O texto de Giuseppe Cocco e Marcio Tascheto, “Eu (não) sou ninguém: a subjetividade sem nome” nos remete mais uma vez à cena ‘Junho de 2013’. E o ‘amor’, ali posto, vai ocupar uma posição de destaque nesta segunda parte do nosso estudo, inclusive quando formos discutir sobre os agenciamentos com a ‘classe sem nome’.
Para a escritora Simone Weil, o brilho da beleza sobre a infelicidade é espalhado pela luz do espírito de justiça e amor – o esplendor da beleza seria fruto do amor. E se para Agamben [o filósofo italiano Giorgio Agamben], o que funda o sujeito moderno é o direito, a pessoa e a democracia, para Weil é a justiça, a verdade e a beleza.
Dentro desse deslocamento em relação a Agamben, Coco e Tascheto vão trazer o caso Saint-Exupéry: mesmo consciente da inutilidade do combate – já que a França, naquele momento da segunda guerra, se encontrava derrotada – o sentimento de comunidade o levava a prosseguir, mesmo sabendo que poderia ser morto a qualquer momento.
Uma sensação de tranquilidade, que o fazia compartilhar do pão com os outros companheiros de combate, sentados à mesa, a convite do camponês, em cuja fazenda estava abrigada a esquadrilha – essa sensação de pertencer a uma comunidade, compartilhando os mesmos valores.
O amor seria essa rede de laços que faz o devir: o fermento de uma cultura e de uma civilização estaria na comunidade e no amor que a funda. A incapacidade dos países dos direitos humanos de resistirem à expansão do nazi-fascismo, como observa Simone Weil, seria decorrente para Cocco – como ele postula no artigo “Hélio Oiticica depois de Junho de 2013” – não de uma falta de resistência individual, mas da própria perda de referência cultural.
A própria democracia burguesa já seria produto desse mal: a perda do fermento de uma cultura, a perda dessa riqueza que se produz pela multiplicação de laços.
Para se entender a função das máscaras e como estas se articulam à frase “eu não sou ninguém”, Cocco e Tascheto lembram Hanna Arendt quando ela identifica, na pessoa ou na persona, a máscara do ator ou o seu papel sobre a face pessoal do indivíduo.
Aliás, pro direito romano, a persona possui direitos cívicos ao contrário do homo sacer. No entanto, são direitos específicos, reservados não enquanto homem genérico, mas enquanto pessoa que tem um papel na vida social: os direitos se constituem não com base no reconhecimento genérico da humanidade, mas no papel atribuído ao homem.
A separação entre máscara (sujeito de direito) e corpo, ou, entre pessoa e corpo, explica a separação entre papel social e condição humana. A questão seria: qual a crítica mais eficaz às relações de poder? Como quebrar o jogo das máscaras que a sociedade industrial embutiu para cima da sociedade burguesa ou colonial? Como quebrar o jogo do espetáculo do Poder? Como mudar essas máscaras? Como nomear a nomeação efetuada pelo Poder no sentido espinoziano? É através da vida nua, sem máscara? É através da ausência de direitos? Ou será que a impotência da subjetivação do “eu sou ninguém” acaba sendo transformado em alguém pelos dispositivos de poder?
A melhor forma de negar o nome e negar a máscara que lhe é atribuída é mudando de máscara: “eu não sou ninguém”. É vestir máscaras de luta, como foram as de junho de 2013, colocadas pela multidão selvagem da classe sem nome.
E mesmo que as batalhas campais e o “Ocupa Câmara” em outubro de 2015, no Rio de Janeiro, tenham ativado o pacote da ilegalidade, levando à prisão duzentos manifestantes, quebrou-se mais tarde o jogo do espetáculo do poder, mudando-lhe as máscaras: entre 2016 e 2017, os membros do executivo e do legislativo, que implementariam as leis que criminalizavam os manifestantes, acabaram sendo presos ou conduzidos para interrogatório por corrupção e formação de quadrilha.
Talvez agora possamos entrar no que Cocco chama de “lulismo selvagem”, mas que, no texto sobre o qual nos debruçamos, fala-se muito en passant. Para melhor precisarmos a expressão, vamos nos reportar à palestra, de Hugo Albuquerque, proferida em 06.09.2012, na Casa Rui Barbosa, ou seja, quase um ano antes do levante de junho de 2013.
“A ascensão de classe sem nome”, título da palestra de Hugo Albuquerque, é, sobretudo, uma ascensão selvagem. “Sem nome” porque na insistência que se tenha um, acaba-se abarcando vários, o que também significa recusar a todos: classe c, nova classe média, subproletariado, consumitariado, proletário endinheirado, batalhadores, entre outros.
E ascensão selvagem porque ao invés de agir segundo o seu lugar, sabendo qual o seu lugar (no Brasil, os dois lugares fundamentais aos quais fomos relegados e que precisaríamos ter em mente para saber a qual deles pertencemos, segundo o modo prático dos universais, seriam a Casa Grande e a Senzala), a classe sem nome, que são fundamentalmente os pobres, foi, a partir de um determinado momento que chamaremos de lulismo, para espaços que não eram os seus por direito mas passariam a ser de fato, como os aeroportos e o Facebook.
É que só pode ser submetido a uma ordem aquilo que, antes de mais nada, tenha um nome próprio que permita – a boca que ordena – circunscrever previamente sua capacidade de agir. Daí a recusa de um nome por parte dessa classe.
Na verdade, a questão de ter um nome, “multidão”, “classe sem nome” ou seja qual for, não é o grande problema, ainda que, para a máquina paranóica de identificação, o nome seja uma forma de controle e domínio.
A grande questão é a alternativa ao dispositivo de poder. O anônimo não deverá ser confundido com o vazio do anonimato, isto é, com o seu sentido niilista, porque assim nem estaríamos propondo uma alternativa ao dispositivo de poder que acabaria nos nomeando, como nem estaríamos fazendo justiça ao anônimo enquanto derivação de uma potência imensa, não sintetizável pela máquina de medir, que é a mesma da identificação. Potência imensa e, portanto, não niilista.
Ter um nome não é o problema. O importante é fugir do plano transcendental, da teologia política moderna, cujo hebraísmo faz do Pai, nominante e inominável. Em outras palavras, a máquina paranóica de identificação também deve ter um nome, há que se nomear o próprio mecanismo de nomear, enunciar o processo de exploração, dar nome ao inominável como Espinoza fez o chamando de Deus ou Natureza.
O sentido de “sem nome”, ao invés de falta de nome, expressa uma potência imensa capaz de produzir diferença. Os partícipes de uma multidão, de um tumulto ou de uma legião, fazem parte delas sendo eles próprios e todo mundo ao mesmo tempo, impedindo dessa forma a individuação enquanto forma de reduzir a diferença à regra do semelhante pelo mecanismo de autorização.
Da mesma forma, na revolução francesa, os “sans culottes” representam uma metonímia para a ausência de estatuto social: eles não são nem o velho regime e nem o novo regime moderno e burguês. Mas eles existem. Há um famoso poema de Drummond que diz: “não há falta na ausência, a ausência é um estar em mim”. Esse “sem” está em mim, isto é, está em si, livre de assujeitamento, enquanto potência capaz de produzir diferença, com uma capacidade de ação real, não de ação devida. É uma questão de poder, não de dever: realmente não devemos, mas podemos.
O que aconteceu no período Lula foi justamente essa potência que poderíamos chamar de “lulismo selvagem”: a gestação da classe sem nome é oriunda desse momento. As proposições molares, à moda dos estatísticos, oriundas desse período, tais como o aumento do nível de emprego, do salário mínimo, da proporção da renda do trabalho na renda nacional, assim como os ganhos não laboriais, como os da Bolsa Família e dos Pontos de Cultura, poderiam ser operados dentro de uma rigidez e de uma imobilidade simbólica: cada um no seu lugar marchando pra frente.
Enfim, o que dá o caráter selvagem a esse período são as proposições moleculares: todos esses ganhos ocorriam dentro de um discurso que autorizava o pobre a desejar e, consequentemente, não se deixar sintetizar pela máquina do medir. O que acaba por transfigurar o espaço e o tempo, dando ao país uma experiência que nunca havia sido vivenciada antes: não é mais o discurso de ordem e progresso, próprio do positivismo, inserindo o país na modernidade, nem é o discurso de esperança, do país do futuro.
A experiência do lulismo selvagem é a experiência do isto-aqui-agora. Daí porque para Hugo Albuquerque, se Lula era muitas coisas, ele era Dilma também – já Dilma, ao contrário, era ela própria e nada mais. O objetivo de Dilma seria permitir, por meio da modernização, a continuidade do processo, com o tumulto se tornando missa civil, ordenada e pacífica, e com a classe sem nome destinada a tornar-se classe média, consolidando assim o país de classe média.
A classe sem nome não se identificaria exatamente com a pobreza porque seria um devir-excedente dos pobres, um devir desejante, não se identificando nem com o Brasil tradicional nem com a regra da classe média, seja ela a existente ou enquanto projeto de país. Daí porque é um monstro perseguido por todas as instâncias.
O próprio PT viria a se tornar o Dr. Frankenstein em desespero por ter autorizado essa criatura desejante, enquanto uma esquerda uspiana que flerta com a ontologia negativa (Vladimir Safatle) também o perseguiria por contrariar as regras postas, as determinações eternas e o estatuto do controle do desejo tal como compreendido.
As regras que a esquerda brasileira estipulou para fazer a revolução também seriam contrariadas por esse monstro desejante, vindo a ser perseguido por ela com tochas e arados, ao invés de se tentar entendê-lo.
E a própria intelectualidade de esquerda acabou preferindo desistir do monstro em contraste com a resistência dele.
Todo esse não entendimento do monstro, segundo Hugo Albuquerque, parece estar centrado no estatuto da dialética “casa grande – senzala”, em contraste com o devir desejante do monstro, que quer ser apenas amado.
O amor como elemento para a constituição de trocas, seria o primeiro passo para o agenciamento com os pobres do devir-excedente, criando um vínculo empático e embarcando no devir social anônimo.
Isso foi realizado nos levantes de junho de 2013, como se o texto-palestra de Hugo Albuquerque, apresentado um ano antes, fosse uma espécie de potência.
Mas esse monstro foi também aprisionado pelo projeto modernizante de Dilma, através da economia da dívida e da expansão do mercado creditício (“sou endividado para procurar emprego e pagar o que devo” – uma forma de capturar a classe sem nome, remetendo-a para o futuro e eliminando o aqui-agora).
A esquerda, por sua vez, para falar em nome dos pobres, exige que esse pobres tenham um nome, o que a leva a um afastamento do monstro, fazendo com que este permaneça exposto à sedução de candidatos evangélicos e à captura por parte da direita, que não exclui quem quer que seja do processo sob o estatuto da dialética “casa grande-senzala” (não há lado de fora para o capitalismo cognitivo).
Todos esses termos, que recupero do texto-palestra de Hugo Albuquerque, foram atualizados pela política brasileira anos depois. Até mesmo o fenômeno Bolsonaro é fruto da captura, do aprisionamento do monstro. E se um poema de Drummond foi lembrado no texto-palestra, quando o poeta se referia à ausência presente, quero aqui terminar relembrando os versos finais de Clara Crocodilo:
“Onde andará Clara Crocodilo?
Onde andará?
Será que ela está roubando algum supermercado?
Será que ela está assaltando algum banco?
será que ela está atrás da porta de seu quarto,
aguardando o momento oportuno para assassiná-lo com os seus entes queridos?
Ou será que ela está adormecida em sua mente
esperando a ocasião propícia para despertar e descer até seu coração,
ouvinte meu, meu Irmão?”
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