Especialistas destacam que mudança no cálculo do Fundo Constitucional impactará a prestação de serviços nos hospitais. “Também deixará o DF vulnerável a futuras crises sanitárias”, alerta a secretária Lucilene Florêncio
A proposta de mudança no cálculo do Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF), em tramitação no Congresso Nacional, pode comprometer um dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal de 1988: a saúde pública. O corte de gastos sugerido pelo governo federal tem gerado preocupações entre especialistas ouvidos pelo Correio, que destacam possíveis impactos negativos no sistema de saúde da capital.
Criado pela Constituição de 1988 e regulamentado em 2022, o FCDF desempenha papel crucial na saúde do Distrito Federal, principalmente no fortalecimento da atenção primária à saúde, considerada a porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo a Secretaria de Saúde (SES-DF), apenas no primeiro semestre deste ano, a rede pública atendeu 4,2 milhões de pessoas em postos e unidades básicas de saúde, abrangendo os serviços de promoção e proteção da saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos e manutenção do bem-estar da população.
Os recursos transferidos anualmente pela União ao governo local ajudam a financiar a construção de unidades básicas de saúde, contratação e remuneração de profissionais, programas de saúde preventiva, fornecimento de medicamentos, entre outros serviços. Segundo a secretária de Saúde, Lucilene Florêncio, uma possível redução no FCDF não apenas comprometeria a sustentabilidade financeira da saúde pública, mas também afetaria investimentos em infraestrutura e a expansão do efetivo atual.
“Profissionais de áreas essenciais e assistenciais, como médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, técnicos administrativos, odontólogos e mais de 20 especialidades da carreira de especialistas em saúde, seriam diretamente impactados. Isso prejudicaria o funcionamento de setores estratégicos, como urgência e emergência, atenção hospitalar, especialidades de alta e média complexidade, além da Atenção Primária à Saúde, que é a porta de entrada e um pilar essencial no atendimento à população”, afirma Lucilene.
A secretária também destaca que o sistema de saúde pública no DF enfrenta demandas adicionais por ser a capital da República. Segundo ela, a mudança no cálculo do FCDF pode desestabilizar o sistema, comprometendo a assistência de milhões de pessoas tanto do DF quanto do Entorno, que dependem dos serviços oferecidos na capital. “A redução dos recursos pode trazer impactos graves para os pacientes da rede pública de saúde, especialmente em áreas críticas como cardiologia, anestesiologia e outras especialidades. Muitas delas dependem da contratação de serviços complementares da iniciativa privada para suprir a crescente demanda e a insuficiência da capacidade instalada da rede pública”, explica, ao Correio.
Lucilene alerta que, sem uma recomposição por outra fonte de receita, os cortes no FCDF podem resultar na perda significativa de profissionais e na redução da capacidade produtiva do sistema de saúde. “Isso não apenas prejudicará os serviços de saúde em tempos normais, mas também deixará o DF vulnerável a futuras crises sanitárias. A saúde de milhões de pessoas que dependem do SUS-DF estará em risco”, ressalta.
A secretária conclui reforçando a importância do fundo para o funcionamento do sistema público de saúde no DF. “O FCDF é uma ferramenta indispensável para manter a qualidade e a continuidade do atendimento à população. Sua preservação é essencial para evitar o colapso do sistema e garantir que o DF continue a atender, com eficiência, tanto os moradores locais quanto os que vêm de fora em busca de assistência”, ressalta.
Para Carla Pintas Marques, professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UnB), a mudança em discussão no Congresso pode comprometer a rotina dos serviços de saúde. “Esse recurso não é um bônus. Ele sustenta o funcionamento diário dos serviços, incluindo alta complexidade, pagamento de pessoal e aquisição de insumos. Um corte nesse aporte pode resultar em desassistência, paralisação de obras e falta de materiais”, afirma.
Carla enfatiza que, antes da criação do FCDF, o orçamento da saúde já era insuficiente, um problema agravado pela atual dependência do fundo. Ela também alerta para os impactos nos serviços que atendem à população da Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (Ride). “Sem o fundo, o DF não conseguirá atender à crescente demanda por alta complexidade, o que pode levar ao colapso do sistema”, pontua.
A especialista reforça a necessidade de reavaliar o orçamento destinado à saúde, considerando as demandas locais e regionais. “Enquanto outros estados sobrevivem sem esse aporte, o DF construiu uma estrutura altamente dependente dele. Um corte seria gravíssimo, pois o sistema de saúde da capital não possui reservas para compensar esse tipo de perda”, diz.
Cálculos
A proposta em análise no Congresso Nacional busca alterar os critérios de repasse do FCDF, atualmente vinculados à Receita Corrente Líquida da União (RCL), substituindo-os pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Embora o objetivo seja controlar os gastos públicos, especialistas alertam para os possíveis prejuízos à gestão financeira do DF.
Dentro do orçamento da SES, o FCDF é a principal fonte de recursos para a saúde pública do DF, representando 62% das verbas da Secretaria nos últimos dois anos e cobrindo 71,9% da folha de pagamento dos profissionais de saúde. Qualquer redução no repasse da União impactará diretamente os serviços, como explica o advogado especializado em direito tributário Vítor França.
“Isso significa que a maior parte do dinheiro que paga os salários dos profissionais de saúde, compra medicamentos e financia hospitais vem desse fundo. Qualquer redução significativa no valor exigirá cortes profundos ou uma reestruturação do orçamento distrital, o que pode comprometer a qualidade do atendimento”, ressalta.
França salienta que a mudança no cálculo, substituindo a base atual pela Receita Corrente Líquida (RCL), criaria instabilidade nos cofres do Distrito Federal, afetando não apenas a saúde, mas também a educação e a segurança pública. Ele destaca que a alteração proposta pelo governo federal representa apenas 0,46% dos gastos públicos federais, segundo o Portal da Transparência.
“É evidente que a proposta coloca em risco a saúde pública do DF, que depende desse fundo para operar. Não se trata apenas de uma questão financeira, mas de vidas que podem ser afetadas. Reduzir os recursos significa comprometer o pagamento de profissionais, a manutenção de UTIs e tratamentos de alta complexidade que salvam milhares de pessoas por ano”, avalia. “O impacto para o governo federal é mínimo, mas as consequências para o DF são enormes”, acrescenta.
Sobrecarga
Opinião semelhante é compartilhada pelo advogado especialista em direito tributário e relações governamentais, Asafe Gonçalves. Ele acredita que a diminuição dos recursos decorrente da mudança no cálculo pode inviabilizar a saúde pública no DF, já que o fundo também é usado para prevenir a sobrecarga de hospitais e emergências, ao financiar atendimentos em unidades básicas de saúde.
“O modelo atual do FCDF é eficiente em termos de abrangência e impacto regional, mas a sustentabilidade é um ponto de preocupação. O crescimento das demandas por saúde pública e a alta complexidade evidenciam a importância do fundo”, avalia Gonçalves. “A continuidade dele é essencial para garantir os serviços de saúde e manter o DF como referência nacional.”
Ele também lembra que, durante a maior crise sanitária do país, a pandemia de covid-19, o FCDF foi decisivo para a manutenção de pessoal. Para Gonçalves, as mudanças propostas pelo governo federal podem resultar em superlotação, aumento de filas e precarização do atendimento. “O fundo não é apenas uma transferência financeira, mas um instrumento estratégico para lidar com crises de grande escala. O modelo atual permite uma alocação eficiente dos recursos e fortalece a saúde pública, que atende não apenas os moradores locais, mas também de outras regiões”, conclui.
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