No fim de agosto, o historiador Carlos Zacarias recebeu uma correspondência inesperada em Salvador. Abriu o envelope pardo, com selo de Porto Alegre, e ao folhear a carta, surpreendeu-se: era uma notificação extrajudicial de 11 páginas que dizia que o acadêmico, professor de história na Universidade Federal da Bahia, a UFBA, tinha o prazo de sete dias para publicar um “texto-retratação” da produtora Brasil Paralelo – em anexo estava um modelo de “direito de resposta” de três páginas.
Zacarias havia publicado no dia 11 de julho um post no Facebook criticando a Brasil Paralelo como “um canal que produz ‘conteúdo’ de história de caráter revisionista/negacionista”. Assinada pelo advogado Felipe Menegotto Donadel, que representa a empresa, a notificação se baseou na lei 13.188, de 2015, que regulamenta o direito de resposta. Após consulta jurídica, o professor decidiu não publicar a retratação – ao contrário, fez um novo post para publicizar o caso. “Sou um intelectual público. Estudo partidos e movimentos de esquerda e, por necessidade, passei a estudar os de direita também. Estudava o fascismo por necessidade de compreender o antifascismo. Hoje, estudo o fascismo por necessidade de combater o fascismo”, me disse Zacarias, por Zoom.
“Não sou o único a sofrer uma tentativa de intimidação da parte da Brasil Paralelo. Tenho, próximo de mim, jovens estudantes que vêm sendo alvo de investidas da produtora, que deve dispor de muito dinheiro para mobilizar escritórios de advocacia para tentar impedir que pós-graduandos desenvolvam pesquisas e publiquem suas conclusões sobre o assunto pelas pós-graduações do Brasil”, ele escreveu na época.
Ele realmente não foi o único. Desde 2020, a produtora mandou ao menos seis notificações extrajudiciais para acadêmicos e abriu outros seis processos judiciais contra editoras, sites e até a Wikimedia Foundation, que mantém a Wikipédia. O Intercept obteve acesso aos documentos – em geral, as cartas argumentam que a produtora é “imparcial”, “independente” e “apartidária” e negam “quaisquer ligações editoriais, econômicas, políticas ou ideológicas” com personalidades da extrema direita, como o presidente Jair Bolsonaro ou seu guru, Olavo de Carvalho.
Trecho da página 4 da notificação a Carlos Zacarias.
Nos primeiros dias de junho, a editora Rosenéia Hauer, diretora da Texto e Contexto, um pequeno selo acadêmico de Ponta Grossa, no Paraná, também se surpreendeu ao receber um envelope verde e amarelo com diversos documentos grampeados. Eram notificações judiciais endereçadas a ela e a quatro autores de artigos do e-book “Nova direita, bolsonarismo e fascismo: reflexões sobre o Brasil contemporâneo”, organizado pelos jovens historiadores Mayara Balestro dos Santos e João Elter Borges de Miranda, publicado em dezembro de 2020 e disponível para download gratuito no site da editora.
Nas cartas, a Brasil Paralelo argumenta que os autores publicaram informações “inverídicas e difamatórias” e reivindica a publicação do “direito de resposta” – um anexo de três páginas que alega certa conduta “livre de qualquer viés ideológico” da produtora e busca afastá-la de figuras como Olavo, tal qual o modelo que foi endereçado a Zacarias (com diversos trechos idênticos, aliás).
Hauer se assustou, cedeu e publicou os anexos ao fim do e-book, conforme exigido pela produtora. “Nunca vi nada parecido em anos de publicações acadêmicas. E olhe que existe muito material analisado cientificamente tanto de direita quanto de esquerda”, ela me disse, por e-mail. “Penso o seguinte: como uma empresa como a minha – pequena e ainda recente – vai discutir na justiça com outra que tem capital para manter uma equipe rastreando publicações e enviando notificações pelo país inteiro?”, indagou.
Trecho da página 6 da notificação a Flávio Henrique Calheiros Casimiro.
Entre os autores notificados estavam Eduardo Pereira, mestrando em história na UFBA; Flávio Henrique Calheiros Casimiro, professor do Instituto Federal do Sul de Minas Gerais, o IFSuldeMinas; Karine Rodrigues Firmino, mestranda em ciência política na Universidade Federal de São Carlos, a Ufscar; e Mayara Balestro, à época mestranda em história na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, a Unioeste.
Para Casimiro, notificá-los foi uma tentativa de cerceamento de liberdade e autonomia acadêmica e científica a partir de uma “abordagem agressiva com o objetivo claro de intimidar”, dado o poder econômico da empresa. “O enfrentamento corajoso a esse tipo de ameaça sobre a pesquisa acadêmica constitui um compromisso ético e político. Trata-se de uma trincheira de luta em defesa da liberdade e da própria democracia neste país”, ele me disse, em entrevista por e-mail.
Casimiro pesquisa a atuação política e ideológica de um conjunto de organizações no contexto da ascensão conservadora no Brasil atual. Entre elas, o autor abordou brevemente um lançamento da Brasil Paralelo no Fórum da Liberdade, uma conferência organizada pelo Instituto de Estudos Empresariais, em Porto Alegre. Também assinalou a influência das ideias de Olavo de Carvalho e as relações da produtora com a extrema direita bolsonarista – um ponto que a empresa julgou “extremamente prejudicial” para sua imagem frente ao público.
Ele realmente não foi o único. Desde 2020, a produtora mandou ao menos seis notificações extrajudiciais para acadêmicos e abriu outros seis processos judiciais contra editoras, sites e até a Wikimedia Foundation, que mantém a Wikipédia. O Intercept obteve acesso aos documentos – em geral, as cartas argumentam que a produtora é “imparcial”, “independente” e “apartidária” e negam “quaisquer ligações editoriais, econômicas, políticas ou ideológicas” com personalidades da extrema direita, como o presidente Jair Bolsonaro ou seu guru, Olavo de Carvalho.
Trecho da página 4 da notificação a Carlos Zacarias.
Nos primeiros dias de junho, a editora Rosenéia Hauer, diretora da Texto e Contexto, um pequeno selo acadêmico de Ponta Grossa, no Paraná, também se surpreendeu ao receber um envelope verde e amarelo com diversos documentos grampeados. Eram notificações judiciais endereçadas a ela e a quatro autores de artigos do e-book “Nova direita, bolsonarismo e fascismo: reflexões sobre o Brasil contemporâneo”, organizado pelos jovens historiadores Mayara Balestro dos Santos e João Elter Borges de Miranda, publicado em dezembro de 2020 e disponível para download gratuito no site da editora.
Nas cartas, a Brasil Paralelo argumenta que os autores publicaram informações “inverídicas e difamatórias” e reivindica a publicação do “direito de resposta” – um anexo de três páginas que alega certa conduta “livre de qualquer viés ideológico” da produtora e busca afastá-la de figuras como Olavo, tal qual o modelo que foi endereçado a Zacarias (com diversos trechos idênticos, aliás).
Hauer se assustou, cedeu e publicou os anexos ao fim do e-book, conforme exigido pela produtora. “Nunca vi nada parecido em anos de publicações acadêmicas. E olhe que existe muito material analisado cientificamente tanto de direita quanto de esquerda”, ela me disse, por e-mail. “Penso o seguinte: como uma empresa como a minha – pequena e ainda recente – vai discutir na justiça com outra que tem capital para manter uma equipe rastreando publicações e enviando notificações pelo país inteiro?”, indagou.
Trecho da página 6 da notificação a Flávio Henrique Calheiros Casimiro.
Entre os autores notificados estavam Eduardo Pereira, mestrando em história na UFBA; Flávio Henrique Calheiros Casimiro, professor do Instituto Federal do Sul de Minas Gerais, o IFSuldeMinas; Karine Rodrigues Firmino, mestranda em ciência política na Universidade Federal de São Carlos, a Ufscar; e Mayara Balestro, à época mestranda em história na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, a Unioeste.
Para Casimiro, notificá-los foi uma tentativa de cerceamento de liberdade e autonomia acadêmica e científica a partir de uma “abordagem agressiva com o objetivo claro de intimidar”, dado o poder econômico da empresa. “O enfrentamento corajoso a esse tipo de ameaça sobre a pesquisa acadêmica constitui um compromisso ético e político. Trata-se de uma trincheira de luta em defesa da liberdade e da própria democracia neste país”, ele me disse, em entrevista por e-mail.
Casimiro pesquisa a atuação política e ideológica de um conjunto de organizações no contexto da ascensão conservadora no Brasil atual. Entre elas, o autor abordou brevemente um lançamento da Brasil Paralelo no Fórum da Liberdade, uma conferência organizada pelo Instituto de Estudos Empresariais, em Porto Alegre. Também assinalou a influência das ideias de Olavo de Carvalho e as relações da produtora com a extrema direita bolsonarista – um ponto que a empresa julgou “extremamente prejudicial” para sua imagem frente ao público.
O time da produtora: à frente, da esquerda para a direita, os sócios fundadores: Lucas Ferrugem, Filipe Valerim e Henrique Viana.
Foto: Divulgação/Brasil Paralelo
Teia de relações
Fundada na capital gaúcha por Filipe Valerim, Henrique Viana e Lucas Ferrugem, em 2016, a Brasil Paralelo conquistou maior visibilidade após participar do Fórum da Liberdade, um encontro famoso entre liberais, em 2017.
“A produtora surgiu no contexto do golpe de 2016 e ficou famosa entre conservadores, tendo Olavo como ‘padrinho’ intelectual e articulando-se com outras organizações da nova direita”, me disse uma das historiadoras notificadas, Mayara Balestro, que pesquisou a trajetória da produtora desde os primeiros tempos e, no fim de agosto, defendeu a dissertação “Agenda conservadora, ultraliberalismo e ‘guerra cultural’: Brasil Paralelo e a hegemonia das direitas no Brasil contemporâneo (2016-2020)”.
No estudo, a pesquisadora identificou uma teia de relações entre a produtora porto-alegrense e institutos como Borborema, Liberal, Milenium e Mises Brasil, por alinhamento ideológico: uma agenda conservadora e ultraliberal, marcada pela defesa do livre mercado, da iniciativa privada e de um discurso meritocrático.
Segundo estudo da pesquisadora Mayara Balestro, além de convidados eventuais, há um núcleo duro de intelectuais que mais marcam presença nas produções da Brasil Paralelo.
A autora também identificou um núcleo duro de intelectuais que mais marcam presença nas produções da Brasil Paralelo ao longo do tempo, com personalidades como Olavo, Luiz Philippe de Orleans e Bragança, deputado pelo PSL paulista, Helio Beltrão, do Instituto Millenium e Mises Brasil, Flavio Morgenstern, blogueiro bolsonarista do Senso Incomum, e Leandro Ruschel, da Liberta Global, uma empresa de educação financeira. Além de Jair e Eduardo Bolsonaro, figuras como o colunista da Folha Leandro Narloch e o âncora da BandNews FM Felipe Moura Brasil também constam como convidados.
A notificação endereçada a Balestro martela o argumento de imparcialidade da produtora e tenta distanciá-la de Olavo, Bolsonaro e afins. Segundo ela, é o modus operandi deles: uma estratégia de tentar se posicionar como “apolíticos”, destaca ela, num contexto que é político, uma agenda conservadora na lógica neoliberal.
Trecho do ‘direito de resposta’ da Brasil Paralelo a Mayara Balestro.
Mises e Olavo foram as primeiras referências da produtora, definiu Henrique Viana, um dos sócio-fundadores, em entrevista à revista digital Esmeril no “novíssimo QG da Brasil Paralelo” na capital paulista, em janeiro de 2020.
“Aprendemos muito com eles [intelectuais do Instituto Mises Brasil] para sair um pouco da matrix. Outra fonte principal foi o COF [Curso Online de Filosofia], e os vídeos do Olavo de Carvalho no YouTube. Sempre tivemos essa dupla referência, conservadora e liberal. Ate? hoje perguntam… o que vocês são? São olavistas? Nós respondemos sempre que somos estudantes”.
Mas, além de participar de produções como a série “Brasil: a última cruzada”, de 2017, e o documentário “1964: o Brasil entre armas e livros”, de 2019, Olavo foi justamente quem influenciou a Brasil Paralelo a não esquecer “a questão da militância”, lembra Balestro.
Em uma discussão sobre jornalismo e liberdade em 2017, na Câmara de São Paulo, disponível no Parlatório Livre, no YouTube, o próprio Viana deixou claro o objetivo da produtora: “ser pop, ser legal, despertar mitos antigos”. Também acrescentou que o que mais sustentaria atualmente a cultura judaico-cristã seria o audiovisual, “Hollywood”, “super conservas, família, o herói, o virtuoso”. Nas palavras de Viana, a Brasil Paralelo surgiu “quase como um movimento”, mas preferiu se constituir juridicamente como empresa e, enquanto eles definiam qual seria o modelo de negócios, tiveram uma conversa crucial com “o professor Olavo”.
“No fim, a gente seguiu num modelo bem tradicional de vender produto, a gente vende a extensão para o cara assistir os conteúdos extras. Aí a gente teve uma conversa com o professor Olavo. Nós estávamos indo ‘total’ para vender produto e ele falou: ‘não, não, não, [espera] só um pouquinho; é importantíssimo, vocês não podem perder [de vista] a questão da militância, vocês estão cumprindo um papel para o país, um serviço para a causa; então, não percam isso, o pessoal tem que ser militante’. Aí a gente, então tá, então esse pessoal vai ser fundador do Brasil Paralelo”, disse o sócio.
Ao Intercept, a Brasil Paralelo diz que é “impossível elencar um ou dois [autores] como principais referências”. “A empresa não se prende à opinião de Olavo de Carvalho nem de nenhum outro autor. Bem como não os exclui do debate público”, afirmou, via assessoria de imprensa.
A área comum do escritório da empresa.
Fotos: Divulgação/Brasil Paralelo
Modelo ‘freemium’
Até novembro de 2021, a Brasil Paralelo tinha registrado um capital social de R$ 29.667. Iniciada por três empreendedores, ex-estudantes da Escola Superior de Propaganda e Marketing, a ESPM, a produtora começou em uma sala improvisada de cerca de seis metros quadrados, duas câmeras Canon T5I e dinheiro emprestado a juros, conforme o sócio-fundador Filipe Valerim descreveu no Boletim da Liberdade em julho de 2018.
A casa, que se define como produtora de filmes e cursos que tratam de tópicos como política, história e atualidades, diz que busca “resgatar os bons valores, ideias e sentimentos no coração de todos os brasileiros”. Com um modelo de negócios “freemium”, em que há conteúdos disponibilizados gratuitamente e outros de acesso exclusivo para assinantes, a empresa teria passado a faturar milhões ao conquistar uma audiência alinhada a seus valores – verdade, liberdade, arte e “ambição”, que, nas palavras de Valerim, quer dizer “meritocracia; todos nós queremos o melhor da vida e o melhor do mundo, e a única forma legítima de conquistar isso é com o mérito”.
Ativos desde julho de 2016 no YouTube, em que o acesso aos vídeos é gratuito, eles têm quase 2,2 milhões de inscritos; no Facebook, onde gastaram mais de R$ 3 milhões em propaganda política, contam cerca de 685 mil seguidores. No Telegram, segundo a agência Aos Fatos, tinham 80 mil inscritos até fevereiro de 2021 – era o segundo maior canal bolsonarista do app, atrás apenas do Terça Livre.
Atualmente, segundo o site oficial, a produtora possui 250 mil assinantes. A nomenclatura “membro fundador” foi uma das primeiras categorias para apoiadores do projeto – cerca de 10 a 12 mil, Viana estimou ao podcast Café Brasil. Atualmente, há diferentes assinaturas, da mais básica de R$ 10 (“membro patriota”) a uma premium de R$ 165 – hoje, no valor promocional de R$ 99 –, que dá acesso total aos conteúdos produzidos. De 2019 para 2020, o número de assinantes saltou de 12,3 mil para 186,2 mil – e o faturamento, de R$ 6,5 milhões para R$ 29,9 milhões, um aumento de 335%, descontada a inflação, reportou a Folha. Segundo a revista Exame, a produtora espera alcançar 260 mil assinantes ainda neste mês.
Gráfico: Júlia Coelho/The Intercept Brasil
A empresa faz questão de dizer que não recebe nenhum tipo de investimento público e já declarou que não monetiza vídeos no YouTube. Mas a narrativa “case de sucesso”, de uma produtora que teve um crescimento meteórico por mérito dos publicitários que teriam conquistado os corações conservadores, deixa de fora questões sobre o investimento da iniciativa privada.
Segundo a revista piauí, os empresários Jorge Gerdau, da gigante produtora de aço Gerdau, Pedro Englert, sócio da startup StartSe, e Roberto Dagnoni, sócio da Mercado Bitcoin, integram um grupo de conselheiros da empresa, com participação “simbólica” no capital da produtora.
Citada nas páginas 626-627 e 761-762 no relatório da CPI da Pandemia como parte do núcleo de produção de fake news, a produtora foi alvo de pedido de quebra de sigilo, que terminou engavetado.
Indagada pelo Intercept, a Brasil Paralelo diz que não tem investidores. “Os atuais acionistas são os três sócios fundadores. A venda de assinaturas representa 98% do faturamento, as receitas financeiras representam 1% e o programa da partnership que estamos estruturando (compra e venda de ações entre pessoas engajadas na construção do negócio, de acordo com as melhores práticas de compliance e que será auditada) representará 1% da receita. A independência editorial sempre será prioridade no nosso modelo de negócio”, afirmou.
Gravações do Especial de Natal 2020 da Brasil Paralelo.
‘Dobrar a aposta’
Em 2019, a produtora contratou salas Cinemark em cidades como Brasília, Rio e São Paulo para lançar “1964: o Brasil entre armas e livros”. Questionando a historiografia profissional há décadas ancorada em documentos e depoimentos, o filme sustenta a hipótese de que o golpe teria sido uma resposta necessária a uma suposta ameaça comunista e relativiza a repressão do estado.
“1964” teve mais de 9 milhões de views só no YouTube. 2019, porém, foi o ano em que a Brasil Paralelo “quase faliu”, contou Valerim, num vídeo publicado no fim de setembro. Na virada para 2020, eles decidiram apostar no antigo “sonho de um dia ir para São Paulo, terra da oportunidade”, saíram de Porto Alegre e se instalaram na Avenida Paulista. Segundo Valerim, eles atravessavam um “vale da morte”, um jargão para um período crítico para startups: investiram alto para produzir a série “Pátria educadora” e estavam “com a corda no pescoço”.‘De olho nas disputas de 2022, eles estão obviamente preocupados com o que sai sobre eles na imprensa, universidades, Wikipédia. Estão tentando se dissociar de Olavo e dos Bolsonaro.’
“Nós já estávamos no limite do banco, não tinha mais para quem pedir arrego e, duas semanas antes do lançamento dessa série, saiu o decreto oficial da OMS, declarando o estado de pandemia”, disse. “Um dia, em clima de velório, a gente se reuniu numa sala, enquanto olhava pela janela a Avenida Paulista, absolutamente vazia. Parecia um cenário de filme de terror, um apocalipse zumbi. A gente definiu um Plano A, um Plano B, um Plano C…”, continuou.
Num discurso triunfalista, Valerim relatou que eles decidiram “enfrentar” a primeira alternativa, lançar o documentário, “abrir o jogo” e contar com a “confiança” do público para aderir como “membros patriotas”. “A gente decidiu dobrar a aposta, reinvestiu, aumentou nossa equipe e transformou nosso prazo de produção de seis meses para 45 dias. Foram dezenas de documentários produzidos somente em 2020. Nós passamos de 13 mil assinantes para 200 mil membros”, declarou, ao anunciar, orgulhoso, a “Nova” Brasil Paralelo, uma produtora repaginada com uma grade diária, um app para TV e o streaming BP Select.
Abrindo um novo capítulo, recentemente a produtora acertou contrato com a Sony Pictures, um quadro na TV Jovem Pan News e uma iniciativa com o G10 Favelas com a disponibilização de 500 bolsas para moradores das maiores favelas do país – uma parceria que “une propósitos e desperta esperança”, nas palavras do empresário Gabriel Kanner, ao noticiá-la com entusiasmo na Folha.
Kanner também é entusiasta do governo Jair Bolsonaro, presidente do Instituto Brasil 200 e herdeiro da Riachuelo.
Evento de lançamento da ‘nova’ Brasil Paralelo.
Foto: Divulgação/Brasil Paralelo
Rebranding pós-Bolsonaro
Abrir um novo capítulo, porém, parece implicar um certo distanciamento de antigos aliados. Neste ano, a Brasil Paralelo teria procurado a agência de publicidade Powerhouse para reposicionar sua imagem. “Eles querem se expandir com o rebranding para ter uma salvaguarda no caso de Bolsonaro perder no ano que vem”, relatou um ex-funcionário da produtora à repórter Ana Clara Costa, da revista piauí. Ao Intercept, a Brasil Paralelo diz que nunca contratou a agência e que está em contato com a revista para corrigir a informação. Atualmente, a produtora também conta com auditoria da Ernst & Young e programa de compliance da Grant Thornton, reportou a Gazeta do Povo, além de assessoria de imprensa da FSB Comunicação, de São Paulo, e jurídico da DBCL Advogados, de Porto Alegre.
Foi da DBCL que partiram as notificações assinadas pelo advogado Felipe Menegotto Donadel – @fmdonadel na Wikipédia.
Trecho do post de @fmdonadel no fórum de discussões da Wikipédia.
Em 2020, @fmdonadel foi ao fórum de discussões do verbete “Brasil Paralelo” na enciclopédia digital e pediu alterações na página, alegando que as “atuais informações nela inseridas são inverídicas e foram escritas para denegrir a imagem da empresa”. Segundo o post, cuja autoria confirmei diretamente com a produtora à época para uma reportagem para o UOL, a companhia seria “absolutamente independente, apartidária, despida de viés ideológico”.
Enquanto tenta se consolidar como uma “Netflix da direita” e se desvincular do olavismo e do bolsonarismo, a produtora está notificando críticos como quem busca se blindar de associações agora indesejadas, inclusive mediante processos. Contra a Wikimedia Foundation, instalada em Los Angeles, pediu indenização por danos morais em outubro de 2020; contra Folha, Editora 247 e Editora Globo, pede direito de resposta – nas petições iniciais, as três datadas de 13 de agosto de 2021, há trechos idênticos ao das cartas destinadas aos historiadores. “É lawfare”, diz o jornalista e youtuber Clayson Felizola, que recebeu notificações extrajudiciais em outubro e dezembro de 2020 e, após se recusar a emitir uma retratação, tornou-se em fevereiro de 2021 alvo de uma ação judicial movida pela produtora, que pede R$ 20 mil de indenização por danos morais.
“Esses grupos ligados à direita ou à extrema direita são os primeiros a falar sobre liberdade de expressão […] e quando eles veem alguém que coloca um contraponto, exercendo aí sim a liberdade de expressão, eles avançam com essa questão lawfare”, disse o youtuber, num vídeo publicado no início de dezembro. “Qual é o problema dessa história toda? [A Brasil Paralelo] é uma empresa, que vende um produto; os vídeos são produtos. É como se você fosse um consumidor que não pode criticar o produto, só pode elogiar”, ele me disse, em conversa por Google Meet.
“O bolsonarismo talvez seja a parte mais evidente do fenômeno, mas nem de longe é a única. Essa compreensão é que tem despertado interesse em estudar as diversas faces da extrema direita nacional – incluindo aí a Brasil Paralelo”, me disse o acadêmico Diego Martins Dória Paulo, doutorando em história na Universidade Federal Fluminense, a UFF, que também recebeu um pedido de direito de resposta após a publicação de um artigo na edição digital de Le Monde Diplomatique Brasil, em maio de 2020.
Trecho que se repete em diversas notificações extrajudiciais e ações judiciais movidas pela Brasil Paralelo.
A estratégia de disparar notificações reflete uma das propostas da empresa, uma recusa das críticas de acadêmicos e a oferta de uma perspectiva paralela, alternativa, analisa Paulo. Nas produções deles, lembra o autor, “há reiteradamente a insinuação – quando não afirmações diretas – de que historiadores teriam se apropriado da prerrogativa de narrar a ‘história da nação’ e estariam usando essa prerrogativa para manipular as pessoas por interesses ditos ‘políticos’”. Por trás do argumento da produtora, portanto, diz ele, estaria a ideia de que historiadores, assim como jornalistas, estariam mentindo.
Na disputa de narrativas travada pela Brasil Paralelo, a produtora expôs um pedido de entrevista da agência BBC News Brasil, em setembro de 2021: a reportagem não foi publicada, mas a empresa postou um vídeo de “resposta” no YouTube citando indicadores de likes (como se isso fosse parâmetro para definir se um conteúdo é anticientificista e negacionista) e dizendo que as produções contam com especialistas – entre eles, diga-se, estão fontes do quilate de Flavio Morgenstern, Rodrigo Constantino e Olavo.
“Dizer que somos anti-historiográficos ou anticientíficos é uma fake news; sem espaço para subjetividade ou opinião. Nosso conteúdo não faz parte de nenhum grupo político, nenhum partido ou de uma ideologia”, pontuou Valerim. “Além disso, nosso corpo jurídico estará atento e tomará as medidas cabíveis caso sejam identificados atos de calúnia, injúria ou difamação. Essa é a nossa resposta”, concluiu.
A investida contra mídia e universidades não é casual. Na introdução ao documentário “7 denúncias: as consequências do caso C0vi1}-19”, de 2020, Valerim demarcou assim a proposta da produtora como contraponto à mídia e às universidades: “Nosso crescimento virou uma missão. Precisamos ter a capacidade de competir com a grande mídia, com os produtores de cinema e com as universidades. Essa é a reforma cultural que vai nos tirar do redemoinho que nos encontramos há anos.” O eco da “guerra cultural” impulsionada por Olavo deve ser mera coincidência.As notificações do Brasil Paralelo
- Carlos Zacarias (historiador, professor da Ufba) – notificação extrajudicial por post no Facebook (agosto de 2021)
- Editora Globo – pedido de direito de resposta ao texto ‘Eduardo Bolsonaro pede que seguidores assinem canal conservador que já compartilhou fake news sobre urnas eletrônicas’ – TJ-SP (agosto de 2021)
- Editora 247 – pedido de direito de resposta ao texto ‘Jovem Pan entra na guerra cultural bolsonarista e passa a exibir documentários de Olavo de Carvalho’ – TJ-SP (agosto de 2021)
- Folha – pedido de direito de resposta ao texto ‘Reitor do ITA é o mais cotado para ser 4o ministro da Educação de Bolsonaro’ – TJ-SP (agosto de 2021)
- Texto e Contexto Editora – notificação extrajudicial por artigos publicados em e-book (junho de 2021)
- Eduardo Pereira (mestrando em história na Ufba) – notificação extrajudicial por artigo publicado em e-book (junho de 2021)
- Flávio Henrique Calheiros Casimiro (historiador, professor do IFSuldeMinas) – notificação extrajudicial por artigo publicado em e-book (junho de 2021)
- Karine Rodrigues Firmino (mestranda em ciência política na Ufscar) – notificação extrajudicial por artigo publicado em e-book (junho de 2021)
- Mayara Balestro (mestre em história pela Unioeste) – notificação extrajudicial por artigo publicado em e-book (junho de 2021)
- Clayson Felizola (jornalista e youtuber) – notificações extrajudiciais (outubro e dezembro de 2020) e pedido de direito de resposta por vídeo publicado no YouTube – TJ-MG (fevereiro de 2021)
- Wikimedia Foundation – pedido de indenização por verbete na Wikipédia – TJ-SP (outubro de 2020)
- Le Monde Diplomatique Brasil – notificação extrajudicial por artigo publicado em edição digital (julho de 2020)
- Jean Wyllys (jornalista e ex-deputado federal pelo Psol-RJ) – pedido de indenização por post no Twitter – TJ-RS (maio de 2020)
2022 está aí
Para o sociólogo Pablo Ornelas Rosa, professor de sociologia política e de segurança pública da Universidade Vila Velha, a UVV, a Brasil Paralelo é o maior exemplo de mix de entretenimento audiovisual e formação política para a direita. “De olho nas disputas de 2022, eles estão obviamente preocupados com o que sai sobre eles na imprensa, universidades, Wikipédia. Estão tentando se dissociar de Olavo e dos Bolsonaro”, avalia.
“Indica inclusive o alinhamento ideológico deles, marcado por um certo conservadorismo à brasileira, monarquista e ultraliberal, com influência intelectual do Russell Kirk – na linha: conservadores seriam céticos, logo teriam superioridade moral e estariam acima das ideologias”, analisa ele, coordenador do Núcleo de Pesquisa em Ativismos, Resistências e Conflitos, o Nuparc, e um dos autores do estudo “Estratégias de constituição de um novo regime de verdade a partir das produções audiovisuais do Brasil Paralelo”.
2022 também marca o bicentenário da independência do Brasil, que é simplificada na série “A última cruzada” como um tipo de narrativa que, “centrada na vida de D. Pedro I e girando em torno de indivíduos da elite política e econômica, principalmente D. Leopoldina e José Bonifácio, desenha uma temporalidade coesa e linear, focada na família real e num empreendedorismo heroico”, critica o historiador Rodrigo Turin, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, a Unirio.
A estudante Carolina Ferreira, uma das orientadas de Rosa, frequentou um grupo de estudos na UVV que exibiu aos alunos a série entre 2018 e 2019. Nas anotações que fez para sua pesquisa de iniciação científica “Um estudo cibercartográfico sobre o neoconservadorismo brasileiro do Brasil Paralelo”, a aluna registrou o discurso de um professor de direito que traduz o tom de “empreendedorismo” dos colonizadores.
“Pessoal, Portugal não era nada antes dos [cavaleiros] templários. […] Aqueles caras guerreiros, batalhadores, com a capacidade intelectual altíssima porque a ordem foi formada de nobres […] se refugiam em Portugal e pegam aquele paisinho pequenininho, que não era nada, e transforma[m] num dos países mais importantes do mundo. […] Brasil era Portugal. Não era: ah, estou explorando o Brasil. […] Nós vamos ver inclusive no episódio 2, eles fizeram um grandíssimo negócio”, disse o professor aos alunos, após exibir um dos episódios.
“Uma tentativa de reescrever a história”, disse-me Ferreira, que se lembra que o professor reiterava o discurso da série, “como se fosse um direito colonizar o Brasil” – não por acaso, as sessões semanais ficaram conhecidas nos corredores da universidade como “o grupo de estudos do Brasil Paralelo”.
Para o historiador Fernando Nicolazzi, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a produtora é uma peça na máquina ideológica bolsonarista-olavista. “O sucesso midiático das produções da Brasil Paralelo indica como essas questões dizem mais respeito ao presente do que ao passado sobre o qual procuram discorrer”, critica ele, integrante do Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos do Passado, o Luppa. “Toda barbárie só encontra amparo social com fartas doses de mentiras”.