Prender o ex-presidente é a tarefa no Brasil de hoje, quando as cartas estão na mesa – e as provas também
O fio da história aponta para a prisão de Bolsonaro ·
É preciso retomar o fio dos acontecimentos para compreender o abismo em que o bolsonarismo se encontra, num momento em que cresce a convicção de que o “Jair” deve ser obrigado a pagar por seus crimes na cela de uma prisão.
Uma boa referência foi o depoimento do tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens e amigo do ex-presidente. Para quem entrou mudo e saiu calado da CPI do 8 de janeiro, deve-se reconhecer que o tenente-coronel Mauro Cid produziu uma imagem reveladora.
Disposto a manter o silêncio cúmplice para proteger o núcleo político-militar do chefe Jair Bolsonaro, consumiu 3 horas e 59 minutos escondendo-se de todas as questões que pudessem contribuir para o necessário esclarecimentos dos fatos.
Não conseguiu impedir, contudo, que as câmeras de TV captassem uma expressão de olhar molhado, típica das pessoas incapazes de esconder o próprio medo. Era uma reação previsível de quem optou por nada dizer aos presentes – mas era capaz de tudo enxergar no cinema da própria memória, arquivo de um enredo que se recusou a descrever.
Um mês depois, quando a investigação já atinge patentes superiores do generalato bolsonarista, os fatos estão aí, à vista de todos. O país pode tomar conhecimento da atividade grotesca de um bando criminoso, que tem Jair Bolsonaro no centro de iniciativas de longo alcance político – como operações para fraudar eleições presidenciais – até articulações descaradas, abertamente destinadas a desviar recursos públicos para fortalecer esquemas políticos. Confirma-se, assim, a mais grave das suspeitas.
Por trás da fachada cerimonial, indispensável para proteger a própria imagem com camadas – sempre superficiais – de rigor e moralidade, oficiais alinhados com o ex-presidente moveram-se na sombra, em operações que desviam recursos públicos, com a mesma desfaçatez exibida para fraudar o voto popular, como se viu na brutal operação da PRF no segundo turno de 2022.
Apontada como responsável pela magérrima distância entre as duas candidaturas na contagem final, incompatível com qualquer projeção realista a partir do primeiro turno, a mobilização bolsonarista na segunda fase da campanha aguarda por uma investigação mais aprofundada, capaz de levar em conta os “métodos” de engorda eleitoral empregados pelo bolsonarismo no segundo turno.
Há motivos para outras suspeitas. Entre a primeira e a segunda fase da campanha, a diferença entre Lula e Bolsonaro reduziu-se de 6.187.159 votos para 2.139.645 votos, um emagrecimento sem explicação plausível quando se considera as alianças formadas em torno de cada candidatura na reta final. Não custa recordar que nenhum concorrente com com margem superior aos 0,07% de votos obtidos pelo Padre Kelman pediu votos para Bolsonaro nesta fase.
Em seus fundamentos, o processo corrupto-golpista do bolsonarismo é conhecido e seus efeitos nefastos também.
Aquele tesouro que nas monarquias costuma ser chamado de jóias da Coroa foi transformado em jóias da Família Bozo e embolsado na surdina pelas mãos de políticos graduados e militares, onde generais estrelados se articulavam com patentes inferiores para saquear os cofres do Estado, ludibriar brasileiros e brasileiras, iludir e humilhar uma nação inteira.
Em fase intermediária da carreira, o tenente-coronel Mauro Cid é filho de um quatro estrelas do bolsonarismo, o general Mauro Cesar Lourena Cid. O general Cid foi colega de Jair Bolsonaro quando ambos faziam curso para oficiais em Agulhas Negras, mas na caserna sua carreira atingiu patentes mais altas.
Obteve a patente mais alta na hierarquia militar, general de Exército, chegando a Comandante Militar do Leste, em São Paulo, posto estratégico em vários episódios da história do país.
No 31 de março de 1964, por exemplo, foi dali que as tropas de Amaury Kruel partiram pela Via Dutra para chegar ao Rio de Janeiro, assumindo um lugar decisivo no golpe contra o governo Goulart. Em 1975, quando o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado pela tortura no DOI CODI paulista, numa ofensiva da extrema direita militar contra o processo de democratização que ainda incluiu a morte do operário Manoel Fiel Filho e do tenente da PM José Ferreira de Almeida, o comando era ocupado por Ednardo D’Avila Mello.
Nomeado por Dilma Rousseff para o Comando do Leste, o general Mauro Cesar Lourena Cid encontrava-se no cargo durante o golpe parlamentar de 2016, que afastou a própria presidente do cargo sem apontar um crime de responsabilidade, abrindo um curso reacionário na conjunto do sistema político.
Iniciada pelo governo Temer e animada pela fanfarra da Lava Jato, a nova etapa levou à prisão de Lula em Curitiba e a ascensão de Jair Bolsonaro através da campanha truncada de 2018, que deu posse ao primeiro governo de extrema-direita de nossa história que chegou ao Planalto após uma vitória nas urnas.
No Brasil de 2023, o bolsonarismo oferece um desafio de novo tipo. Foi derrotado pela vontade popular mas a estrutura militar-civil que lhe dá forma e conteúdo permanece ativa e trabalhará sem descanso para sabotar a nova ordem que o país pode construir em torno do terceiro mandato de Lula.
Como ensinam tantas experiências mal sucedidas do passado, que produziram períodos de apaziguamento curtos, frágeis e enganosos, as operações de sabotagem à democracia não podem ser toleradas nem perdoadas – mas punidas, com o rigor que manda a lei dos regimes democráticos.
Esta é a tarefa no Brasil de hoje, quando as cartas estão na mesa – e as provas também.
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