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Ângela Carrato: Jornal Nacional, de costas para a América Latina, de joelhos para Tio Sam

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DE COSTAS PARA A AMÉRICA LATINA, REDIGIDO EM WASHINGTON

Por Ângela Carrato*, especial para o Viomun

30 segundos. Este foi o tempo que o Jornal Nacional dedicou à posse do líder popular Gabriel Boric na presidência do Chile, país que, em outras oportunidades, este mesmo telejornal definiu como dos mais importantes e referência para o Brasil.

A orientação da família Marinho, seguindo a cartilha de Washington, é para esconder do público que a América Latina está passando por uma enorme mudança, com a derrota, através do voto, de governos neoliberais e antipopulares.

Num momento em que os Estados Unidos tentam recuperar o espaço que acreditavam ter reconquistado na região, com a presença de vários governos submissos aos seus interesses, a realidade dá mostras de estar se alterando com rapidez.

Neste sentido, a derrota do banqueiro Sebastian Piñera, que ocupou o Palácio de La Moneda até a semana passada, é das mais emblemáticas.

Se o Jornal Nacional fosse cobrir a posse de Boric, não seria possível deixar de mostrar que sua vitória encerra 49 anos do terrível período neoliberal no Chile.

Que a vitória de Boric, um militante de 36 anos, se deveu à incansável mobilização popular.

Que o representante oficial do Brasil na cerimônia, o vice-presidente Hamilton Mourão, foi colocado para correr aos gritos de “Fora Bolsonaro”, enquanto a ex-presidenta, Dilma Rousseff, que representou o PT na solenidade, era recebida com um sonoro “em outubro é a vez do Brasil”.

Que o próprio Boric quebrou o protocolo para, atravessando a rua, ir ao busto do ex-presidente Salvador Allende homenageá-lo.

Nada disso, claro, iria agradar à Casa Branca, que, além de ter tido atuação decisiva na desestabilização e golpe contra Allende, em 1973, faz de tudo para manter a América Latina como seu quintal.

Ou, como postula a doutrina Monroe, em vigor desde 1823, “a América para os americanos”.

Os americanos, no caso, são apenas os estadunidenses. Os demais não passariam de cucarachos, ignorantes, imigrantes ilegais, corruptos, populistas, enfim, gente que o Tio Sam acha que precisa e deve tutelar.

São dezenas os casos de intervenções militares, apoio a golpes de estado e, mais recentemente, de mudanças de regime (guerras híbridas) patrocinados pelos Estados Unidos na região no século XX, a começar pelo fomento e apoio à revolta que desmembrou o istmo do Panamá da Colômbia, em 1904.

O objetivo do Tio Sam era viabilizar um acesso mais curto entre os oceanos Atlântico e Pacífico para seus navios e mercadorias. O que se materializou no canal de mesmo nome, controlado diretamente pelos Estados Unidos até 1999.

GUAIDÓ “DEPOSTO”

Outra posse que mereceu apenas registro no Jornal Nacional e na mídia corporativa brasileira foi a do professor Pedro Castillo, também um militante popular, há sete meses na presidência do Peru.

Ao contrário de Boric, Castillo venceu, no segundo turno, a neoliberal Keiko, filha do ex-ditador Alberto Fujimori, por uma pequena diferença. Desde que assumiu, vem enfrentando todo tipo de problemas – potencializados e estimulados pelo Tio Sam – a ponto de já ter trocado o ministério quatro vezes e de estar mais uma vez sob a ameaça de impeachment, que lá atende pelo nome de vacância do cargo.

Castillo, até agora, não conseguiu governar. Sobre os quadros que tenta atrair para sua administração, uma vez que não tem maioria no Parlamento, são lançadas suspeitas, assim como sobre ele próprio, de falta de “condições morais”, numa espécie de eco peruano do que foi a Operação Lava Jato.

Lá, como aqui, uma parte dos ditos “democratas” faz coro com a extrema-direita e joga no time do Tio Sam.

No centro da disputa está também a estatal PeruPetro, através da qual Castillo tenta disciplinar as multinacionais do petróleo que mandam e desmandam em seu país.

Detalhe: pela continuidade geográfica que o Peru representa em relação ao Equador, tudo indica que suas reservas petrolíferas sejam muito maiores do que os dados oficialmente conhecidos.

Por falar em petróleo, é importante lembrar que os Estados Unidos manejam o conceito de democracia e de ditadura segundo os seus próprios interesses e conveniências econômicas.

Haja vista que o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, antes considerado inimigo e cujo governo há cinco anos vinha sendo alvo de duras sanções por parte dos Estados Unidos e da União Europeia, repentinamente voltou ao status de interlocutor de Joe Biden.

O que mudou? Em função da Guerra na Ucrânia, as sanções dos Estados Unidos e da Europa à Rússia estão provocando uma escalada nos preços do petróleo e há risco de falta de combustível.

Como a Casa Branca precisa de petróleo (a Venezuela possui a maior reserva do mundo) e lá não funcionam operações como a Lava Jato, o jeito foi voltar a negociar com Maduro.

Maduro aceita conversar sobre a venda de petróleo aos Estados Unidos, mas certamente colocará suas condições, já deixando claro que não há como o Tio Sam influir em sua relação com a Rússia.

A Rússia de Putin foi dos poucos países que apoiaram o governo de Caracas quando os Estados Unidos moviam céus e terras para derrubar Hugo Chávez e, até duas semanas atrás, depor o próprio Maduro, por não admitir o caminho ao socialismo defendido pela Revolução Bolivariana.

Maduro vende petróleo aos Estados Unidos e a quem mais quiser, mas é preciso que a Inglaterra devolva os milhões da reserva em ouro da Venezuela depositados em seus bancos. Valores que, na cara dura, o governo inglês queria se apossar.

Quem se lembra que os Estados Unidos e a União Europeia reconheceram o farsante Juan Guaidó como o legítimo presidente da Venezuela?

A mídia corporativa brasileira providencialmente se esqueceu do assunto, mas parte das redes sociais não perdoa.

Uma das gozações que têm circulado, desde que começou a Guerra na Ucrânia, registra a “queda” de Guaidó, deposto pelos Estados Unidos. Quanta ingratidão!

SE NÃO FOI NOTICIADO, NÃO ACONTECEU

Sem saber como noticiar uma guinada como essa, que põe a nu a canalhice e os interesses inconfessáveis do Tio Sam, o Jornal Nacional e a mídia corporativa brasileira simplesmente ignoram o assunto.

Algo na linha de Assis Chateaubriand, o primeiro magnata da imprensa brasileira: “se os Diários Associados não noticiaram, não aconteceu”.

A eleição presidencial na Colômbia é outro exemplo de silenciamento criminoso da mídia corporativa brasileira em relação ao que se passa neste importante país da América Latina.

Historicamente, a Colômbia paga um preço altíssimo por ser considerada, do ponto de vista geopolítico, área fundamental para o controle e penetração dos Estados Unidos na América do Sul. Tanto que a pátria de Gabriel García Márquez nunca conseguiu eleger um governo efetivamente democrático em sua história.

Ao que tudo indica, essa situação está prestes a mudar. O economista e senador Gustavo Petro é líder absoluto em todas as pesquisas de opinião para substituir o atual presidente, Iván Duque, um neoliberal amigo dileto do Tio Sam e de Bolsonaro. Duque, aliás, foi chamado para uma reunião com Biden às vésperas das eleições legislativas na Colômbia, que aconteceram no domingo (13/3).

Quem acreditava que esse encontro pudesse provocar alguma alteração nos resultados, enganou-se redondamente.

Tidas como uma espécie de prévias das eleições presidenciais que acontecerão daqui a dois meses (29 de maio), as eleições legislativas indicaram que Petro, candidato de esquerda, conta com 80,32% dos apoios, contra 54,18% do candidato Fico Gutiérrez e 32,85% de Sergio Fajardo, que se proclama “não político”.

Petro já sinalizou que, se eleito, quer renegociar os termos do tratado bilateral de comércio com os Estados Unidos, por considerá-lo lesivo aos interesses da população colombiana.

Outro silêncio na mídia corporativa brasileira diz respeito ao que acontece na Bolívia. Ao contrário da extensa cobertura que mereceu o golpe de estado que depôs o então presidente Evo Morales, em 2019, são raríssimas as referências ao que se passa no país desde que o Movimento ao Socialismo (MAS), partido de Evo Morales, voltou ao poder, através de eleições diretas, em 2020.

O presidente da Bolívia, Lucio Arce, ex-ministro da Economia de Morales, tem retomado e procurado aprofundar as políticas públicas implementadas pelo MAS, especialmente no que se refere às melhorias de condições de vida das populações indígenas e ao controle, pelo estado boliviano, dos recursos minerais, a começar pelo tão cobiçado lítio.

Exatamente por isso, não faltam tentativas de retirá-lo do poder por parte de supremacistas bolivianos, apoiados pelos Estados Unidos e, segundo as denúncias de Evo Morales, também pelo governo Bolsonaro.

Mesmo a Bolívia sendo muito próxima do Brasil, nada disso é noticiado pela mídia corporativa daqui.

Essa mídia, aliás, tentou, de todas as maneiras, passar pano para a declaração do magnata estadunidense Elon Musk, dono de inúmeras empresas, entre elas a Tresla e a SpaceX, referindo-se à Bolívia e ao lítio, de que daria, sim, golpes em todos os estados que quiser.

O lítio, de que a Bolívia possui uma das maiores reservas no mundo, é fundamental para as baterias dos carros elétricos que a Tresla fabrica.

Em mais uma prova cabal de viralatismo ou até de coisa pior, a mídia corporativa brasileira insiste em continuar referindo-se a Musk como “CEO brilhante e inovador”, um exemplo (!) para os empreendedores.

ROTAS DA SEDA

A recente viagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao México, onde manteve uma longa conversa com o presidente Lopez Obrador, também mereceu apenas notinhas e breves referências na mídia corporativa brasileira.

Isso, mesmo ambos tendo se posicionado pela neutralidade na Guerra da Ucrânia, tendo feito críticas à OTAN e defendido mudanças na atual governança mundial.

Obrador, como o presidente da Argentina, Alberto Fernández, não irá impor sansões econômicos à Rússia, deixando claro que não engrossa a histeria estadunidense e europeia no combate ao governo Putin e à Rússia.

Mesmo “cobrindo” a Guerra na Ucrânia como se ela estivesse acontecendo aqui, a mídia corporativa brasileira, esconde e sonega esses fatos ao seu público.

O objetivo é claríssimo: induzir as pessoas a acreditem que a Rússia está isolada e que o “Ocidente” trava uma guerra justa contra um governante bárbaro e uma cultura sanguinária.

Diante de tantas artimanhas, vale até duvidar se foi por desconhecimento mesmo que a apresentadora da TV Globo, Ana Maria Braga, mencionou, há poucos dias, que a Rússia é comunista, sendo que a União Soviética acabou em 1991 e, de lá para cá, o país que a sucedeu é capitalista.

Os antecedentes desta senhora não a recomendam. Ana Maria é aquela que apareceu com um colar de tomates, para denunciar a alta da inflação durante as manifestações que desestabilizaram o governo Dilma, quando o aumento nos preços era insignificante.

Entre essas e tantas outras realidades que a mídia corporativa brasileira tenta esconder está a de que a América Latina caminha a passos largos para não ser mais quintal do Tio Sam.

Como se não bastassem os posicionamentos políticos dos novos governantes, é importante lembrar que a economia da região, há mais de uma década, rompeu a subordinação que mantinha em relação aos Estados Unidos e se dá ao direito soberano de negociar com quem bem entender.

China e Rússia, por exemplo, estão entre os principais parceiros econômicos de países como Venezuela, Cuba, Chile, Peru, Argentina e Brasil.

A Nicarágua, no final do ano passado, depois da vitória de Daniel Ortega para mais um mandato, fechou parceria com a China para a construção de um novo canal, ligando os oceanos Atlântico e Pacífico. Em outras palavras, a supremacia dos Estados Unidos no Canal do Panamá parece com os dias contados.

Um mundo multipolar, onde nenhum país se arvorasse a ser xerife ou senhor dos demais, deveria ser o desejável por toda mídia que se diz democrática.

Como não é o caso da mídia corporativa brasileira, em breve terão início as matérias anunciando a importância da IX Cúpula das Américas, prevista para acontecer na semana de 6 de junho, em Los Angeles, na Califórnia.

Convocada pelos Estados Unidos, a Cúpula pretende reunir os países americanos (Cuba está excluída), com o objetivo de anunciar parcerias econômicas e apoios bilaterais. Para muitos analistas, trata-se de uma tentativa, um tanto tardia, de barrar o avanço das parcerias chinesas na região.

Até agora, na América Latina 20 países já assinaram o ingresso nas chamadas Novas Rotas da Seda (Belt and Road Initiative), lançadas em 2013, pelo presidente chinês Xi Jinping. No mundo, esse número chega a 150 países.

O objetivo é integrar a Ásia a todos os continentes, através de um grande cinturão político de natureza econômica, comercial, financeira e de infraestrutura.

As Novas Rotas da Seda são consideradas a mais ambiciosa proposta de integração econômica na atualidade e, por razões óbvias, incomodam muito aos Estados Unidos.

PROPOSTA INDECOROSA

Os Estados Unidos se preocuparem com a economia e a vida das populações na América Latina, como é apresentada a ideia da Cúpula das Américas, seria algo excelente, se fosse verdade.

A região tem uma longa história de ser foco das grandes potências – a começar pelo “descobrimento” a cargo de Espanha e Portugal -, depois se tornando colônia informal da Inglaterra até chegar à esfera de influência dos Estados Unidos, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Situação da qual busca se libertar.

Desde então, os Estados Unidos tem interferido e sempre de forma contrária aos interesses da maioria da população latino-americana. Situação que inspirou um ressentimento, que deu origem à atual abertura para a Ásia.

Grande parte do investimento da China teve início na década final do século passado, durante a chamada maré rosa, quando partidos progressistas e de esquerda chegaram ao poder na Venezuela, Paraguai, Uruguai, Argentina, Bolívia, Brasil e Equador.

Muitos desses partidos, que, nos últimos anos, foram derrubados por golpes (tradicionais ou híbridos) apoiados pelos Estados Unidos estão de volta ao poder ou próximos de chegar lá, como no caso do Brasil, mas o Tio Sam mostra-se longe de desistir da região.

Como se não bastassem visitas de conselheiros estadunidenses a países como Colômbia, Equador e Panamá, para promover uma alternativa à Rota da Seda, a Cúpula das América anuncia que irá formatar uma proposta mais arrojada de integração.

Como toda mentira tem pernas curtas, dois senadores estadunidenses, com ampla influência na política exterior para a América Latina, anunciaram que estão apresentando um projeto de lei para ampliar o “compromisso” do seu país ante o efeito “desestabilizador” dos regimes “autoritários” da China e da Rússia na região.

Os senadores em questão são o democrata Bob Menendez, presidente do Comitê de Relações Exteriores, e o republicano Marco Rubio, a presença de maior destaque no subcomitê sobre o Hemisfério Ocidental. O projeto deles tem o nome de Lei Estratégica de Segurança do Hemisfério Ocidental de 2022.

Apresentado na semana passada, o projeto propõe aumentar a participação de Washington na América Latina para enfrentar o que consideram “regimes autoritários” e “a crescente presença da China e Rússia na região”.

A proposta acontece no momento em que o império estadunidense dá mostras de muito incômodo diante do poderio russo na Guerra na Ucrânia e da ascensão da China à condição de primeira potencial mundial (que deve alcançar até 2030).

Com nostalgia da Guerra Fria e da Doutrina Monroe, esses senadores deixam nítido quais são os verdadeiros interesses do Tio Sam. Talvez esteja aí, inclusive, as razões da súbita viagem do Comandante do Exército brasileiro, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, aos Estados Unidos.

Como a pauta não foi divulgada especula-se que o general poderá ouvirá propostas do tipo: o Brasil dar apoio mais “efetivo” contra a Guerra na Ucrânia, através do aumento da produção de petróleo para fornecer aos Estados Unidos.

Os brasileiros continuariam pagando caro pelo combustível aqui, para os consumidores estadunidenses não terem falta dele, em função do bloqueio impostos pelos Estados Unidos e Europa ao petróleo russo.

A mídia corporativa brasileira não mostra nada disso, mas, na prática, está a serviço desses interesses quando ignora os novos governos progressistas, demoniza a Rússia e Putin, critica a China e fomenta uma espécie de ante-orientalismo no Brasil.

Não por acaso, as eleições de outubro prometem se transformar num campo de batalha onde Bolsonaro tentará se apresentar como “o amigo do Tio Sam”, e imputar a pecha de “comunista” ao ex-presidente Lula e a seus apoiadores.

Há quem arrisque dizer, inclusive, que Bolsonaro tentará fechar o apoio de Biden à sua reeleição durante a Cúpula das Américas. Sua moeda de troca seria o alinhamento total do Brasil aos ditames de Washington e do “ocidente”.

Alinhamento que Lula jamais admitiria, seja em relação aos Estados Unidos, China, Rússia ou qualquer outro país, defensor que é da soberania e da autonomia dos povos.

Por último, mas não menos importante, vale ressaltar que a mídia corporativa brasileira, que se mostra tão preocupada com a soberania da distante Ucrânia, não publica absolutamente nada sobre o absurdo de ainda existirem, em pleno século XXI, duas colônias europeias na América Latina: Malvinas e Guiana Francesa.

Quando da recente viagem do presidente Alberto Fernandez à Rússia e à China, ele ouviu dos dirigentes desses dois países, respostas positivas a antigos pleitos argentinos.

A Rússia sinalizou que apoia o ingresso da Argentina no BRICS e a China anunciou que endossa a antiga reivindicação da Casa Rosada no que se refere a recuperar as Malvinas.

Pelo visto, aquela frase do ex-governador Leonel Brizola sobre o jornal O Globo, pode ser estendida para toda a mídia corporativa brasileira: feita em Washington e apenas traduzida para o português.

*Ângela Carrato, jornalista, professora da UFMG e apoiadora da chapa ABI Luta Pela Democracia.

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