me questionava estando lá e que me questiono aqui fora. Eu acho que sim, é um dever nosso de jornalista tentar procurar a isenção, tentar ouvir todos os lados. Mas isso não quer dizer que nós sejamos seres sem opinião. É meio surreal você tentar convencer as pessoas de que você é um robô que reproduz as notícias exatamente, enfim, de uma forma matemática, em que cada elemento ali ganha um determinado espaço. Acho que nem as pessoas querem isso.
Ciro Barros – Queria que vocês se colocassem quanto a uma crítica recorrente de quem diz que falar em democratização dos meios de comunicação seria uma forma de censura?
Mônica Mourão – A gente no Intervozes tem uma grande preocupação em separar regulação de censura. Regulação significa colocar regras, existir regras para um determinado setor que, no caso, além de ser importante economicamente, também é simbolicamente. E a existência de regras faz parte da democracia. Se a gente olhar países democráticos da Europa, ou os próprios Estados Unidos, ou aqui do nosso lado, a Argentina, que depois sofreu até um revés em relação a isso, existem leis para dizer “olha, tem que ter limite de propriedade etc.”. A Dilma, na sua segunda campanha, falava assim: “O melhor controle é o controle remoto”. E depois falou: “Vamos fazer uma regulação econômica da mídia, e não de conteúdo, porque conteúdo é censura”. Na verdade, já existe regulação de conteúdo prevista na Constituição. Quando a Constituição fala que rádio e TV têm que dar prioridade para conteúdo educativo, cultural, regional, tudo isso que não é cumprido, até porque falta uma lei que regulamente isso, ou seja, diga como isso deve ser cumprido, está se falando de conteúdo. Regulação de conteúdo não é censura porque significa “existem regras”, ou seja, eu não posso passar um casal transando às 14h da tarde, porque vai ter criança vendo televisão. A censura é: “Olha, antes de você veicular, eu tenho que ver se isso pode ser veiculado ou não”. Ou é dizer: “A priori, você não pode falar de tal assunto”. Regulação de conteúdo não é isso, é ter regras para o conteúdo, que são importantes para que a gente tenha mais diversidade e também respeito a crianças e adolescentes que estão em situação de desenvolvimento. E é importante que não estejam expostos a qualquer tipo de conteúdo em qualquer horário.