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Ao menos 3.148 cidadãos foram mortos por agentes de segurança no primeiro semestre deste ano em todo o País

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Ao menos 3.148 cidadãos foram mortos por agentes de segurança no primeiro semestre deste ano em todo o País

Rogério Ferreira da Silva Júnior carrega o nome do pai, mas só o conheceu por fotos. Tinha apenas dois meses de vida quando ele faleceu, vítima de câncer. A mãe se casou novamente, mas a união durou pouco. Aos 13 anos, tornou-se “o homem da casa”, e passou a entregar marmitas de bicicleta para contribuir nas despesas domésticas.

Assim que completou 18 anos, comprou uma Pop de 110 cilindradas, a mais barata da linha Honda. A moto era, ao mesmo tempo, a sua fonte de renda e o seu lazer. Quando o bagageiro não estava ocupado por pizzas, gostava de pilotar pelas ruas do Parque Bristol, zona sul da capital paulista. Em março, conseguiu um emprego fixo em uma empresa de logística. Quase todo o salário era destinado ao aluguel da casa da família, mas Rogério não precisava de muito para se divertir.

Na tarde de 9 de agosto, quando completou 19 anos, o jovem pegou emprestado de um amigo uma moto para um breve passeio. Não voltou mais. Durante uma abordagem da Polícia Militar, foi baleado na região dorsal e agonizou na rua à espera de socorro. Imagens de uma câmera de segurança não deixam margem a dúvidas. O rapaz aparece nas imagens sem capacete, trafegando pela Avenida dos Pedrosos. Em seguida, dois policiais cercam o jovem, que reduz a velocidade até parar perto da calçada. Na sequência, ele tomba com a moto, atingido pelo disparo fatal. Estava desarmado.

ROGÉRIO FOI ASSASSINADO NO DIA DO SEU ANIVERSÁRIO

Na quarta-feira 2, o juiz Ronaldo João Roth, do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo, determinou a prisão preventiva dos dois PMs, os soldados Guilherme Tadeu Figueiredo Giacomelli, de 22 anos, e Renan Conceição Fernandes Branco, de 34. De acordo com a decisão judicial, os policiais não prestaram socorro à vítima e mentiram ao apresentar sua versão sobre o crime. No boletim de ocorrência, disseram que Rogério Ferreira tentou fugir em alta velocidade e “fez menção de colocar a mão na cintura como se tivesse uma arma de fogo”. Com apenas seis meses de policiamento nas ruas, Giacomelli repeliu a “iminente agressão” com um tiro. Depois, em juízo, o policial alegou não ter percebido o disparo.

“Sei que não posso generalizar, mas quando uma viatura da polícia se aproxima fico paralisada de medo, meu coração parece que vai pular”, afirma a manicure Roseana da Silva Ribeiro, que não teve chance de cortar o bolo de aniversário comprado para o filho. “Nada vai trazê-lo de volta, só espero justiça.”

Lamentavelmente, o homicídio não foi um incidente isolado. Quatro meses antes, no vizinho bairro de Jardim Savério, Igor Rocha Ramos, de 16 anos, foi baleado na nuca por um PM ao fugir a pé de uma abordagem. “Ele correu porque havia sido ameaçado por um policial dois meses antes. Disseram que ele estava armado, mas é mentira. Não tinha arma alguma lá. Muita gente viu a cena, pegaram ele pouco depois de uma da tarde. Meu filho saiu para comprar pão e um maço de cigarros para mim”, conta Ana Paula Rocha.

No passado, o adolescente cumpriu medida socioeducativa na Fundação Casa por furto, mas voltou a estudar e queria dar um novo rumo à sua vida. “Estava supertranquilo, cuidando de mim em casa”, afirma a cobradora de ônibus, que à época estava afastada do trabalho por ter contraído o coronavírus. “Depois dele, mataram um menino da Vila Moraes, o Guilherme (Silva Guedes, adolescente de 15 anos sequestrado e morto por policiais), o Rogério… É um em seguida do outro.”

Articuladora da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, Maria Nilda de Carvalho Mota confirma: as mortes decorrentes de intervenção policial cresceram de forma assustadora. “Na região, acompanhamos mais de dez casos com indícios de execução. Igor era negro e estava no lugar errado, a periferia de São Paulo. Tornou-se ainda mais vulnerável ao cometer, no passado, um ato infracional. Por menor que seja o delito, esses jovens ficam marcados para a polícia.”

Os dados são realmente alarmantes. Em plena pandemia de coronavírus, ao menos 3.148 cidadãos foram mortos por policiais no primeiro semestre deste ano em todo o País, atesta o Monitor da Violência, fruto de uma parceria do Núcleo de Estudos da Violência da USP, do Fórum Brasileiro Segurança Pública e do portal G1. O número é 7% mais alto que o registrado no mesmo período do ano passado, quando foram contabilizadas 2.934 mortes. Apenas o governo de Goiás não forneceu dados.

O Rio de Janeiro segue na liderança em termos absolutos, mas o número de mortes causadas por policiais caiu em relação ao ano passado, de 885 para 775. Na avaliação de especialistas, a queda deve-se, sobretudo, à decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, que no início de junho proibiu a realização de operações policiais em favelas fluminenses durante a pandemia.

IGOR MORREU APÓS UM TIRO NA NUCA

Em São Paulo, um novo recorde. De janeiro a junho, as polícias civil e militar mataram, juntas, 514 “suspeitos”, alta de 20% na comparação com o mesmo período do ano passado, segundo dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública estadual. É a maior letalidade da série histórica, iniciada em 2001. O número de vítimas de homicídios dolosos também cresceu, mas em ritmo bem inferior: 3,8%. Vale destacar que os crimes contra o patrimônio registraram quedas expressivas. Os roubos recuaram 8,3%. Os furtos de veículos caíram 31%.

“Não existe explicação plausível para número tão elevado de mortes, sobretudo se levarmos em conta que foi um período marcado pela restrição da circulação”, afirma o sociólogo Benedito Mariano, ex-ouvidor das Polícias do Estado de São Paulo. “Em parte, isso se deve ao discurso beligerante de Jair Bolsonaro e do governador João Doria. Eles têm as suas diferenças políticas, mas ambos fazem campanha em favor de uma polícia mais repressiva e aplaudem operações que resultam em mortes. Além disso, apenas 3% dos homicídios causados por policiais são investigados pela Corregedoria. Os demais são apurados pelos batalhões de origem dos PMs envolvidos nas ocorrências.”

No início do ano, Mariano foi reeleito, mas Doria recusou-se a reconduzi-lo ao cargo. Preferiu nomear o advogado Elizeu Soares Lopes, terceiro colocado na lista tríplice preparada pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, o Condepe. A decisão não surpreende. Mariano não hesitou em denunciar os crimes da tropa, defendia o pagamento de indenização às vítimas da violência policial, propôs que todas as mortes causadas por policiais fossem investigadas pela Corregedoria, além de cobrar publicamente do Ministério Público uma análise mais criteriosa dos casos sumariamente arquivados.

GOVERNADOR DE SÃO PAULO, JOÃO DORIA (PSDB), COM PMS

O governo paulista diz não compactuar com desvios de conduta dos policiais. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública, 510 policiais foram presos, demitidos ou expulsos em 2019. Hoje um pouco mais cauteloso, o governador paulista chegou a declarar, no ano passado, que “não é uma obrigatoriedade” perseguir a redução da letalidade policial, além de condecorar policiais envolvidos em sangrentas operações policiais.

“As autoridades paulistas minimizam a gravidade dos casos, tratando como ‘meros excessos’ e ‘casos isolados’, mas esses abusos e violências se repetem diariamente nas comunidades periféricas”, observa o advogado Ariel de Castro Alves, conselheiro do Condepe e integrante do Grupo Tortura Nunca Mais. “Essa escalada de violência também é impulsionada pelos discursos e projetos de Bolsonaro, que, na companhia do ex-ministro Sérgio Moro, propôs a ampliação das chamadas excludentes de ilicitudes, incluindo o medo, a surpresa e a violenta emoção como hipóteses de legítima defesa.”

Os policiais não se sentiam tão encorajados para cometer abusos desde o fim da ditadura, emenda Alves. “Há um claro estímulo à violência policial por parte de alguns governadores, do presidente e de parlamentares das chamadas ‘bancadas da bala’.” E o coro só aumenta. Neste ano, mais de 2 mil policiais e militares irão disputar um cargo de prefeito, vice-prefeito ou vereador.

Carta Capital

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