Definição de qual crime foi cometido é importante por vários motivos, entre eles a possibilidade de haver outras pessoas ou grupos envolvidos.
O atentado a bomba cometido por um homem em Brasília na quarta (13/11) está sendo investigado pela Polícia Federal (PF) como possível atentado contra o Estado Democrático de Direito e também como um possível ato terrorista — mas existe toda uma discussão em torno do uso do termo.
Na noite de quarta, Francisco Wanderley Luiz, de 59 anos, morreu após disparar uma série de explosivos em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ter detonado um deles junto ao próprio corpo.
Embora não seja possível processar criminalmente alguém que já morreu, a definição de qual crime foi cometido é importante por vários motivos, entre eles a possibilidade de haver outras pessoas ou grupos envolvidos — algo que a PF não descarta.
A discussão sobre se o ato foi ou não um ato terrorista, no entanto, é algo que vai muito além do direito: se tornou uma disputa política.
Wanderley Luiz era filiado ao PL, o partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, e se candidatou a vereador pelo partido em 2020. Bolsonaro foi rapidamente às redes para chamar o episódio de “caso isolado” e “ao que tudo indica causado por perturbações na saúde mental da pessoa”.
Já o ministro do STF Alexandre de Moraes afirmou no início de uma sessão no STF na quinta (14/11) que “não poderia deixar de lamentar a mediocridade de várias pessoas que continuam querendo banalizar um gravíssimo ato terrorista.”
“No mundo todo, alguém que coloca na cintura artefatos para explodir pessoas é considerado um terrorista. Então, lamento essa mediocridade das pessoas que, por questões ideológicas, querem banalizar o absurdo dizendo que foi um mero suicídio”, afirmou o ministro.
Moraes já havia dito, na manhã de quinta-feira, que o atentado não era um fato isolado e que faz parte de um contexto que começou com o “gabinete do ódio” — como ficou conhecido um grupo no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro que, segundo investigação da PF, era responsável por espalhar desinformação.
Mas afinal, o atentado pode ou não ser definido como terrorismo de acordo com a lei brasileira? E o que isso significa para a forma como o caso vai ser tratado de maneira geral?
A Lei Antiterrorismo no Brasil
Embora não exista um consenso internacional sobre uma definição exata de terrorismo do ponto de vista legal, a lei brasileira é bem clara sobre o que pode ou não ser considerado crime de terrorismo na Justiça penal, explicam criminalistas ouvidos pela BBC News Brasil.
A Lei 13.260/2016, conhecida como Lei Antiterrorismo, lista em seu artigo 2º as motivações que uma ação precisa ter para ser considerada crime de terrorismo no Brasil: “xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado”.
“A motivação política não está na nossa definição jurídica de terrorismo”, explica o criminalista Rogério Taffarello, sócio do escritório Mattos Filho. “Como a interpretação do direito penal deve ser sempre estrita, a Lei Antiterrorismo não pode ser aplicada quando a motivação do ato é política”, afirma Taffarello, que é mestre em direito penal pela USP, pós-graduado em direito penal pela Universidade de Coimbra (Portugal) e ex-diretor do IBCcrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).
Os outros criminalistas ouvidos pela BBC News Brasil concordam com essa análise.
E de acordo com os indícios descobertos até agora, Wanderley Luiz teria agido por questões políticas, o que faria com que seu caso não pudesse ser encaixado na Lei Antiterrorismo no Brasil.
“É uma questão relacionada à forma como a lei foi redigida pelos legisladores”, explica Vladimir Aras, professor de direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e procurador regional da República em Brasília. “A lei exige motivação específica, então com qualquer motivação que não as que estão listadas o ato não pode ser encaixado no crime de terrorismo”, diz Aras. “O que não significa que não seja terrorismo no sentido não técnico-jurídico da palavra. E também não significa que um atentado com motivação política não possa ser punido como um dos muitos outros crimes existentes.”
Taffarello concorda: o fato de o crime não se encaixar na Lei Antiterrorismo, ou seja, não ser terrorismo do ponto de vista jurídico, não significa que não possa ser chamado de terrorismo no sentido político da palavra.
“O direito não tem o monopólio do sentido das palavras, como nos lembrou o professor Conrado Hübner”, diz Taffarello, citando o pensamento do professor de direito constitucional da USP Conrado Hübner Mendes.
Em um artigo para a Folha de S. Paulo em 2022, escrevendo sobre atos violentos de bolsonaristas em Brasília ainda durante a presidência de Jair Bolsonaro, Hubner criticou o fato de juristas estarem desencorajando analistas políticos a usar o termo “terrorismo” para se referir aos episódios.
“A ressalva jurídica (‘pela lei, o crime não é de terrorismo’) está certa. A recomendação terminológica (‘não falem em terrorismo’) está errada”, escreveu Hübner. “Porque a lei e o direito não têm monopólio da linguagem crítica da política e da moral.”
“Caso isolado?”
Em meio a essa disputa política pelo termo, muitos bolsonaristas têm ido às redes sociais tanto para tentar se afastar da figura Wanderley Luiz quanto para dizer que o atentado “é um caso isolado”, que não estaria relacionado a grupos bolsonaristas e, por supostamente ter sido uma ação individual, não poderia ser considerado terrorismo.
Do ponto de vista jurídico, no entanto, o ato ter sido cometido sozinho ou com ajuda de um grupo não faz diferença para a aplicação da Lei Antiterrorismo, explicam os criminalistas.
No mesmo artigo em que cita as motivações que podem configurar ato terrorista, a Lei Antiterrorismo também deixa claro que os atos podem ser cometidos “por um ou mais indivíduos”.
Mas e do ponto de vista mais amplo, como definir terrorismo?
O que é terrorismo?
Não existe uma definição exata de terrorismo que seja consenso internacional por uma série de motivos históricos, explica o advogado Acacio Miranda da Silva Filho, mestre em direito penal internacional pela Universidade de Granada (Espanha), entre eles justamente o fato de que cada país tem uma definição jurídica diferente para o termo.
Mas existem diversos tratados internacionais — muitos dos quais o Brasil é signatário, ou seja, concordou em respeitar — que trazem definições e determinam que haja formas de se investigar e punir crimes de terrorismo previstas em lei. Também existem muitos organismos internacionais que tentam definir o termo e explicar o que seria terrorismo.
O escritório da ONU (Organização das Nações Unidas) para Drogas e Crime, explica que a consequência dessa falta de definição clara é justamente que isso pode “facilitar a politização e o mal uso do termo”, mas que as tentativas de se criar uma “definição habitual de terrorismo” são sempre muito criticadas.
A entidade explica que a abordagem da ONU é de que as “diversas referências a terrorismo presentes em mecanismos e documentos da entidade não são sugestões de que existe uma definição habitual do termo, mas ‘guias para os Estados’ usarem como base.”
Entre esses documentos, um que tem maior legitimidade, diz a entidade, é uma resolução da Assembleia Geral da ONU — da qual todos os países membros participam e votam — que busca criminalizar uma série de atividades consideradas “atos terroristas”.
A resolução 49/60 diz que “atos planejados para provocar um estado de terror no público em geral, em um grupos de pessoas ou em pessoas específicas por motivos políticos são em quaisquer circunstâncias injustificáveis, não importando quaisquer considerações políticas, filosóficas, ideológicas, raciais, étnicas, religiosas ou de qualquer natureza que sejam argumentadas para tentar justificá-las.”
Outro exemplo “guia” sobre terrorismo presente em documentos da ONU é a resolução 1566 (2004) do Conselho de Segurança, que se refere ao terrorismo como:
- “atos criminosos, inclusive contra civis, cometidos com a intenção de causar morte ou lesões corporais graves, ou tomada de reféns”
- “com o propósito de provocar um estado de terror no público em geral ou em um grupo de pessoas ou pessoas em particular”
- “intimidar uma população ou obrigar um governo ou uma organização internacional a fazer ou se abster de fazer qualquer ato”
A resolução pede que os Estados ajam para prevenir tais atos e garantir que, caso aconteçam, sejam punidos por penas compatíveis com sua gravidade.
O que traz a questão: com sua atual Lei Antiterrorismo, o Brasil é capaz de atender a esse pedido e cumprir com seus compromissos contra o terrorismo em tratados internacionais?
Como punir um atentado a bomba
De acordo com os criminalistas ouvidos pela BBC News Brasil, um crime como um atentado a bomba pode — e deve — ser punido de acordo com sua gravidade mesmo que não se encaixe na Lei Antiterrorismo.
De acordo com a promotora Celeste Santos, do MP-SP (Ministério Público de São Paulo), embora o atentado em Brasília na quarta não tenha, até o momento, indícios de que teve alguma das motivações citadas na Lei Antiterrorismo, há indícios de outros crimes.
“As investigações podem levar à conclusão de que houve um crime de tentativa de Abolição violenta do Estado Democrático de Direito, previsto no artigo 359-L do Código Penal, ao tentar impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais como é o Poder Judiciário e a Câmara dos Deputados”, afirma Santos.
Ela explica que o tipo penal (o crime descrito no código) prevê uma pena de prisão de quatro a oito anos além de uma pena cumulativa pela violência causada, ou seja, o autor responderia — se tivesse sobrevivido — também pelos crimes de explosão e dano qualificado ao patrimônio público.
Vladimir Aras também cita os crimes de explosão, de causar perigo a outra pessoa e os crimes contra o Estado Democrático de Direito previstos no artigo 359.
No entanto, tanto Santos quanto Aras afirmam que não é suficiente punir autores de atentados com crimes comuns.
“Já é tempo e hora do Brasil adequar sua legislação antiterrorismo à multiplicidade dos possíveis atentados existentes no território nacional. Ato terrorista não pode mais ficar vinculado a elementos subjetivos tão específicos como discriminação ou xenofobia”, afirma Santos.
“A Lei Antiterrorismo está mal redigida”, afirma Aras. “Ela é muito limitada. Deveria conter a previsão de motivação política.”
E motivação política não é apenas motivação político-partidária, afirma, mas motivações que estejam relacionadas à organização do país, à política de forma mais ampla.
“Da forma como a lei existe hoje, ela não é suficiente para que o Brasil cumpra com seus compromissos internacionais de coibir o terrorismo”, afirma Aras.
Na configuração atual, afirma, a lei abrange casos de terrorismo internacional mais comuns cometidos em nome da jihad (‘guerra santa’) islâmica. “Mas deixa de fora, por exemplo, atos como os de grupos separatistas amplamente considerados terroristas nos anos 1990, com o IRA (Exército Republicano Irlândes) e o ETA (grupo separatista basco), na Europa”, afirma Aras.
Já Rogério Taffarello discorda que a lei precise de uma mudança — segundo ele, os crimes existentes são suficientes para punir atos como o atentado em Brasília.
“O legislador optou corretamente por manter a motivação política de fora”, afirma Taffarello. “Isso protege as pessoas de abusos do Estado, previne que a lei seja usada por motivos ideológicos para perseguir pessoas manifestando suas opiniões políticas.”
“Em tempos de tantas pautas antidemocráticas, a lei penal tem que ser uma garantia do cidadão, que não pode ser criminalizado por razões de perseguição política”, diz o criminalista.
Para Acacio Miranda da Silva, a dificuldade em rediscutir a legislação nesse momento é o clima político polarizado — e como a lei “atende minimamente aos compromissos internacionais brasileiros”, diz ele, isso deveria ser evitado.
“Toda essa polarização poderia enviesar o resultado”, diz ele. “De certa forma foi esse o problema na redação da lei lá em 2016.”
Terrorismo x manifestação política
A Lei Antiterrorismo foi aprovada em março de 2016, durante o governo de Dilma Rousseff, que sofria pressão do Comitê Olímpico Internacional para que houvesse um dispositivo legal para punir terrorismo antes da Olimpíada no Rio de Janeiro.
Na época, foi justamente a preocupação de que a lei fosse usada para criminalizar movimentos sociais e manifestações que fez com que a motivação política ficasse de fora.
Com o clima político já bastante polarizado, foi a esquerda que trouxe a preocupação de que movimentos sociais como o Movimento dos Sem Terra pudessem ser perseguidos.
Todos os criminalistas ouvidos pela BBC concordam que é preciso diferenciar um ato terrorista de uma manifestação política comum — mesmo que haja violência — e que isso é bastante delicado.
Por isso a lei traz também um parágrafo que visa evitar esse cenário, afirma Aras.
O texto diz que a lei não se aplica à “conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei.”
Este último trecho — “sem prejuízo da tipificação penal contida em lei” — significa que, embora manifestantes por direitos não possam ser encaixados na lei, eles ainda podem ser punidos por outros crimes, como dano ao patrimônio público.
Para Aras, esse dispositivo já é suficiente para proteger manifestantes legítimos — quer sejam de esquerda ou de direita — de serem tratados como terroristas.
“Se o homem fizesse uma manifestação em frente à estátua do STF e tivesse um martelo, e golpeasse a estátua, isso não deveria ser punido como terrorismo, mas como destruição do patrimônio público. É muito diferente de ter uma bomba, que de fato deveria ser punido como terrorismo”, afirma. “Esse parágrafo já garante essa proteção.”
Outros casos
Por causa da configuração atual da legislação, outros casos semelhantes ao do atentado em Brasília não foram considerados terrorismo pela Justiça.
Dois dos envolvidos no caso da bomba colocada em um caminhão próximo ao aeroporto de Brasília em novembro de 2022, George Washington de Oliveira Sousa e Alan Diego dos Santos Rodrigues, foram condenados em 2023 pela tentativa de explosão, mas sem serem encaixados no crime de terrorismo.
Eles foram condenados pelos artigos 251 e 250 do Código Penal por expor a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outra pessoa. Sousa foi condenado também por porte ilegal de arma de fogo e artefato explosivo ou incendiário. Ele recebeu uma pena de nove anos e quatro meses de prisão, enquanto Santos a de cinco anos e quatro meses.
Para Rogério Taffarello, os envolvidos na tentativa de golpe de 8 de janeiro também não deveriam responder por crime de terrorismo pelo mesmo motivo — a inexistência de motivação política na Lei Antiterrorismo.
O que não significa, diz ele, que os atos coletivos não tenham sido graves e não devem ser punidos. “Existe um rol de delitos para a responsabilização dos culpados”, afirma o criminalista.
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