Ao reunir milhares de pessoas nos protestos em defesa da memória de uma mulher, negra, favelada (e ilustre desconhecida fora do Rio de Janeiro) a reação ao assassinato de Marielle Franco mostra que brasileiras e brasileiros retornam ao terreno prioritário da luta popular, que é a mobilização em espaços públicos por direitos e reivindicações.
Ao lado da respeitável mobilização de professoras da rede municipal de São Paulo, indignadas com uma ataque traiçoeiro de João Dória a seu sistema de previdência, ilustrado por uma sangrenta repressão policial a uma manifestação da véspera, este é o grande significado da jornada de ontem, quando ocorreram mobilizações cuja grandeza não se via desde a greve geral em defesa dos direitos trabalhistas.
Separadas por motivações de química diversa, mas unidas pelo mesmo sentido geral de resistência diante de iniciativas levadas a cabo por Temer & Cia, os protestos mostram que a população não aguenta mais viver sob um estado de coisas intolerável e se dispõe a ir as ruas para defender seus direitos.
A biografia de Marielle é, em si, a grande síntese do que está em jogo, num processo monstruoso pelo qual tenta-se destruir conquistas recentes e fazer a história andar para trás.
Em 2002, ela era uma favelada que ingressava na PUC do Rio de Janeiro para fazer um curso universitário. Dezesseis anos mais tarde, formada e pós-graduada, quinta vereadora mais votada no Rio de Janeiro, liderança popular ativa e respeitada, foi executada à bala quando voltava para casa após debater a intervenção federal num encontro no Acari, região especialmente conhecida como área de violência policial. (Em média, 25% das 2125 mortes violentas ocorridas na cidade do Rio de Janeiro em 2017 foram produzidas pela PM. Já é um índice altíssimo mas na região do Acari, alvo de denúncias frequentes e corajosas da vereadora, esse índice é ainda maior, chegando a 32% em 2017).
Num governo marcado por falsas retomadas e planos de curta duração, numa sequência recorde de ações de marketing, a intervenção militar chegou a ser apresentada pelos “profissionais” da escola Moreira Franco como primeira fase de um projeto reeleitoral do mais impopular presidente de nossa história republicana.
O assassinato marca o apodrecimento precoce de mais recente iniciativa de baixa política, incapaz de gerar qualquer benefício aproveitável do ponto de vista da segurança pública — e que a partir de agora terá como prioridade moral e política a obrigação de esclarecer um crime localizado em suas próprias entranhas.
Se imaginava que iria andar para a frente, Temer & Cia voltaram a andar para trás — mas o país deixou claro que não quer ir junto.
O prometido rigor no combate a corrupção policial e a presença do tráfico nas favelas, quando se chegou a exigir o compromisso de não investigar denúncias envolvendo crimes contra direitos humanos, num eufemismo tácito para liberar a tortura, exibiu sua face real, previsível e didática num ataque covarde contra uma mulher, negra, favelada.
Alguma dúvida?
PAULO MOREIRA LEITE
Paulo Moreira Leite é colunista do 247, ocupou postos executivos na VEJA e na Época, foi correspondente na França e nos EUA